Ética e Moralidade nos Jogos
Por: Ian Carvalho (@_carvalhoian), designer de jogos.
Imagino que os designers de jogos de tabuleiro devem considerar as implicações éticas das ações e escolhas que os jogadores podem fazer no jogo. Isto pode incluir a representação da violência e outros temas controversos, bem como a representação de personagens e seus comportamentos.
O contexto do mundo dos jogos de mesa pode produzir suas próprias normas sociais, valores e éticas, que podem ser diferentes daqueles encontrados no mundo real. Isso pode ser o resultado das escolhas do designer do jogo na criação daquele universo fictício e de seus personagens, bem como das ações e escolhas que os jogadores podem fazer dentro do jogo. Isto também pode ocorrer quando aquele universo advém de um cenário fictício ou fantástico, ou quando ele tem a sua própria lógica interna e regras que diferem das do mundo real.
Por exemplo, alguns jogos podem apresentar um mundo em que a violência é um meio necessário ou aceitável de atingir um objetivo, enquanto no mundo real a violência é geralmente considerada antiética. Muitos jogos apresentam um mundo em que certas normas ou valores sociais são invertidos ou revertidos, criando uma experiência muito diferente do que experimentamos no mundo real em que o jogador vive.
Além disso, os designers de jogos também devem considerar o impacto potencial que o conteúdo e arte do jogo podem ter sobre os jogadores, especialmente os jogadores mais jovens. Isto pode incluir o potencial dos jogadores serem influenciados pelos temas ou ações do jogo, ou o potencial do jogo ser usado como meio de escapismo ou catarse etc.
Ética e moralidade também podem ser conceitos relativos que podem variar dependendo do contexto e da perspectiva cultural. O que é considerado ético ou moral numa sociedade ou cultura pode não o ser noutra. Isto significa que o conteúdo ético e moral de um jogo pode ser percebido de forma diferente por diferentes jogadores, dependendo da sua formação cultural e valores pessoais.
Isto pode criar desafios para os designers de jogos, uma vez que devem considerar as potenciais diferenças culturais e pessoais que podem afetar a forma como os jogadores percebem o conteúdo ético e moral dos seus jogos. Será que os designers devem ser sensíveis a essas diferenças e se esforçar para criar universos que sejam apropriados para um determinado público-alvo?
No livro Killing Monsters: Why Children Need Fantasy, Super Heroes, and Make-Believe Violence, Gerard Jones discute o conceito de “varinha mágica” como uma metáfora para o poder que a mídia, jogos e brincadeiras infantis têm para moldar suas crenças e valores. Jones argumenta que a mídia e as brincadeiras servem como uma “varinha mágica” que pode ajudar as crianças a entender o mundo ao seu redor e a desenvolver sua própria identidade. Ele afirma que as crianças usam essa “varinha mágica” para explorar diferentes ideias e experimentar diferentes papéis, e que este processo é crucial para o seu desenvolvimento psicológico e emocional. Jones também discute os potenciais efeitos negativos dos meios de comunicação e dos jogos, incluindo a influência de estereótipos prejudiciais e a dessensibilização à violência, e oferece estratégias para pais e educadores ajudarem as crianças a usar a sua “varinha mágica” de uma forma saudável e construtiva.
O fascínio da varinha mágica - seja incorporada em uma arma de caça, espada ou explosão de bola de fogo - não é a violência, mas o poder à distância e a confiança inerente que isso inspira. Mas não devemos também esquecer as ligações muito reais entre jogos e violência e entre virtualidade e comportamento.
É possível que os primeiros jogos tenham sido desenvolvidos não para diversão ociosa, mas para propósitos sérios como preparar jovens para a caça e para a guerra. Ao participar dos jogos, os jovens desenvolveriam senso tático de combate e estratégia bélica. Não por acaso, os jogos abstratos que a humanidade tem catalogado como primevos, são todos sobre capturas, encurralamentos e extermínio dentro de um campo de movimentação por regiões ou terrenos.
