Linauro::Por: Linauro. Apaixonado por literatura, música e jogos, desde sempre. Descobriu nos jogos de tabuleiro uma desculpa perfeita para passar mais tempo com amigos e pessoas amadas.
Caro
Linauro
Meu camarada, seu texto está um verdadeiro primor, e confesso que senti uma certa "inveja intelectual saudável", no sentido de ter gostado tanto, que esse é daqueles artigos que a gente gostaria de ter escrito. Dito isso, você não faz ideia do tamanho da minha satisfação de ter sido citado não apenas uma, mas duas vezes nesse excelente texto.
Quanto ao Puerto Rico, esse é um board game que dispensa comentários. Conforme você muito bem citou, esse é um jogo com mais de 20 anos de lançado. Mas mesmo depois de tanto tempo, ele ainda é muito jogado, muito apreciado, muito comentado e ainda é uma das principais referências em jogos euro ou econômicos. Nesse sentido, eu penso que o Catan pode até ter sido o jogo que originou toda a Era dos Jogos Modernos, e disso não há nenhuma dúvida ou discussão possível. Porém, diversos outros jogos foram igualmente fundamentais para consolidar essa nova forma de encarar algo tão antigo, como jogos de tabuleiro, e revolucionar um forma de entretenimento milenar, o que é uma façanha verdadeiramente magnífica. Eu falo de jogos como Carcassonne, Tigris & Euphrates, El Grande, Tikal, e, evidentemente, como não poderia deixar de ser o Puerto Rico.
Por outro lado, obviamente, o fato do Puerto Rico ser esse verdadeiro colosso de board game, do qual eu gosto muito e admiro, não implica em relevar a polêmica do seu tema. Assim sendo, independente das inúmeras qualidades do jogo, e elas são muitas, eu não consigo nem mesmo entender, e muito menos aceitar, que em pleno século XXI, uma pessoa se sinta à vontade jogando um board game em que interpreta o papel de um senhor de escravos, uma realidade que existia até um século e meio atrás, que historicamente é muito pouco tempo. Se nós considerarmos que racismo é crime, e que deveria ser algo muito mais reprovável do ponto de vista social do que é, interpretar o papel de um escravagista, deveria nos causar a mesma ojeriza, asco e aversão, quanto jogar um jogo interpretando o papel de um pedófilo, estuprador de crianças de 8 anos. O motivo da diferença do grau de aversão a esses dois papéis monstruosos e aviltantes, é que todos nós temos filhos ou ao menos sobrinhos na família, portanto um pedófilo aterroriza, e é repudiado por todos nós, sem distinção. Mas nem todos nós somos negros, e nem todos nós sofremos com os efeitos nefastos do racismo, que é uma realidade cotidiana da população negra no nosso país, às vezes com consequências fatais. Eu não tenho dúvida alguma de que isso é aplicar "dois pesos e duas medidas", mesmo que quem o faça se recuse a admiti-lo. Isso é algo como "aquilo que é ilegal, socialmente reprovável e que me afeta é algo muito grave, um verdadeiro absurdo, que deve ser combatido em todas as suas manifestações, e qualquer medida nesse sentido é muito válida e necessária, mas aquilo que não me afeta, mesmo sendo ilegal e igualmente reprovável socialmente já não é tão grave, e reclamar disso pode ter até alguma validade, mas é mais mimimi do que qualquer outra coisa".
Assim sendo, eu fico me perguntando se as mesmas pessoas que dizem que "é apenas um jogo", ou "se você não gosta, basta jogar outra coisa", também diriam disso de jogos onde se interpreta o papel de um nazista encarregado de exterminar a maior quantidade de judeus em um campo de concentração, de um ditador cujo objetivo fosse perseguir, torturar e assassinar dissidentes políticos (seja de ultradireita ou de esquerda radical), ou o papel de um policial corrupto com o objetivo de assassinar jovens pobres nas periferias das grandes cidades e acharcar a classe média nas falsas blitz, ou ainda se o jogo colocasse os jogadores no papel de estupradores, pedófilos, sequestradores, de ladrões de carros e de celulares, ou de qualquer outro criminoso violento. Dá para imaginar a revolta contra um jogo sobre médicos negligentes que ganham mais pontos conforme a maior quantidade e maior gravidade dos erros médicos que eles comentem. Nenhuma pessoa com um mínimo de decência, honestidade e empatia, diria que jogos assim não tem problemas, que esses papéis são perfeitamente válidos, que refletem apenas uma situação histórica, e qualquer reclamação a respeito é mimimi. Portanto, eu não vejo porque o mesmo entendimento não possa ser aplicado a um jogo envolvendo escravidão, racismo e exploração de mão de obra escravizada.
Evidentemente isso não quer dizer que o Puerto Rico deva ser execrado, receber todo o nosso opróbio, e nunca mais ser jogado. Eu continuo jogando o Puerto Rico, e, pelo menos até o momento com a minha antiga cópia da Grow (só troquei os meeples para peças beges, por motivos óbvios). Da mesma forma, entendo que as pessoas também devem continuar jogando o Puerto Rico, porque ele é realmente muito bom. Só que o que eu acho fundamental, e mandatório, é mudar a forma como as pessoas se relacionam com o jogo, e o papel que elas desempenham, de senhores de escravos para grandes produtores rurais (muito embora isso gere outra discussão, envolvendo latifúndios e exploração econômica, mas que na minha visão são problemas muito menos graves do que escravidão). Eu acho que esse tipo de postura já demonstra um comportamento ético e humano e a rejeição ao racismo e tudo de ruim que ele representa, e mesmo que isso não seja o ideal, porque não basta não ser racista, é preciso ser anti-racista, essa postura e compreensão já são algum começo. Só que considerando o ritmo como a sociedade muda, e o tamanho relativamente pequeno, de um ponto de vista histórico, desde 1888 até agora, e o que é mais grave, o fato de alguns indivíduos muito infelizes acharem que não tem nada de errado em ser racista e adotar atitudes racistas, só o fato da pessoa não ser racista e não compactuar com essa imoralidade e verdadeira excrescência, já é suficiente, pelo menos por enquanto.
Por fim, eu acho irreal e até mesmo ingênuo esperar que a sociedade brasileira, que foi construída com base na exploração de escravizados e que funciona com base na exploração das parcelas mais pobres até hoje, de uma hora para outra mude, e grande parte dessa sociedade se torne militante no combate ao racismo. Porém mesmo que uma pessoa não ingresse nessa luta tão importante, ou seja, mesmo que ela não seja anti-racista, o mínimo que se espera dela é que ela não seja racista, nem compactue com essa verdadeira abominação.
Um forte abraço, um Feliz Natal e próspero Ano Novo, recheados de boas jogatinas!
Iuri Buscácio