Caros boardgamers
Dêem uma olhada nessa história.
Uma grande editora internacional, a Awaken Realms, lançou um jogo muito bom, com miniaturas muito legais, e que fez muito sucesso. Como de praxe, ela licenciou o jogo para ser lançado em um país de língua não-inglesa, por uma editora nacional, devidamente localizado, e no idioma daquele país.
Essa editora local investiu pesado em propaganda, mandou cópias do jogo original para youtubers com canais de jogos, montou um financiamento coletivo, cobrou uma “pequena fortuna” pelo apoio, mas arrecadou muito dinheiro, e coisa e tal.
Tudo ia de “vento em popa” até que os apoiadores começaram a receber suas cópias, e aí começou o drama. Na edição local (eu já falei que ela custou uma “pequena fortuna”, não falei?!?!), vários componentes vieram com defeito. Isso aconteceu principalmente com as cartas, sendo que algumas vieram com tradução questionável, e algumas com o texto errado impresso. Outras cartas vieram com verso em cores diferentes, entre si, e também em relação ao jogo original, o que inviabilizava o uso de expansões importadas (é rapaziada, o bicho pega, e não é só aqui em terras tupiniquins não!!!).
Tão logo os problemas do jogo foram descobertos, os consumidores irados começaram a reclamar, a mandar e-mails para a editora, a escrever “posts” inflamados, nos sites locais de board games (juro que dessa vez não fui eu), entre outras formas de expressão de descontentamento. A editora simplesmente ignorou todas as reclamações, não falou em reposição de material defeituoso, e até onde eu sei, nem mesmo se desculpou pelos seus erros, fingindo que o assunto não era com ela, no melhor estilo: ema, ema, ema, cada um com seus “pobrema”.
Essa situação parece familiar para vocês? Porque que para mim parece. No entanto, não é do Nemesis, nem da Galápagos, e nem do Brasil, que eu estou falando, e sim do Tainted Grail, lançado pela Summon Games, na Coréia do Sul.
Mas as semelhanças acabam por aqui, porque vejam só o desenrolar da trama.
Como a editora local não deu a menor importância para as reclamações dos boardgamers, eles decidiram partir para a ação. Eles entram no BGG e começaram a dar nota “1”, no Tainted Grail. Com isso, o ranking do jogo começou a cair, e muito rápido, praticamente de uma hora para outra.
Só depois disso é que a editora local resolveu tomar uma providência. E qual foi essa providência? Por incrível que pareça, a Summon Games, a editora coreana, soltou um comunicado chamado os consumidores que davam nota “1” no Tainted Grail (prestem bem atenção), de terroristas. Eu vou repetir em caixa alta para não ficar dúvida, porque é difícil de acreditar: A EDITORA CHAMOU SEUS CONSUMIDORES DE TERRORISTAS, e que ela não faria nada, justamente porque não negociava com terroristas. Nesse caso, até quem não deu nota “1” no jogo acabou entrando no mesmo “balaio do terror”.
E não parou por aí. A cereja do bolo é que a Summon Games, não satisfeita de igualar os boardgamers coreanos a Osama Bin Laden, a editora ainda por cima, ameaçou processar, quem desse nota “1” ao Tainted Grail, no BGG. Sinceramente eu não sei nem se é possível, e nem como é que se processa alguém, apenas por dar uma nota ruim a um produto na internet, mas nesse caso, como tudo na vida, o que vale é a intenção. Essa atitude da editora coreana chocou o pessoal do BGG, que mesmo ainda não concordando com os boardgames coreanos, passaram a pelo menos entender o seu descontentamento e a sua reação.
Só quando o imbróglio atingiu essas proporções “godzillescas”, é que a Awaken Realms, resolveu dar uma “awakenzada” (ok eu reconheço que essa piada não foi das melhores!!!), e entrou no meio da discussão. Com a queda repentina do Tainted Grail, no ranking do BGG, a Awaken Realms se pronunciou, através de um comunicado oficial sobre o problema e quem quiser conferir, procurem no site da BGG por “official statement regarding Korean version game”, ou acessem o link abaixo, mas tem de estar com o CCAA em dia, porque está tudo na língua do famoso bardo bretão. O link é esse aqui:
Nesse comunicado a Awaken Realms diz que, entende a situação do pessoal da Coréia e se solidariza, mas que não é justo, dar notas ruins e baixar o ranking do jogo, porque o Tainted Grail é um bom jogo e a Awaken Realms não pode ser penalizada pelo erro da editora local. E editora finaliza no melhor estilo dramalhão mexicano, nós vamos responder, mas por favor, mudem essa nota ruim, porque isso parte o nosso coração (ela só disse que isso também afeta o prestígio do jogo, e da empresa, mas é melhor não tocar nesse assunto)
Os boardgamers coreanos responderam, com muita propriedade, que realmente eles estavam dando a nota, com base na experiência que a versão coreana do jogo lhes proporcionava, e que essa era uma experiência muito ruim, logo a nota do jogo seria de acordo com essa experiência. Eles diziam também que esse era um problema para a Awaken Realms apurar, junto à editora local que produziu o jogo. Além disso, mesmo concordando, que isso talvez não fosse tão justo, os boardgamers coreanos argumentaram, e com razão, que aquele foi o único meio encontrado para que suas reclamações fossem ao menos ouvidas. Caso a Summon Games tivesse se mostrado disposta a dialogar e a resolver o problema, nada daquilo seria necessário, mas a editora coreana soube do problema e não fez nada. Os coreanos finalizam dizendo que após os problemas terem sido resolvidos, eles mudariam a nota do jogo. A Awaken Realms disse que iria investigar e estudar soluções possíveis para o impasse. Eu retirei essas considerações de diversos posts, de diversas pessoas, porque não existe um porta-voz de um movimento organizado, que fale por todos.
