O Dilema da Rejogabilidade
Nota Muito Importante: Antes de começarem a ler, quero fazer um pedido: Leiam com calma, por mais que isso faça com que vocês leiam um pouco agora, pausem e continuem a ler depois. Quando comecei a fazer este texto não imaginei tamanha proporção que ele tomaria, então quando terminei de escrever, vi que ficou BEM longo. Refleti se faria mais de uma postagem, porém achei que fragmentar o texto poderia fazer perder um pouco o sentido de começo, meio e fim que costumo dar à minhas postagens, culminando na minha escolha de postar tudo junto mesmo. De qualquer forma, agradeço a todos, aos que leram só até onde aguentaram e aos valentes que conseguiram chegar ao final! Muito obrigado!

APRESENTAÇÃO
Este é mais um daqueles textos, quase um ensaio, que faço tentando entender melhor o hobby, o que não é muito fácil, principalmente por ser necessário fugir do monolitismo do paradigma positivista, por não termos de forma muito clara caminhos que deem conta de resolver todas as questões quando lidamos com o pensamento e o comportamento humano, nos forçando a fazer do jogar, do criar e do escrever o nosso laboratório. Textos assim são difíceis e não gosto (na verdade, odeio mesmo) ser muito superficial, então vejo muitos vídeos, leio muitos comentários, postagens e até recorro à livros e artigos quando sinto que preciso de embasamentos um pouco mais robustos. Expliquei isso para que não restem dúvidas sobre a legitimidade de meu convite para que vocês, colegas de hobby e leitores, participem da sessão de comentários. Vamos trocar experiências, dizer o que acham, o que concordam ou não e assim por diante.
Espero que curtam o conteúdo e sintam-se à vontade para comentar. Vamos engrandecer o hobby juntos.
INTRODUÇÃO
Um jogo possuir rejogabilidade na prática não significa, necessariamente, que ele possua apenas diversos caminhos para pontuar, faça em cada partida as coisas de uma forma um pouco diferente, tenha múltiplas escolhas, use diversos personagens com características diferentes, nada disso. Isso são apenas as ferramentas e técnicas que os gamedesigners usam para chegar no que realmente importa: a constante sensação de descoberta para o jogador.
Buscar a rejogabilidade em um jogo se trata de entender como se dá a busca por parte do jogador em ser impactado da mesma forma que foi em sua primeira vez ao revisitar uma obra em partidas seguintes. A dificuldade de se fazer isso é que o que nos sobra após jogar alguma coisa é apenas uma sensação, ou seja, uma lembrança, não algo concreto e real. Isso impacta a própria existência do questionamento sobre a rejogabilidade, pois a fazemos pensando também no futuro, algo tão abstrato e irreal quanto o passado, nos afastando do local onde realmente sentimos as coisas: o presente. O papel do gamedesign nesse contexto é provocar no jogador a vontade de jogar uma nova partida do mesmo jogo, depois mais uma, outra na sequência e assim por diante, de uma forma em que o sentimento de diversão permaneça o mesmo ou, pelo menos, o mais parecido possível com aquela experiência que para ele se tornou memorável no passado. Pode parecer confuso e não nego, pois pensar em rejogabilidade é lidar com a noção de tempo e como os indivíduos sentem este fenômeno, ou seja, pensar em rejogabilidade é olhar para o futuro (as próximas partidas), tendo percepção do presente (a partida atual), buscando ter as mesmas sensações do passado (as partidas anteriores). A grande dificuldade disso é que somos seres muito complexos e, no fundo, nem sabemos exatamente o que procuramos, já que queremos sempre que um jogo mantenha vivo em nós aquele encanto que tivemos em uma primeira experiência, porém nos entregando sempre novidades.
Tal dilema, apesar de não ter fácil solução, é possível ser minimizado caso os envolvidos se atentem em algumas coisas. Não acredito que a responsabilidade seja totalmente atribuída apenas ao gamedesigner, caso contrário, jogos como Uno, Canastra, Poker, Truco, Dominó, Damas, Trilha e demais jogos clássicos não teriam tido tanta vida útil quanto parecem possuir, afinal quais méritos esses jogos realmente possuem na questão de design para que sejam jogados noites infindáveis nas últimas muitas décadas? Dominó (sem autor. 1500), por exemplo, é um jogo amado por muitos, com uma mecânica redonda e fluída, contudo não apresenta tantos elementos de gamedesign que, em teoria, o deixaria mais duradouro nas mesas de famílias pelo mundo se comparado com Kingdomino (Cathala. 2016). Dessa forma, é possível fazer uma constatação: além do gamedesigner, o consumidor e até mesmo o mercado possuem sua parcela de responsabilidade no quanto um jogo visita as noites de jogatina.
A tríade, constituída por gamedesign (que precisa utilizar de algumas técnicas específicas), público (que precisa ter consciência dos limites do gamedesign e autoconhecimento sobre seus próprios gostos) e o mercado (que é responsável por disponibilizar o acesso entre jogo e jogadores), será o que irei buscar entender ao longo das próximas partes do texto e para tal, irei separar cada um destes agentes em blocos. Tenham em mente, contudo, que essa divisão é por uma questão didática, uma vez que na prática existe uma interrelação indissociável entre os três, por mais que em casos específicos ocorram em diferentes graus dentre os papéis envolvidos.
DISCUSSÃO
I. O PAPEL DO GAMEDESIGN
I.I A EQUIPE TODA REUNIDA

(créditos da imagem: @kibbitzer_)
Certamente donos das orelhas esquerdas que mais esquentam em todo processo, os gamedesigners são os responsáveis centrais pela obra, mas não são os únicos, afinal o time é composto por outros profissionais como ilustradores, diretores de arte, editores e mesmo tradutores. Apesar da concepção mecânica e temática ficar a cargo do gamedesigner (e/ou equipe de gamedesigners), os outros papéis dentro da produção também geram impacto na percepção do jogador em relação à obra. É possível citar como alguns exemplos:
Exemplo #1: Arte - Um jogo com ilustração feia talvez não volte a ser jogado, apesar de diversos elementos mecânicos que ajudem no fator rejogabilidade, pelo fato do jogo na mesa não ficar atraente e chamativo, não gerando no público uma conexão mais profunda. É necessário que ocorra uma comunicação empática entre o jogo e o jogador para que esta pessoa entre no universo criado e consiga se entregar à experiência. Obviamente, o que é bonito e feio também é um tanto subjetivo, por exemplo, existe gente que acha super charmosa a escolha artística de jogos como Food Chain Magnate (Doumen; Wiersinga. 2015) ou mesmo The Golden Ages (Ferrini. 2014), contudo, empiricamente, essa galera é uma minoria, caso contrário não teríamos uma crescente no mercado de customizações, jogos com versão deluxe e afins. De qualquer forma, mesmo quem goste da direção de arte e ilustrações dos jogos citados, precisa admitir que o carisma dessas obras reside justamente no quanto se destacam das demais, portanto, sua beleza reside justamente em seu carisma (que no caso dos jogos citados podemos chamar de ‘simplicidade’ [ou ‘feiura’ mesmo]).
