Por: Linauro. Apaixonado por literatura, música e jogos, desde sempre. Descobriu nos jogos de tabuleiro uma desculpa perfeita para passar mais tempo com amigos e pessoas amadas.
sou aquele que se lamenta e por que se lamenta / que me sejas, que logo te serei /
que te levantes, que te levarei / vem, que te (re)conhecerei / vai, que te (re)conhecerei! (Darwich, 2006, p. 17)
Daybreak, lançado em 2023 por Matteo Menapace e Matt Leacock (
Pandemic), ganhou o
Kennerspiel des Jahre 2024, o
Spiel des Jahres dado para os jogos mais complexos. O jogo aponta para uma questão eminentemente sócio-política: a necessária cooperação que deve existir entre os blocos geopolíticos para a resolução da crise climática.
Na noite de premiação, entretanto, um dos
designers do jogo, Matteo Menapace, demonstrou solidariedade à Palestina, usando um adesivo em sua camiseta que mostrava a silhueta da Palestina histórica. Além disso, estimulou, em seu discurso, o envolvimento dos
designers de jogos de tabuleiro modernos em temas menos prosaicos, ou seja, para abordarem problemas reais em seus jogos.
O resultado: acusado de antissemitismo, Menapace fora
banido definitivamente do evento — ressalto que, na Alemanha, dado o contexto do Holocausto, há um aparato legal mais severo contra qualquer prática ou expressão que possa ser considerada antissemita, mesmo que indiretamente, o que torna a questão bastante complexa. O
designer, entretanto,
rechaçou a grave acusação de antissemitismo e reafirmou a sua posição política contra o
genocídio perpetrado contra o povo palestino, no conflito israelo-palestino: "O que podemos fazer, enquanto cidadãos das nações ocidentais, é pressionar os nossos governos para assumirem a responsabilidade pelo seu papel histórico nesta injustiça e para pôr fim à nossa cumplicidade com o seu financiamento e a sua viabilização de crimes de guerra".

Segundo o Prof. Dr.
Alexandre Barbosa, pode ser chamado de decolonialismo o conjunto de "práticas, conceitos, pesquisas e estudos que tentam diminuir, e até reverter, os efeitos da colonização nas sociedades em que este processo histórico ocorreu", conceito que também é aplicável ao conflito israelo-palestino, historicamente originado de um processo colonial.
Todos os jogos são políticos, sem exceção. A presente lista é dedicada, portanto, aos jogos decoloniais, ou seja, aqueles que, no contexto lúdico, negam-se a silenciar ou mesmo a, abertamente,
referendar o eurocentrismo e o colonialismo. Optam pelo caminho inverso, ao encontro do chamamento de Menapace, posicionando-se diretamente ou, ao menos, atuando de algum modo em oposição ao colonialismo e às ainda abertas e latentes chagas coloniais.
Em resumo, fazendo referência
mais uma vez à Barbosa, são decoloniais os jogos que se posicionam e também atuam em oposição ao colonialismo. No prefácio do livro
Os Condenados da Terra, de Franz Fanon, Jean-Paul Sartre escreveu sobre o decolonialismo, aludindo, com muito propósito, a jogos relacionais, táticas e objetivos: "Se desmonta as táticas do colonialismo, o complexo jogo das relações que unem e opõem os colonos aos 'metropolitanos', faz isso para seus irmãos; seu objetivo é ensiná-los a desmantelar-nos. Numa palavra, o Terceiro Mundo se descobre e se exprime por meio desta voz". Aqui, revela-se, portanto, uma dialética através do lúdico: jogos tratando de problemas reais, as múltiplas determinações do real expressando-se por meio de jogos.