Agora, pensem comigo. Se os boardgamers coreanos não tivessem agido como agiram, e causado um impacto real, sobre o prestígio do jogo, suas reclamações continuariam a ser ignoradas e a Awaken Realms jamais teria sabido dos problemas que o jogo teve na Coréia do Sul. Os boardgames coreanos estariam reclamando até agora e, absolutamente nada teria acontecido. Mas como eles tomaram uma atitude, e que surtiu efeito, pelo menos as empresas envolvidas começaram a se mexer e a participarem de alguma forma.
E o que isso tem a ver com a nossa realidade brasileira, ou, melhor dizendo, o que os boardgamers brasileiros têm a aprender com suas contrapartes coreanas?
Antes de responder a isso, vamos dar uma olhada nos dois países. O Brasil tem 8.515.767 de Km², enquanto a Coréia do Sul tem apenas 100.339 Km². O Brasil tem uma população de 210.147.125 habitantes, enquanto que a Coréia do Sul possui uma população de 51.446.201 habitantes. Os dois países têm um PIB próximo, o da Coréia do Sul em 2020 deve ficar por volta de 1,6 trilhão, e o do Brasil em cerca de 1,4 trilhão. Vale lembrar que a Coréia do Sul só alcançou um PIB maior que o nosso, agora, em 2020, devido ao grande impacto da pandemia sobre a nossa economia, mas até 2019, o PIB brasileiro era maior.
Além disso, existem grande diferenças culturais, porque os coreanos são mais reservados, enquanto os brasileiros são mais festeiros, o que facilita a expansão do mercado de boardgames. Isso sem falar que como a Coréia do Sul não é um país muito grande, em termos de território, os espaços são muito caros e normalmente as casas coreanas são, em média, menores que as residências brasileiras. Isso torna mais comum que os coreanos joguem boardgames em cafés especializados, por não terem onde guardar grandes coleções de jogos em casa. Todos esses indícios levam a crer que o mercado de boardgames no Brasil é superior em tamanho, ou no mínimo igual ao da Coréia do Sul.
Então como é que os coreanos conseguem despertar o interesse de uma grande editora internacional, a respeito da má qualidade, da versão local de um dos jogos licenciados, e nós não. O que os coreanos têm que nós brasileiros não temos, ou melhor, o que é que eles fazem que nós não fazemos?
Vamos imaginar um troca-troca (mas sem levar para o lado da malícia ou da sacanagem, porque pode ter criança lendo), da seguinte forma, vamos trocar:
- Coréia do Sul por Brasil;
- Summon Games por Galápagos;
- Tainted Grail por Nemesis;
- Awaken Realms não precisa trocar porque é a mesma editora;
No caso da Coréia do Sul, a Awaken Realms só entrou na peleja agora no final de 2020 (o post oficial da editora sobre o assunto, no BGG, está datado de 23/11/2020), mas tenho certeza de que, desde que ficou sabendo do problema, a empresa já estava querendo comer o fígado da Summon Games, bem como, outra parte dela, que se localiza mais para baixo e mais para trás. Isso não apenas pelos erros de produção, mas principalmente pelo péssimo gerenciamento da crise. Além disso, não sei se a Awaken Realms vai forçar a Summon Games a repor os componentes com defeito, porque, pelo visto, é muita coisa para isso ser viável. Mas, antes de licenciar qualquer outro jogo para a Summon Games, e apenas SE isso vier a acontecer no futuro, a Awaken Realms certamente vai tomar todos os cuidados, inclusive contratuais, para garantir que os próximos lançamentos vierem absolutamente se nenhum erro, e caso isso ocorra a Summon Games faça a reposição sem pestanejar. Muito provavelmente, esse tipo de exigência deve se estender para outras editoras internacionais de grande porte, em relação a eventuais parcerias com a editora coreana.