Exemplo #2: Produção - Seguindo mais ou menos a linha de raciocínio do item anterior, se um jogo é mal editado, com componentes ruins, de má qualidade, pouco otimizados e assim por diante, não tem gamedesign que tenha poderes de espanador o suficiente que consiga salvar esse jogo do pó da prateleira. Acima do gosto pessoal, da vontade propriamente dita de jogar algo mesmo que tenha peça descentralizada e ataque o T.O.C. do cidadão, não adianta alguém se preocupar se o gamedesign entregou rejogabilidade o suficiente para que a obra seja jogada anos a fio, se as cartas não vão perdurar por mais que algumas dúzias de embaralhadas sem ficarem marcadas ou amassadas. Eu não sei vocês, mas eu me pergunto: será que quando eu estiver bem velhinho, lá pelas bandas de 2063, algum jogo que eu tenho hoje, em 2023, ainda estará em condições de ser aproveitado? Eu ainda tenho no fundo do guarda-roupa um War (Lamorisse; Levin. 1972) e um Detetive (Pratt. 1949) de meados de 1997 guardados, mas não estão mais em condições de uso (e cá entre nós, tem alguns jogos por aí que já tem vindo mofado lacrados de loja, então como isso vai durar muito?).
Exemplo #3: Editores e tradutores – Tá, aqui pode ser mais birra de muita gente do que, de fato, alguma coisa que atrapalhe a experiência geral da jogatina, apesar de atrapalhar (e muito) o devido aprendizado das regras, mas a birra é um elemento muito importante! Quantos jogos vocês já tiveram a experiência de conhecer e gostaram apesar da má fama? Pois bem, a devida edição e tradução, tal qual a produção, são importantes para que o jogo sequer veja a luz do dia, afinal somos todos bem birren.. EXIGENTES! Dai vocês podem alegar: ‘Pô, Guri, mas aí, esse impacto será na primeira partida. Qual relação com a rejogabilidade?’ e minha resposta é: ‘A finitude de nossa memória e o arcabouço em lembrar as regras’, ou seja, se um jogo apresenta alguns problemas na hora de explicar as regras e é necessário ficar retomando pontos falhos do manual em fóruns, amigos e etc. então as chances desse jogo sobreviver depois de alguns meses é baixo. Uma experiência muito ruim que eu tive nesse sentido envolveu o jogo Mistfall (Kubacki. 2015), apelidado ‘descarinhosamente’ por mim de Mistfalha. O manual era tão ruim, falho, com coisa faltando que eu sequer consegui jogar bem a primeira partida. O jogo é ruim? A culpa é do gamedesigner? O ilustrador fez caquinha? ‘Não sei’, ‘tô na dúvida’ e ‘até que não’ seriam minhas respostas para essas perguntas. Uma coisa que sei: não quero jogar esse jogo na versão nacional de novo e, muito provavelmente, se tiver opções diferentes no momento, até se for uma cópia gringa eu dispenso. Outro exemplo, e esse acredito que seja mais comum, me ocorreu com o excelente jogo Robinson Crusoé: Aventuras na Ilha Amaldiçoada (Trzewiczek; Kijanka. 2012). No caso do Crusoé, a quantidade de regras, dispostas de uma forma que achei pouco intuitiva no manual, me forçavam a revisitar o manual toda vez que eu queria colocar o jogo na mesa e haviam se passado algumas semanas, a ponto de vendê-lo, pois dava trabalho jogar de novo, mesmo ele sendo um exemplo de jogo com uma alta rejogabilidade. Vejam, não é que o jogo é complexo e tem muita regra, o problema é o COMO as regras ficaram dispostas no manual, sem ‘lembretes rápidos’ ou coisa do tipo (algo que fã costuma fazer e salva muita gente), poucas imagens e com blocos e blocos de texto. Isso é importante quando falamos de rejogabilidade, pois o manual é o melhor amigo do jogador, portanto, precisa ser também acessível quando requisitado em partidas futuras. Para não parecer que só falei mal dos outros, um exemplo de manual que acho ter um modelo muito bom são os feitos pela editora Alea, como Puerto Rico (Seyfarth. 2002), Notre Dame (Feld. 2007) e The Castles of Burgundy (Feld. 2011), pois nestes manuais existe uma barra vertical na parte direita das páginas com informações bem resumidas dos tópicos relacionados, algo que se faz muito útil quando o jogo volta para mesa após algum tempo parado na estante. Sobre os tradutores, é simples: se tem erro no manual e por isso a galera joga errado, acho que não preciso dizer muito sobre o quanto isso estraga a experiência como um todo, né?
I.II O MESTRE DA PARADA E SUA MAGIA
Exemplos que envolvem a arte e produção dados, vamos falar da pessoa que é a estrela da equipe, o vocalista, aquele que faz mais sucesso, mas leva pancada na mesma proporção: o gamedesigner. Esses seres iluminados precisam ter uma noção do processo inteiro, variantes que envolvem o comportamento dos jogadores, o metagame, as continhas chatas por trás de uma habilidade super maneira e tudo mais. Dentre todas as preocupações que povoam a mente criativa dessa galera, estão elementos de gamedesign que podem auxiliar na entrega de rejogabilidade aos jogadores e enriquecer a obra como um todo.
Durante meus estudos e pesquisa para elaborar este texto cheguei à conclusão que existem algumas técnicas e elementos que incorporados ao gamedesign contribuem para um aumento do fator rejogabilidade (eu gasto bastante tempo de pré-produção estudando essas bobeiras todas que escrevo para tentar ter um pouquinho mais de fundamento, acreditem!) e aqui está a lista dos que considerei mais relevantes:
Elemento #01: MAPAS VARIÁVEIS E/OU MODULARES
A existência de diversas composições de mapas, com diversas possibilidades, enriquece a experiência do jogador ao criar diferentes expectativas do que irá encontrar e/ou enfrentar em partidas subsequentes, alterando a forma que o jogador irá manobrar suas escolhas durante a partida. É interessante salientar que o termo ‘modular’ é muito utilizado no hobby, e também agrega rejogabilidade, acredito que até em um teor mais elevado, porém não é a mesma coisa que o termo ‘variável’. Algo modular significa que algo é adicionado ou retirado sem que a estrutura geral da experiência seja comprometida. É possível exemplificar essa diferença da seguinte forma: em Istanbul (Dorn. 2014) temos um mapa variável, ou seja, ele é composto por exatas 16 peças e todas entram em jogo, mas sempre em locais diferentes ou aleatórios, enquanto em Nemesis (Kwapinski. 2018), das 9 peças de cômodos existente na caixa do jogo, apenas 5 entram na partida, além de estarem sempre em locais aleatórios, sendo assim, temos um mapa modular. É possível concluir, portanto, que um mapa com peças modulares é um mapa variável, mas nem todo mapa variável possui, necessariamente, peças modulares.