Menapace tem razão quando afirma que precisamos de mais designers e jogos comprometidos com as contradições da nossa contemporaneidade - principalmente, com as profundas e indissociáveis crises que vivenciamos: social, econômica, política e ambiental. Embora tenhamos uma profusão de jogos colonialistas, lançados e relançados sem qualquer vexame, temos pouquíssimos jogos decoloniais. Esse fato se expressa, inclusive, na minha dificuldade em montar uma lista de jogos estritamente decoloniais. É possível, entretanto, alargarmos um pouco o conceito proposto para abarcar jogos que, muito embora não sejam exatamente decoloniais, retratam o período histórico e os processos de colonização, ao menos, de forma multilateral, dando agência aos colonizados.
Embora eu não tenha os dados, tenho a impressão de que, mesmo incluídos os últimos, o número alcançado não é nada que se compare à quantidade de jogos disponíveis construídos a partir de uma perspectiva colonial e eurocêntrica. De todo modo, jogos de tabuleiro são uma
poderosa ferramenta social e, nessa perspectiva, Manapace está correto: não apenas quanto à sua insurgência em face da brutalidade, desumanidade e irracionalidade do genocídio do povo palestino, levando-se em consideração que se insurgir diante de um genocídio não é o mesmo que referendar o também hediondo antissemitismo, mas também quanto à evidência de que precisamos sim de mais jogos construídos a partir da perspectiva decolonial, ou seja, que se posicionam e atuam contra a barbárie (neo)colonial.
Não podemos esquecer que não são apenas os
jogos que abordam o período colonial em si, como
Puerto Rico e
Brazil: Imperial, por exemplo, que podem apresentar uma perspectiva colonialista e eurocêntrica. No livro
Playing Oppression, Mary Flanagan e Mikael Jakobsson nos chamam a atenção de que os jogos 4X também, mesmo naqueles que propõem temáticas futuristas, os jogadores adentram e eXploram outros territórios, eXpandindo as fronteiras do próprio império, eXploram os seus povos e recursos naturais e, enfim, eXterminam os jogadores oponentes. Mecânicas que refletem, portanto, uma lógica mercantilista e escravocrata na qual sobra pouco espaço para a crítica do "
papel do poder e da exploração" e, principalmente, para o reconhecimento das possibilidades de resistência e solidariedade social:
Outro ponto problemático dos jogos 4X é a exploração de pessoas e — muitas vezes inesgotável — de recursos para fins lucrativos. Embora recursos ilimitados possam criar um belo mundo de fantasia à primeira vista, a maneira como esse modelo para recursos de jogos se tornou prática padrão em jogos de tabuleiro modernos como Puerto Rico (2002) é preocupante, visto que evoca as maneiras com que potências coloniais do mundo real exploravam ambientes coloniais sem qualquer consideração pelas consequências (Flanagan e Jakobsson, 2023, p. 147, tradução livre).
Somados os jogos 4X, portanto, a vantagem dos jogos coloniais em relação ao número de jogos decoloniais é ainda maior. Talvez, numa próxima oportunidade, eu faça uma análise estimativa nos TOPs 100 da Ludopedia e do BGG, visando estabelecer quantitativamente a diferença. A intenção da presente lista, entretanto, é outra: listar jogos decoloniais ou, mesmo que não sejam exatamente decoloniais, retratem o período histórico e os processos de colonização de forma multilateral, dando agência aos colonizados.
Dentre os primeiros, temos um jogo cooperativo incontornável: Spirit Island. O jogo de R. Eric Reuss possui uma temática absolutamente particular: os jogadores assumem o papel de espíritos da natureza e cooperam para a destruição de colonizadores invasores, protegendo os habitantes nativos de uma ilha: os Dahan. Nas palavras do amigo Bruno Marchena, o objetivo de jogo é o de "barrar cooperativamente a invasão da ilha, seja ou exterminando-os com suas vilas e cidades, ou gerando medo aos colonizadores a ponto de os fazer fugir". No manual, o designer expressou numa nota a inspiração que o levou a desenvolver não um jogo sobre colonização do ponto de vista do colonizador, mas justamente o inverso, um que retratasse a resistência ao processo colonizatório, sob o prisma daqueles que enfrentam a barbárie e a corrupção:
A semente de Spirit Island apareceu durante uma ação de colonização em algum outro jogo - Goa? Navegador? Endeavor? - Eu pensei, “Me pergunto o quão furiosos os nativos estão com essa nova colônia de estrangeiros? [...]". A ideia ficou comigo, porém, porque tantos Euros têm temas dessa época: algo explicitamente colonial, outros sociais ou mercantis. Pareceu-me que um jogo retratando o ponto de vista oposto - o da vítima do colonialismo, tentando enfrentá-lo - poderia ser interessante e talvez ressaltar a prevalência de temas coloniais eurocêntricos (p. 29).
Nesse ponto em específico, Reuss e Menapace concordam: na carência que temos de jogos anticoloniais, de jogos que retratem o ponto de vista das vítimas da violência colonial de ontem e de hoje, de
designers e jogos que sejam comprometidos em falar sobre as profundas contradições que marcam nossa contemporaneidade.
Spirit Island, por exemplo, nesse aspecto, é
fantástico, mesmo que abordando a questão de forma mítica: em primeiro lugar, retrata a solidariedade e a cooperação historicamente formadas entre os espíritos da natureza e o povo Dahan; e, em segundo, destaca as possibilidades de resistência coletiva, para a proteção da ilha, da sua fauna, flora e de seus habitantes, através do enfrentamento direto contra as hordas de invasores colonizadores.
Em relação a processos de resistência e enfrentamento direito, impossível não lembrar da frase clássica de Fanon, também no livro
Os Condenados da Terra: "O colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado puro, e só se curvará diante de uma violência maior" (p. 46) - referindo-se especificamente ao caso da Argélia, que fora uma colônia francesa por mais de um século, entre 1830 e 1962, enfrentando, entretanto, resistência e revoltas por parte da população argelina durante todo o período até a Guerra de Independência Argelina, - no sentido de que todo processo de colonização é inerentemente violento, gerando uma situação insustentável para os colonizados, levando-os a uma reação igualmente violenta em busca da liberdade.