E no Brasil?
Bom, no Brasil, as pessoas pagam R$ 1.000,00 em um jogo, quem vem cheio de defeitos, aí, apenas um ou outro reclama no Ludopedia. Se o barulho for suficiente, a editora brasileira responde dizendo, “foi mal galera, a gente pede desculpas, mas não vamos limpar nossa cagada nem a pau, e é isso mesmo, agora tomem aqui essa errata, e parem de encher o saco”. Com essa resposta fica todo mundo, mais ou menos, satisfeito, e só um ou outro continuam resmungando. Mas basta a editora anunciar mais um lançamento, que toda a comunidade fica eriçada, para gastar mais uma cacetada de dinheiro, em um jogo com alta chance de vir com defeito, como é o caso desse novo “It’s a Wonderful World” (antes de me esculhambar, saibam que apesar de não acreditar nisso, eu quero que esse jogo venha 100% correto, e se isso ocorrer, coisa que eu não creio, serei o primeiro a comemorar). E quem reclama ainda fica sujeito a ouvir coisas do tipo “o dinheiro é meu, e eu faço o que eu quiser com ele”, ou “não está contente, não compra o jogo”. Eu acho que todas as duas posturas têm a sua razão, mas é por conta de atitudes como essas, que a qualidade do boardgame nacional vai ficando cada vez pior, apesar dos jogos saírem cada vez mais caros.
E nós nem sempre fomos assim, tão conformados. Quem já está por aqui há algum tempo, vai se lembrar do caso do “Tsukiji”. A Redbox fez o financiamento coletivo, todo mundo comprou o jogo, e ficou esperando. Entra ano, sai ano, a Redbox dizia, “o jogo já está pronto, nesse natal vocês recebem”. Vem o natal, vai o natal, e a Redbox dizia “gente o jogo já chegou só falta liberar na Receita Federal”, e toma mais espera na cabeça do apoiador. Finalmente a “surpresa”: o jogo foi vendido em Essen, na Argentina e no Chile, antes das cópias chegarem para os apoiadores brasileiros que financiaram o projeto. Reza a lenda que o navio que vinha com as cópias brasileiras esbarrou no Kraken e afundou, enquanto os navios para a Alemanha e para a Argentina seguiram viajem incólumes. Coisa semelhante aconteceu com o “Ancient Terrible Things”, cujo atraso, na entrega do jogo, foi tão além do tempo previsto no financiamento, que as pessoas já tinham até esquecido do jogo, quando receberam suas cópias. E olhe que estou falando de anos, e não de meses ou semanas, e ainda por cima sem nenhuma satisfação por parte da editora.
Como resultado da atuação da editora nesses dois casos, entre outros, diversas cópias dos jogos foram devolvidas, quem conseguiu pegar o dinheiro de volta, não pensou duas vezes, a Redbox foi devidamente execrada publicamente, as pessoas diziam que preferiam importar os futuros jogos que a empresa lançasse, mesmo que gastando mais, só para não dar dinheiro para a editora, e por aí vai. O nome da Redbox ficou tão queimado, mas tão queimado, que ela teve de desistir de uma marca consagrada, com anos de mercado, principalmente no setor de RPG, e precisou até mudar de nome, virando Buró Editora, para continuar no mercado de board games. E olha que o Tsukiji (que eu não tenho) e o “Ancient Terrible Things” (que eu tenho), não vieram com nenhum defeito de produção, pelo menos até onde eu sei.
Hoje, nós temos editoras que não tem a menor preocupação se o jogo terá defeito ou não (Western Legends, Ilha do Tesouro, Masmorra do Mago Louco, Nemesis, entre muitos exemplos), e nem cogitam a possibilidade de consertar esses defeitos. Quando muito a editora produz uma errata, e a maioria fica feliz, como se a editora tivesse feito um grande favor, para os compradores dos seus produtos. Se sujeitar a jogar um jogo, que custou quase R$ 1.000,00, tendo que ter uma errata do lado, vocês me desculpem, mas eu acho o cúmulo da falta de amor próprio.
Então eu acho que é isso, que nós podemos aprender com os coreanos, ou seja, que antes de exigir respeito, ou até mesmo, esperar respeito, nós temos que respeitar a nós mesmos, em primeiro lugar. Se nós não nos respeitarmos, ninguém o fará.
Para terminar, é muito duro concluir isso, mas a vida nos ensina, que quando uma pessoa é desrespeitada, contínua e repetidamente, e ainda assim não faz nada para mudar isso, ela nunca deixará de ser desrespeitada, e o que é pior, talvez, ela realmente não mereça respeito algum.
Pensem nisso antes de comprarem o próximo lançamento do mês.
Um abraço.
Iuri Buscácio