Elemento #02: ASSIMETRIA
A assimetria pode estar presente e ser vista em diversos elementos, como:
a. Habilidades/efeitos que apenas um jogador possua: Diversos jogos apostam em habilidades e características diferentes entre jogadores como uma forma de elevar a rejogabilidade, afinal a experiência total e completa de um jogo se daria, pelo menos em teoria, a partir do momento que o jogador conseguisse experimentar as possibilidades de fenômenos por si mesmo. Aqui faço a seguinte indagação: assistir à uma jogatina é a mesma coisa que jogar? Eu acho que não, logo, não adianta ver o coleguinha na mesa utilizando uma habilidade que somente ele possui, eu preciso ter a experiência de utilizá-la também para ver como ela reage às minhas escolhas (e se me saio melhor que o coleguinha quando ele a utilizou). Essas habilidades podem ser exclusivamente provenientes de elementos que surgem durante a partida, tal qual cartas, fichas ou até locais de marcadores no tabuleiro, como vemos no jogo Ascension: Deckbuilding Game (Fiorillo; Gary. 2010), no qual cada jogador tem uma preparação exatamente igual e apenas durante a partida conforme compra e utiliza novas cartas que ganha novas habilidades, ou podem estar presentes desde o início da partida, como as facções de Terra Mystica (Drogemuller; Ostertag. 2012). Geralmente o mais comum é vermos nos jogos mais recentes justamente um misto entre ambas opções. Além disso, existem jogos totalmente assimétricos, no qual cada jogador não apenas possui diferentes habilidades, mas um conjunto completo de regras e mecânicas válidas apenas para ele, como em Root (Wehrler. 2018).
Observação importante: a utilização de recursos iniciais em diferentes quantidades para os jogadores é, geralmente, devido ao balanceamento do jogo, não pensando em sua rejogabilidade!
b. Ordem de ativação dos jogadores: Menos comum do que habilidades diferentes, a ordem de ativação dos jogadores na mesa também é uma forma de gerar uma assimetria entre as partes envolvidas, uma vez que a interação direta ou indireta das ações de adversários irá influenciar as escolhas e possibilidades de alguém. Essa ordem de ativação pode ocorrer de diversas formas, como a colocação de marcadores em um tabuleiro, reduzindo possibilidades, como visto com frequência em jogos de alocação de trabalhadores, por exemplo Lorenzo Il Magnífico (Brasini; Gigli; Luciani. 2016) ou mesmo através da disposição dos jogadores em volta do tabuleiro, tal qual existe em Conquistadores de Midgard (Howell. 2019). Uma categoria de jogos que não envolve diretamente a ordem de ativação, mas enquadro nesse item devido a necessidade de uma velocidade de reação dos jogadores aos estímulos envolve a mecânica em ‘tempo real’, uma vez que exigem que os jogadores tomem decisões rápidas, criando uma constante sensação de tensão, tendo a tendência de gerar uma necessidade de superação dos desafios em novas partidas, Dobble (Blanchot; Gille-Naves; Polouchine. 2009) é um exemplo disso, pois não existe limite de tempo e se dá melhor o jogador com a maior destreza e o olhar mais afiado, residindo a assimetria em aptidões físicas e mentais dos próprios jogadores (inclusive já participei de uma partida em que um dos jogadores praticamente nem jogou, só ficou olhando, pois não era veloz o suficiente ...é, isso pode ser um ponto negativo para o jogo também).
c. Objetivos dos jogadores: ‘Cumprir contratinho’ é um dos clássicos dos jogos modernos, apesar de objetivos poderem ser bem mais abrangentes que isso. Quando os jogadores possuem objetivos específicos para cumprir, eles acabam tendo a necessidade de tomar caminhos estratégicos diferentes entre as partidas, sejam para alcançar metas distintas em relação aos adversários ou cumprir uma mesma missão, porém com maior eficiência. Os objetivos variam bastante, afinal estão atrelados intimamente com as próprias possibilidades mecânicas de cada jogo ao qual pertencem, contudo existem alguns formatos mais comuns de apresentação de objetivos que não temos muito como fugir, sendo eles:
- Individuais: São objetivos que ficam à disposição de serem cumpridos apenas por um jogador;
- Coletivos: São objetivos abertos e que todos os jogadores tem acesso e podem realizar. Eles podem variar por ter acesso único, ou seja, apenas o primeiro jogador poderá realiza-lo e após isso fica indisponível ou então é aberto para todos os jogadores;
- Fechados: São objetivos cujo acesso à informação é limitado, ou seja, apenas um ou alguns jogadores sabem o que é para ser feito;
- Abertos: São objetivos nos quais todos jogadores presentes na partida sabem o que deve ser feito, independentemente se eles possam ser realizados apenas por um ou mais jogadores;
- Obrigatórios: São objetivos que o jogador é obrigado a fazer para a partida chegue ao final, independentemente se quem ativou esse gatilho de final de jogo foi o vencedor na pontuação final ou não.
- Não-obrigatórios: São objetivos que o jogador tem a opção de realizar, contudo, isso não é um requerimento para que ele vença a partida, ou seja, ele conseguiria vencer mesmo sem ter feito nenhum objetivo (por mais que seja pouco provável devido à relevância destes pontos no placar final).
Estes formatos de objetivos se agrupam gerando características bem próprias. Posso citar como exemplos os jogos:
- Objetivos Individuais Fechados Obrigatórios: Dead of Winter: Um Jogo de Encruzilhadas (Gilmour; Vega. 2014). Nele cada jogador possui um objetivo pessoal e ao final da partida, não importando o desfecho da mesma, só vencem os jogadores que conseguiram cumprir o que o objetivo ordenava.
- Objetivos Individuais Abertos Obrigatórios: Galera, não consegui pensar em nenhum jogo com estas três variáveis ao mesmo tempo, mas acho que devem existir. Quem souber algum, deixe nos comentários!