Nesse espírito, por exemplo, o jogo
Borikén: The Taíno Resistance, protótipo de Julio E. Nazario ainda não lançado, mas disponível para
playtests, como numa resposta temática à
Puerto Rico, aborda a
história de Borikén através dos olhos do povo Taíno. Borikén era como esse povo originário denominava a ilha de Porto Rico. Os Taíno impuseram um processo de resistência aos colonizadores invasores espanhóis, notadamente, entre os anos de 1493 e 1512, um dos três períodos retratados no jogo. Em Navajo Wars, jogo de Joel Toppen,
por sua vez, os jogadores representam o povo Diné, ainda hoje reconhecido por suas técnicas de plantio de milho no meio do deserto do Novo México e Arizona, visando evitar a subjugação por quaisquer inimigos colonizadores, sejam eles espanhóis, mexicanos ou americanos.
Comanchería: The Rise and Fall of the Comanche Empire, outro jogo de Toppen
, no mesmo sentido, aborda a história e as lutas da nação Comanche, do ponto de vista da tribo nativa americana.
Alcaçam, entretanto, um maior número os jogos que, muito embora não sejam exatamente decoloniais, retratam o período histórico e os processos de colonização, ao menos, de forma multilateral, dando agência aos colonizados. Nesse segundo grupo, destaca-se
Gandhi: The Decolonization of British India, 1917 – 1947, de Bruce Mansfield, que aborda o processo de descolonização da Índia. O jogo inova ao inserir um novo tipo de facção (e de possibilidade de ação política na luta decolonial): a facção não violenta. O jogo trabalha também com uma série de conceitos uteis para compreender tanto o período histórico quanto a luta política retratada, tais como: desobediência civil e não-cooperação, protestos e terrorismo, imperialismo e programa construtivo, agitação crescente, negociação, agitação, assassinato, persuasão, boicote, lei marcial, etc.

Colonialismo e escravização são processos profundamente interligados, especialmente no contexto da colonização das Américas.
O jogo Freedom: The Underground Railroad, de Brian Mayer, fala sobre a luta e a resistência contra o processo de escravização, no qual os jogadores buscam ampliar a causa abolicionista e mover pessoas escravizadas para a liberdade no Canadá.
Quilombolas – O Refúgio dos Palmares, um protótipo de Valter Bispo, parte de uma premissa equivalente, porém mais próxima a nós, brasileiros:
o jogo fala sobre o icônico Quilombo dos Palmares, que foi situado na Serra da Barriga, atual estado de Alagoas, a partir do final do século XVI. Considerado o maior símbolo de resistência à escravidão do Brasil, como anota o próprio
designer, Palmares tornou-se uma ameaça ao sistema implantado no Brasil colonial.
Cuba Libre,
The Guerrilla Generation: Cold War Insurgencies in Latin America e
Colonial Twilight: The French-Algerian War, 1954-62 são outros exemplos de jogos que retratam as decorrências históricas e políticas do processo de colonização, de forma multilateral e dão agência aos colonizados. Os dois primeiros, de Jeff Grossman, Volko Ruhnke e Stephen Rangazas, respectivamente, abordam diferentes movimentos insurgentes ocorridos na América Central e do Sul entre 1956 e 1992, durante a Guerra Fria, através da ação de diferentes facções. O último, do designer Brian Train, aborda as ações políticas e as revoltas argelinas contra o governo colonial francês e que levaram, após uma guerra de oito anos, ao definitivo fim do Império Francês, quando a Argélia conquistou a sua independência.

Muitos dos movimentos decoloniais acima retratados, vivenciados em lugares e por povos tão diversos, nas Américas, África e Ásia, foram vitoriosos e acabaram por derrubar o sistema colonial, não sem antes expor as suas vísceras espoliativas. Obviamente, os jogos elencados são apenas alguns exemplos. Como comentei no início, a intenção do presente texto é de servir apenas de introdução à lista de jogos decoloniais ou que, ao menos, buscam apresentar de forma equilibrada os processos reais de resistência e enfrentamento à barbárie colonial. Devido ao tamanho do texto, optei deliberadamente, por apenas citar alguns jogos e dividir a publicação em duas partes. A lista dos jogos, mais especificamente, você pode encontrar - e contribuir - através
desse link.
O período colonial, a partir do século XV,
marcou a ascensão do capitalismo, com base em saques, violência, tráfico, escravização, racismo, genocídio, etnocídio e destruição ambiental nas colônias. Uma pá de cal, portanto, em qualquer tentativa de romantização ou amenização do período colonial, tão comum em jogos de tabuleiro modernos, como destacado por
Eric Reuss. Por esse motivo, ganham relevância as palavras de Menapace, em relação à problemática dos temas nos jogos de tabuleiro modernos, diante de uma profusão de crises e da recente escalada de processos neocolonais e de genocídios, quando propõe, aos seus pares
designers, que se comprometam, cada vez mais, em expor, através dos seus jogos, as contradições que marcam a nossa contemporaneidade.
A
lista dos jogos você pode encontrar através
desse link.
Agradecimentos
Aos amigos Bruno Marchena e Gilson (Boar Games) pelas contribuições dadas para a elaboração da lista.
Referências
DARWISH, Mahmoud. Da presença da ausência. Tradução de Marco Calil. Rio de Janeiro: Tabla, 2020. p. 17.
As demais referências foram incorporadas através de links vinculados ao próprio texto.
Imagens (fontes)
Ludopedia, BGG e Google.