- Objetivos Individuais Fechados Não-Obrigatórios: Golem (Brasini; Gigli; Luciani. 2021). Aqui temo o mais comum e clássico de todos: algumas cartinhas com pontuações extras caso o jogador consiga fazer o que pedem até o final da partida. Se o jogador cumpriu um desses objetivos, recebe determinada pontuação, caso contrário, tudo bem também, só não acumula mais pontos.
- Objetivos Individuais Abertos Não-Obrigatórios: Lords of Waterdeep (Lee; Thompson. 2012). Buscando simular missões em que guerreiros de diversas categorias saem para se aventurar, em Lords of Waterdeep os jogadores irão se esforçar para juntar cubos, que representam esses guerreiros e enviá-los para missões variadas. Apesar do enorme impacto dessas pontuações no placar final, ainda assim existem outras formas de pontuar e o final da partida ocorre sempre ao final de uma quantidade pré-determinada de rodadas, ou seja, cumprir ou não os objetivos não é algo crucial para ativar o fim de jogo.
- Objetivos Coletivos Abertos Obrigatórios: The Red Cathedral (Cendrero; Santos. 2020). Diferentemente de Lords of Waterdeep, em The Red Cathedral não existe uma quantidade limitada de rodadas, ao invés disso, o jogo se encerra quando o primeiro jogador completa a 6ª carta de secção da catedral, algo que fica a vista e com informação aberta para todos os jogadores, fomentando uma corrida (que não necessariamente quem termina primeiro sempre vence!).
- Objetivos Coletivos Abertos Não-Obrigatórios: Chaparral (Macri. 2016). Este jogo nacional é um jogo que permite muita liberdade para os jogadores, que através da alocação de trabalhadores irão ter a possibilidade de cumprir diversos objetivos diferentes, todos abertos na mesa e da tal forma que exigem uma boa otimização da ordem com o qual os jogadores buscam realizá-los, contudo, a partida se encerra não apenas quando um jogador cumpre uma certa quantidade, mas também através de outro gatilho: o esgotamento de uma determinada pilha de cartas.
Nota: em relação aos Objetivos Coletivos Fechados, acredito que não exista nenhum jogo com essa característica, afinal se está fechado, não teria como ser coletivo!
Elemento #03: DIFERENTES CONDIÇÕES DE VITÓRIA OU DERROTA
Quando um jogo apresenta uma variedade de condições de vitória, é provável que existam diferentes formas dos jogadores abordagem suas estratégias. Em jogos competitivos geralmente o mais comum é o ‘quem tem mais pontos vence’, contudo em jogos cooperativos a existência de diferentes conclusões na partida é muito comum, principalmente no que tange a derrota, que pode vir de diferentes formas, forçando que o jogador fique atento com diferentes focos de atenção. O uso de cenários e missões variadas também contribuem, e bastante, para o fator rejogabilidade, principalmente os jogos que focam em contar uma estória. Alguns exemplos de jogos cooperativos, com diferentes condições de derrota ou vitória e cenários são Spirit Island (Reuss. 2017) e Kick-Ass: The Board Game (Hack; Pestrin; Vergendo. 2018).
Elemento #04: USO DE ELEMENTOS QUE GERAM ALEATORIEDADE
O uso de cartas sendo pegas de montes embaralhados, dados rolando pela mesa, marcadores sendo retirados de sacolinhas, preparações de partidas com informações ocultas que depois são reveladas (ou só montadas abertas mesmo e já era), entre outras escolhas de gamedesign entregam ao jogador uma visita ao inesperado, já que ele não sabe exatamente o que entrará em jogo e em qual momento. Com exceção de jogos onde a informação é sempre perfeita, ou seja, os jogadores sabem exatamente quais condições irão encontrar na partida, residindo a variabilidade durante o transcorrer do jogo oriundo das escolhas e ações do adversário, tal qual no clássico Xadrez (Sem autor. 1475) ou no moderno Patchwork (Rosenberg. 2014), a maioria dos jogos acaba utilizando de cartas, dados ou outros recursos físicos para que o jogador se depare com situações diferentes de partida em partida. Somente o elemento de aleatoriedade, contudo, não diz muito e, muito menos, é garantia de sucesso na rejogabilidade, então é preciso ser utilizado com muita cautela, pois é necessário observar que o excesso da aleatoriedade e sorte podem acabar tirando das mãos do jogador a responsabilidade sob suas escolhas durante a jogatina.
Alguns exemplos de elementos que geram aleatoriedade na prática:
Cartas: Em Kingdom Builder (Vaccarino. 2011) existem diversas cartas de diferentes de “Construtores do Reino”, que servem como condições para o jogador receber ouro, contudo apenas uma pequena parcela delas entram em cada partida. Além disso, o jogador em seu turno revela uma carta, a única que possui, e coloca construções em alguma área do mapa do mesmo tipo. O interessante a se observar neste jogo é que os jogadores não possuem uma mão de cartas, mas apenas uma única carta por turno, ou seja, o componente que permite ao jogador ter opções consiste no tabuleiro central, apesar das cartas de local serem aleatórias.
Dados: King’s Gold (Maurel. 2014) se baseia inteiramente na rolagem de dados, devido à ausência de ações, habilidades ou sequer algum outro componente fora os dados customizados e as moedas. Neste jogo, simples e acessível, cada jogador rola um conjunto de 5 dados, decide se vai fazer rerrolagens ou não, e depois escolhe alguma combinação possível dentre os resultados obtidos, com a finalidade de acumular moedas de ouro. Mais simples e direto, impossível.
Marcadores diversos: Geralmente marcadores fazem o papel de elementos de aleatoriedade quando presentes, abertos ou fechados, na preparação da partida. Em Village (Brand; Brand. 2011), além das peças de fregueses que são dispostas de forma aleatória, no início de cada rodadas diversos cubinhos coloridos que representam influência (e na prática são utilizados como recursos) são colocados em um saco de tecido e depois distribuídos pelas áreas das ações no tabuleiro central. O jogador quando desejar realizar uma ação do tabuleiro central deve recolher um cubo disponível, ou seja, é preciso que existam cubos e a cor que ele pegue lhe seja útil em momentos futuros, criando assim um mecanismo bem intrincado e diferenciado de gestão e uso de recursos, indo além apenas da colocação de peças cartonadas em locais variados do tabuleiro, como é mais comum ser visto nos jogos.
Interação Humana: Para mim o melhor exemplo de interferência humana em jogos está presente em Dixit (Roubira. 2008), no qual os jogadores olham para uma carta que contém uma arte cheia de estímulos visuais variados (em um bom português: uma ilustração maluca e abstrata) e precisam dar dicas para os jogadores descobrirem qual é a carta, porém sem serem óbvios ou obscuros demais. A regra do jogo é simples e a rejogabilidade reside justamente nas variadas possibilidades que a carta entrega ao jogador junto da própria limitação da criatividade humana, que beira o infinito.
Não irei me aprofundar mais que isso no assunto, uma vez que falar de aleatoriedade nos direciona a falar sobre diversas outras coisas como probabilidade, tipos de sorte e assim por diante (quem sabe um dia não volto com um texto apenas sobre isso). Por isso, vou deixar dois vídeos bacanas sobre o assunto para apreciarem depois que terminarem de ler esse texto (assim espero hehe):
Vídeo #1: Notas sobre Design de Jogos: Aleatoriedade – Canal Jogos no Tabuleiro. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=qj2WpE5qB0s. Este é um canal especializado em jogos de Portugal, dai o sotaque de Micael, o apresentador.
Vídeo #2: Sorte ou talento: O que é melhor pra ter sucesso? – Canal Daniel Martins de Barros. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=qWIBGnoi0nA. Daniel é um psiquiatra que fala de diversos assuntos relacionados com o comportamento humano, a psicologia e a psiquiatria, porém também aborda jogos, o lúdico e o processo criativo em seus conteúdos.
I.III MAIS UM POUCO DE COISAS QUE O DESIGNER PRECISA TOMAR CUIDADO

O gamedesigner precisa se atentar a mais algumas coisas importantes quando discutimos sobre rejogabilidade, que não envolvem exatamente abordagens mecânicas, contudo giram em torno da experiência do jogador. É preciso entender que o jogador sempre paga algum preço pelas decisões de gamedesign, e este custo será o que listarei abaixo:
Cuidado #1: O CUSTO EM GRANA PARA COMPRAR
O primeiro item da lista é o mais óbvio (mas nem por isso eu poderia ignorá-lo e o deixar fora do material), que se trata do custo financeiro. Quando o gamedesigner aposta em uma rejogabilidade baseada em muitos elementos físicos como cartas, tabuleiros, fichas e etc., o produto final irá ficar mais caro, pesado e com a necessidade de uma caixa maior, impactando transporte e armazenamento, além de custos com arte e impressão desses componentes todos.
Cuidado #2: O CUSTO EM TEMPO DE PREPARAÇÃO
O jogador precisa fazer uma preparação (setup) muito longa, com muitos componentes e detalhes para perceber a presença mecânica e/ou narrativa dessa rejogabilidade? É preciso que o gamedesigner entenda que o início da experiência se dá muito antes do primeiro jogador fazer seu primeiro movimento, começando com o jogo ainda lá na prateleira. Existem jogos em que a preparação parece um parto: a magia de dar vida ao jogo é maravilhosa, porém a experiência de arrumar tudo sobre a mesa pode ser um sofrimento angustiante para alguns, logo é preciso ponderar com sabedoria o quanto vale a pena fazer o jogador gastar minutos preciosos que poderia já estar jogando alguma outra coisa em detrimento de estar (ainda) preparando um jogo na mesa. Alquimistas (Kotry. 2014) é um jogo conhecido por ter uma preparação bem demorada e isso sendo que ele ainda usa um aplicativo para ajudar a definir uma etapa específica.
Cuidado #3: O CUSTO EM EXPERTISE PARA JOGAR
Pelas minhas observações ao longo do meu tempo de hobby, se existe uma coisa que não gera muito consenso com a galera é sobre o quão divertido é aprender regras, logo o tamanho da curva de aprendizagem que o jogador precisa dominar para jogar partidas futuras do jogo também importa, afinal irá custar ao jogador tempo para aprender variantes de regra, novos detalhes sobre elementos e coisas do tipo. O designer precisa entender que ler o manual é uma obrigação por parte do jogador (ao menos um deles), logo é a parte burocrática, são os meios, não os fins, não é a diversão propriamente dita e, salvo raros casos, não é o principal agente disparador de dopamina, então o gamedesigner fazer com que o jogador precise ficar recorrendo ao manual muitas vezes para detalhes específicos e pontuais devido à elementos que estão lá para aumentar a rejogabilidade, porém geram alguma complexidade adicional, pode ser um problema.
Outro aspecto relacionado à curva de aprendizagem se refere à necessidade de obrigar que os jogadores na mesa tenham um conhecimento prévio mínimo obrigatório para que a rejogabilidade seja possível, como a adição de módulos mais complexos. Não me refiro aqui a um balanceamento de handicap (traduzindo: uma compensação para os jogadores com menor vantagem por algum motivo), apesar de ser sempre de suma importância existir essa preocupação por parte dos designers, me refiro à possibilidade de se colocar um jogo na mesa, usufruindo de seus elementos que o tornam rejogável, com públicos com diferentes níveis de entendimento de como os mecanismos daquele universo em particular funcionam.
É comum neste hobby uma pessoa, geralmente a dona do jogo, ter algumas mesas de jogatina diferentes, jogando alguns dias com amigos, outro dia com o/a cônjuge e de vez em quando com familiares, então precisar que toda essa galera, mesmo quem já esteja acostumado com o hobby, precise de algumas partidas para que aí, e somente aí, algum módulo seja adicionado pode fazer com que essa obra encontre um obstáculo no seu caminho para o sucesso. Jogos de campanha, por exemplo, sofrem com essa dificuldade, apesar do motivador não ser exatamente a rejogabilidade, mas a necessidade de experiências sucessivas com as mesmas pessoas. Posso citar o Mice and Mystics (Hawthorne. 2012), que é o que alguns chamam de ‘RPG-in-a-box’ (tradução livre: ‘RPG-numa-caixa’), que consiste em uma longa aventura, com diversas missões, que contam uma história com começo, meio e fim. Jogos desse formato apresentam uma rejogabilidade baseada justamente em novos eventos, descobertas e mapas intimamente conectadas com o a história contada do jogo, de tal forma que se pessoa quiser, simplesmente jogar a missão 9 com uma turma, não irá conseguir aproveitar a experiência ao máximo, pois será como ver o episódio 9 de uma série que você não assistiu os episódios do 1 ao 8 ainda.
Cuidado #4: O CUSTO EM SENTIR UM MATERIAL INCOMPLETO
A frase: “Haaa, esse jogo é bom mesmo com o módulo X” me corta o coração e é um grande problema ao meu ver. Devido ao aumento das opções de jogos, os consumidores estão cada vez mais exigentes e a estante da vergonha (aqueles jogos parados na prateleira) para alguns não para de crescer, então ter uma experiência que deixe uma sensação de incompletude, necessitando partidas futuras para que o jogo cresça no coração das pessoas e mostre onde brilha é arriscado para o sucesso da obra. O jogo precisa ter uma rejogabilidade inerente que não atrapalhe a sensação dos jogadores terem captado quais caminhos e possibilidades poderiam ter seguido, por mais que tenham escolhido não o fazer nesta partida específica. Um jogo que posso citar que possui essa característica é As Tabernas do Vale Profundo (WARSCH. 2019), no qual existem diversos módulos e um sempre funciona como complemento do outro e quando jogamos o módulo mais avançado acabamos percebendo o quanto raso fica apenas o ‘módulo básico’. Minha recomendação para jogadores experientes que costumam jogar um mesmo jogo poucas vezes: joguem logo de cara com tudo que a caixa tem a oferecer! Se ficar muito denso e difícil para sua turma, talvez seja melhor partir para outros jogos mesmo.
I.IV NÃO ACABA QUANDO TERMINA

Quando um jogo é comercialmente bem sucedido e o público apaixonado sentiu que já exauriu as possibilidades, ele clama por mais! O designer (e toda equipe) nesse momento tem a opção de se dar a árdua tarefa de lançar conteúdo novo. Essas caixinhas, caixas ou caixonas adicionais precisam trazer mais conteúdo, mais novidades, possibilidades e experiências, porém sem perder a essência da obra original. Existem algumas opções do que podem ser lançados no mercado e são elas:
Extra#1: EXPANSÕES
Geralmente quanto mais conteúdo, melhor vista aos olhos dos consumidores, porém a quantidade de conteúdo é bem variável, podendo trazer pouco, média ou uma grande gama de novidades. Existem expansões que trazem apenas mais conteúdo para o jogo-base, porém sem mudar a estrutura original do jogo-base, como Elder Sign: Unseen Forces (Launius; Wilson. 2013), outras que adicionam módulos que mudam o jogo drasticamente, por exemplo, Pandemic: À Beira do Caos (Leacock; Lehmann. 2009) que possui uma variante que transforma o jogo em todos-contra-um, assim como existe o meio termo, aquelas expansões que são legais, mas não adicionam muito (que é a grande parte do que existe no mercado, para falar a verdade).
Não vou me estender mais em expansões, pois acho que é possível fazer textos apenas sobre isso no futuro. O importante aqui é percebermos o quanto são importantes e devem ser lembradas quando falamos de rejogabilidade, principalmente se referindo à elementos adicionais.
Extra#2: CONTEÚDOS ESTÉTICOS ADICIONAIS
Esse tópico é polêmico! Tem muita editora que acaba lançando material extra que não necessariamente melhora a rejogabilidade pelo viés mecânica do gamedesign, mas consegue dar uma sobrevida à jogos ao adicionar elementos estéticos personalizados. Esse tópico dialoga muito com o papel da arte na obra, como já discutido em tópico anterior. É aquilo: usar o Anachrony: Conjunto de Miniaturas de Exoesqueletos (Amann; Peter; Turczi. 2017) ou as miniaturas em 3D pimpadinhas de Terraforming Mars: Big Box (Fryxelius. 2021) fazem diferença? Vai variar de pessoa para pessoa. O interessante desse ponto também é o fato de existir uma infinidade de opções feitas por fã, disponíveis gratuitamente na internet para fazermos em casa ou mesmo comercializadas de forma artesanal (como miniaturas em 3D), aumentando a gama de opções e a acessibilidade para a galera.
Extra#3: PROMOS
Promo é na prática uma coisa que não deveria ser, na minha opinião. O termo promo deriva de ‘promocional’, ou seja, alguma coisa, como uma carta, que serviria para promover e divulgar a obra e sua marca, logo, deveria ser um elemento que seria distribuído gratuitamente, como cortesia, para os clientes. Contudo, como nesse nosso hobby tudo é limitado e, na maioria das vezes, de difícil acesso, as ‘promos’ acabaram ganhando um viés muito mais comercial. Existem promos que são um item único, como uma só carta, por exemplo, Misty: Arco e Flecha (Fay. 2020) que foi distribuída gratuitamente pela editora, até conjuntos inteiros de conteúdo extra, tal qual Spirit Island: Penas e Chamas (Reuss; 2022), vendido à parte do jogo, sendo um pacote com dois kits de materiais originalmente promocionais.
Extra#4: CONTEÚDOS EXTRAS TEMPORÁRIOS OU POR CONDIÇÃO
Esse item é importante para esclarecer uma coisa: Promo é promo, extra de financiamento é extra de financiamento (não expliquei, né?). O que quero dizer é que existe no mercado uma certa mistura entre essas duas coisas. ‘Promo’, como eu disse no tópico anterior, é um material extra, geralmente pequenino, usado para promover o jogo (aliás, a editora nacional Papergames costuma fazer isso muito bem nos eventos que participa), já ‘extras’ são elementos que fazem parte de um pacote especial, geralmente obtido com condições específicas, como ter participado de alguma campanha de lançamento do jogo. O Fields of Green: Kickstarter Promo (Bagiartakis. 2016) é um exemplo da confusão: ele consiste em um pacote com diversos conteúdos que foram gerados no financiamento coletivo do jogo, tem até uma caixinha bem bonitinha e de boa qualidade, mas nela está estampado PROMO. Poker face aqui, afinal o negócio é basicamente um extra de financiamento, com conteúdo equivalente a uma expansão e vem escrito ‘promo’ na caixa. Bagunça, desilusão, caos.
II. O PAPEL DO JOGADOR
II.I O NOSSO NA RETA

Um maluco certa vez cantou: ‘
É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro, evita o aperto de mão de um possível aliado, convence as paredes do quarto e dorme tranquilo’ (música: Por Quem os Sinos Dobram - Raul Seixas e Oscar Rasmussem. 1979) e essa parte do texto é sobre isso, sobre a nossa responsabilidade como jogador quando nos deparamos com um jogo. Não que esse assunto envolva exclusivamente o fator rejogabilidade, porém é impossível falar sobre sensações provocadas por uma obra nos indivíduos sem olhar, ao menos um pouco, para esses indivíduos. Neste capítulo, portanto, trago elementos importantes para serem questionados pelos jogadores quando analisam se um jogo proporcionou (ou irá proporcionar) uma rejogabilidade satisfatória e como podemos reagir a isso.
Responsabilidade #1: NÃO SOFRER REPETIDAS VEZES
Eu começo simples: se o jogo é ruim para você, do que vale ele ter rejogabilidade?
Falando direto e reto: não adianta a equipe toda produzir um jogo com rejogabilidade supimpa se a mecânica central para você é tosca. A primeira experiência é muito importante, tal qual apresentado nos itens Cuidados #3 e Cuidados #4 deste texto, então se você, colega de hobby, jogou algo e não gostou, não era tua cara: desencana! Não se force a jogar algo várias vezes por ser ‘o que está no hype’, ‘famosinho top de listas’ ou ‘mas é de um designer que amo tanto’. Parta para outra, pois algo que não falta nesse hobby é jogo bom.
Responsabilidade #2: NÃO RECLAMAR DA SAUDADE DO QUE NÃO VIVEU
Aqui é uma duplinha de indagações: Quantas vezes e com qual frequência, realmente, você coloca o mesmo jogo na mesa? Quantos jogos vocês possuem na prateleira esperando sua vez de ver mesa?
Se você é uma pessoa que compra muito, vende muito, tá sempre que possível em eventos e tem muitos amigos que fazem tudo isso também, provavelmente você é daqueles que só joga um jogo muitas vezes seguidas se ele realmente faz seu coração bater mais forte. Sendo assim, a rejogabilidade acaba sendo uma preocupação secundária ou até preocupação nenhuma. Mesmo para quem faz tudo isso e, ainda assim, vê a rejogabilidade como algo crucial, é preciso observar se está aproveitando de verdade o que os jogos que possua tem a oferecer. É melhor ter um jogo, mesmo que por um curto período de tempo, que irá se divertir apesar da baixa rejogabilidade, do que ter um jogo com uma alta rejogabilidade que irá ver mesa poucas vezes. Eu vivi exatamente isso com o jogo
As Lendas de Andor (Menzel. 2012) que é visto como um jogo com baixa rejogabilidade devido ao fator linear da história: comprei, joguei uma vez e gostei, joguei todas as missões, baixei missões da comunidade, fiz alguns materiais de fã, joguei mais um pouco e depois de um tempo, vendi. Sem remorsos, sem tristeza e com leveza no coração parti para outra.
Indo na contramão de compra-joga-vende, existe a opção de comprar, jogar e deixá-lo relaxando na prateleira para que seja jogado só no futuro. Existem jogos que deixam a sensação de baixa rejogabilidade, porém devido ao espaçamento de tempo que eles veem mesa, as estratégias, táticas e estórias que eles contam voltam a entregar a sensação de prazer quando revisitados.
Above and Below (Laukat. 2015) é um jogo com um elemento de narração de histórias (
storytelling) muito forte, no qual o jogador realiza uma ação de exploração, rola um dado e outro jogador lê um parágrafo em um livro e pode ser que aconteça, em partidas futuras, que você passe por algo que já passou antes (apesar de pouco provável devido a alta quantidade de historinhas). Isso soa como anticlimático, porém se o jogo vê mesa a cada 3 meses, dificilmente você irá lembrar de tudo que aconteceu.
Por fim, mas um cenário existente, temos os jogos com começo, meio e fim, como o já citado Mice and Mystics ou outro jogo do mesmo autor,
Stuffed Fables (Hawthorne. 2018), onde os jogadores controlam miniaturas e passam por aventuras descritas em um livro (literalmente, pois um livro, com páginas encadernadas mesmo, faz a função de tabuleiro central). Por mais que esses livros e a mecânica em si possam entregar variáveis, ainda assim a sensação de rejogabilidade é como se tivéssemos visto um filme ou série de novo. Falando por mim, eu não tenho nenhum problema com isso e estou acostumado que me bata uma saudade e ir rever um filme ou série antiga. Aqui, novamente, estamos falando de gostos pessoais e como encaramos e lidamos com a mídia dos jogos de tabuleiro. Existe espaço para tudo, de jogos com alto fator de rejogabilidade para jogos de experiências únicas, como a série de jogos de mistério
Histórias Sinistras (Bosch. 2004 – Conhecido também pelo título original ‘Black Stories’).
Responsabilidade #3: RECONHECER QUE ALGUM JOGO NÃO É PARA O NOSSO PERFIL
Questões da vez: você é do tipo de pessoa que gosta de novidades ou prefere explorar mais a fundo uma mesma obra? Você é do tipo mais competitivo ou prefere passear e cheirar as flores?
“Conhece-te a ti mesmo” era uma frase que estampava a entrada do templo do deus Apolo, na Grécia antiga, segundo a internet (que sabe de tudo e se está aqui, está certo). Brincadeiras à parte, conhecer nossos gostos é fundamental, porém isso é demorado e caro, dependendo de muitas horas de jogatina e com os mais variados jogos possíveis. É comum, infelizmente, vermos alguém na internet proferindo opiniões sobre o quanto um jogo é ruim, sendo que o problema não são as escolhas de design em si, mas a falta de congruência entre o perfil do jogador e as características do estilo que o gamedesigner decidiu adotar para obra. Exemplificando com mais um relato pessoal, posso dizer, sem medo de represálias, que não gostei de
Twilight Imperium (4ª edição) (Petersen; Beltrami; Konieczka. 2017)! O jogo é ruim? Não. Tem escolhas ruins? Não. É mal produzido? Só na tradução BR. Não gostei por qual motivo, então? 8, OITO, horas de duração, com uma sensação que me frustra de cria-coisa-rola-dado-perde-coisa. Eu sou um cara de jogos de peso mais mediano, até duas horas de duração e com um fator sorte mais mitigável, interação humana não tão expositiva ...um verdadeiro empurrador de cubinhos. Saber disso é importante não apenas para que eu não saia falando mal de jogo que não gostei sem que o designer tenha tanta culpa, mas também para que eu não entre em furadas sem querer, já que sabendo como é um determinado jogo pelo resumo de algum texto, vídeo ou pessoa, eu já sei se vale a pena investir meu tempo e dinheiro naquilo.
Uma dica legal para quem quer se conhecer um pouco melhor (espero que sejam todos) é conhecer e responder a um teste criado pelo Dr. Matthew Barr, batizado de Bartle’s Taxonomy. Ele foi criado pensando em um ambiente de jogos digitais multijogador online, contudo é bacana em geral e com a devida precaução dá para fazer um desdobramento do resultado para jogos de tabuleiro. Para saber mais sobre este teste acesse:
https://playreplay.com.br/descubra-perfil-jogador-teste-bartle/?amp. Para realizar o teste (em inglês) acesse:
https://matthewbarr.co.uk/bartle/.
III. O PAPEL DO MERCADO
III.I O SISTEMA É BRUTO

De nada adianta existir uma boa ideia se ela não sair do papel. Um jogo Ser acessível é fundamental e com isso me refiro tanto a questão financeira (o custo dos jogos) como à visibilidade dos produtos, afinal não adianta algo ser bom e barato, se ninguém sabe da existência daquilo. Quando falamos sobre jogos em geral é indissociável pensar no impacto do mercado, assim como precisamos entender a mente do jogador. Dentro do aspecto de rejogabilidade, portanto, enxergo o papel do mercado presente das seguintes formas:
Impacto #1: O PREÇO DE UMA ESTANTE CHEIA
O preço praticado por editoras, lojas e projetos de financiamento coletivo é um dos maiores responsáveis por filtrar a quantidade de opções que as pessoas possuem para jogar em casa. A rejogabilidade, por estar relacionada com a quantidade de vezes que um jogo consegue ver mesa, irá estar conectada com a quantidade de jogos que disputam espaço nas jogatinas, logo quanto mais acessível e condizente com a realidade dos consumidores os jogos estão, maiores as chances de mais jogos serem adquiridos, diminuindo a necessidade da apresentação de uma alta rejogabilidade de um único produto, uma vez que ele irá ser revisitado menos vezes em um maior espaçamento de tempo. Eu sou uma criança que viveu nos anos 90 e por mais que eu adorasse jogar Perfil 4 (Mednick; Moog. 1988) e Uno (Robbins. 1971), minhas experiências acabavam se resumindo nesses poucos títulos não apenas devido a existência de menos opções no mercado, mas também pelo fato de não ter condições de adquirir outros jogos (nota: o colecionismo não seria um reflexo de nossas vontades insaciadas quando jovens? Não sei, mas deixo o assunto para outro dia). Foram citadas editoras e lojas, mas não podemos deixar de fora o Governo e serviços de entregas, que também atuam diretamente sobre a precificação, sejam na implementação de impostos ou na oferta de serviços com valores que não contemplam adequadamente algumas regiões do país.
Impacto #2: A PROPAGANDA É A ALMA DO NEGÓCIO
Se um dia os jogos ficarem com os preços acessíveis, ainda assim de pouco adianta se ninguém souber que o hobby existe. Criadores de conteúdo, sites especializados e eventos possuem parte da responsabilidade de transmitir informações sobre a existência desse maravilhoso mundo, assim como as propagandas feitas por parte das editoras e lojas. Por mais que a experiência real ocorra efetivamente apenas quando o jogador entra em contato com o jogo, o acesso a informações de material como regras e opiniões sobre os jogos ajudam os consumidores a entender características do produto e se elas se aproximam do que eles curtem (uma vez que eles aprenderam a reconhecer o que se encaixa em seu perfil).
Possuir dados claros sobre o quanto um jogo possui de elementos que entregam uma rejogabilidade é útil para que o consumidor não caia em ciladas. Onde quero chegar é na indagação que, por exemplo, talvez o mérito do jogo Truco (Sem autor. Sem data definida) não seja, em verdade, que seu design é incrível e repleto de opções que privilegiem a rejogabilidade, mas que as pessoas que se acostumaram a jogá-lo noites a fio o faziam por conhecer poucas outras opções que achassem tão divertidas quanto! Eu mesmo já fui uma dessas pessoas, que por não conhecer outras opções achava Damas (Sem autor. 1150) a mais complexa obra de engenharia tabuleirística e hoje, com mais de 550 jogos experimentados, percebi o quanto estava limitado por pura ignorância (no sentido de falta de conhecimento mesmo).
CONCLUSÃO

Não é fácil abordar o tema rejogabilidade, afinal ele transpassa por um misto de princípios técnicos, teóricos e pela própria experiência humana. É possível perguntar para duas pessoas o que elas pensam sobre o mais clássico e famoso de todos jogos de mesa, o Xadrez (Sem autor. 1475), e termos respostas completamente distintas, sendo que não necessariamente ambas estejam certas ou erradas. Pensar através desse modelo empírico, contudo, se faz necessário para que não sejamos vítimas de uma exagerada e falsa sensação de conhecimento, principalmente no que tange um olhar mais crítico sobre o campo das artes, coisa que jogos de tabuleiro, apesar de serem principalmente obras que visam o entretenimento, estão bem próximas. Ser rejogável, portanto, vai um pouco além da presença de certos elementos e mecanismos, mas também depende de outros fatores externos à obra em si, como a expectativa e experiência dos próprios jogadores e a acessibilidade e informação.
No final, o que fica de aprendizado, pelo menos para mim, é que um jogo ter ou não uma grande rejogabilidade não é uma obrigação, afinal existem dois fatores cruciais para o entendimento desta característica:
A. O primeiro está relacionado com a ideia por trás da produção, ou seja, que se passava na mente do gamedesigner, algo que ninguém fora ele mesmo irá conseguir saber, de tal forma que só nos cabe criticar efetivamente algo caso exista evidência sobre a premissa e a mesma não tenha sido devidamente atingida na percepção dos jogadores. Essa evidência pode existir de forma objetiva, como declarações do autor, ou subjetivas, observadas através de escolhas de gamedesign presentes no produto;
B. O segundo se refere ao quanto nós, jogadores, estamos abertos e nos entregamos verdadeiramente para a experiência que a obra nos proporciona. É muito comum nos preocuparmos demasiadamente com o futuro, atrapalhando um olhar genuíno do presente, de tal forma que acabamos nos prendendo em questões como ‘o quanto esse jogo é rejogável’, sendo que, na verdade, independente dos elementos que tragam rejogabilidade, após algumas partidas ainda estaremos longe de usufruir de tudo que um jogo tem a oferecer, mesmo em sua apresentação mais básica, ou então nem sequer chegaremos a colocar um determinado jogo na mesa uma quantidade de vezes a ponto de todos elementos que entregariam uma alta rejogabilidade terem sido nos apresentados.
Então, é isso, galera! Espero ter conseguido agregar um pouco de conhecimento, ou ao menos uma sementinha de reflexão, ao trazer um olhar mais fenomenológico ao ato de jogar. Fazer um jogo com uma alta rejogabilidade não é algo simples para os gamedesigners, porém grokar (na gíria, seria como ‘entender por completo’) um jogo também não é tarefa rápida, que levaria poucas partidas. Quem faz a rejogabilidade somos nós também, quando criamos postagens, apreciamos cada detalhe da arte, elaboramos material de fã, tentamos entender a lógica por trás das escolhas de design e assim por diante.
Abraços digitais!
Um texto de
Raphael Gurian
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