Não tenho resposta, mas proponho discutir a seguinte pergunta: Por que nós aceitamos determinadas situações e outras não, dentro da perspectiva ética/moral dos jogos de mesa? Pelo que pude pesquisar, a maioria dos jogadores de mesa modernos aceitam exterminar outros seres humanos com um tiro na cabeça em jogos de guerra ou colonizar outros povos, mas não aceitariam jogos onde se tortura ou mata-se crianças, por exemplo. Parece que há um limite onde se pode ir para conseguir diversão, assim como há um limite para abstração da violência e de crimes que podemos virtualmente causar estando “na pele” de personagens violentos e atrozes.
Retratando a minha experiência pessoal, é curioso como consigo jogar
Bad Company, embora eu necessite fazer um pouco mais de esforço para abstrair o fato de eu estar construindo gangues que estão a assaltar pessoas. No entanto não consigo jogar
Escape Plan na pele de assaltantes. É verdade que são jogos bem diferentes, com propostas de narrativas distintas e com arte também diversa. Esses elementos também contribuem, claro, para melhorar ou piorar a recepção do jogo na mesa.
Eu consigo atirar na cabeça de outros soldados em
Destemidos, no entanto, nunca jogaria um jogo como
Clãs da Caledônia que valoriza a exploração e abatimento de animais, de maneira, ao meu ver, ostensiva. Tiles de fazenda criando porquinhos em
The Castles of Burgundy não me traz problemas. Acredito que estas questões se conectam com o meu
último texto, a respeito de realismo e imaginação nos jogos. A forma que eu experimento os jogos é de comoção do afeto a partir da imaginação. Determinados elementos gráficos e mecânicos parecem evocar mais memórias e sentimentos do que outros. Eu tenho certeza que a maioria dos meus amigos que adoram
Catan, nunca apoiariam, assim como eu, um movimento colonialista aniquilador de povos originários. Só que eu não consigo este nível de abstração que me faça aproveitar o jogo. Só que aqui, neste caso, eu acho que questões mais profundas podem ser discutidas. Mas antes de voltar a Catan, vamos pensar em mais alguns exemplos que podem causar certa polêmica.
Em
Caper, você marca pontos coletando bens roubados e equipando ladrões; Em
Puerto Rico você usa escravos (que são fichas de cor preta) como recurso de jogo (Até o grupo de rap Public Enemy criou uma música de protesto chamada “Puerto Rico aint my Hero”); Normalmente, a maioria dos jogos que envolvem homicídio apresentam personagens tentando resolvê-lo, mas em
Mr. Jack um dos jogadores está tentando fazer com que ele escape; Como
Battle Cry, mas um pouco mais imagético, em
Axis & Allies você joga defendendo a Alemanha nazista; Em
Guillotine, os jogadores são todos algozes rivais que competem para ver quem consegue cortar mais e melhores cabeças de prisioneiros (muitas vezes inocentes) apanhados na Revolução Francesa; Em
Saint Petersburg uma parte importante do jogo é comprar servos e colocá-los para trabalhar para você. Quanto mais servos você possuir, maior será sua renda.
Por exemplo, elementos racistas em dispositivos de diversão tendem a ser mais controversos do que o homicídio. Talvez porque o racismo parta da estrutura para o virtual, ou seja, devem haver pessoas racistas pensando a confecção do jogo, tanto no plano da narrativa quando no plano da materialização e isso se reflete na experiência que impõem aos jogadores. Já o homicídio, o assassinato, sempre esteve no virtual, ou seja, as pessoas envolvidas nos jogos não são assassinas nem devem apoiar a prática, eles apenas captaram elementos violentos aceitáveis do imaginário popular na esfera do entretenimento.
Obviamente, estes e outros devem (ou deveriam) ser assuntos delicados para desenvolvedores de jogos. Por exemplo, eu deixo o jogador manipular as cartas com o fundo da suástica nazista ou eu utilizo um xis ou outra forma semelhante para transmitir a mensagem? Na verdade, eu deveria trazer a Alemanha Nazista para algum jogador defender? Ou seria melhor deixá-la como a vilã do jogo, para ser derrotada cooperativamente? Será que um jogo que é usado para diversão e entretenimento, precisa manter vivo o símbolo nazista circulando na mão de crianças e adolescentes? (Claro que este símbolo não foi criado pelo nazismo. Mas sim, é o que se evoca quando a vimos).
É interessante perceber como os grandes criadores de conteúdo da internet que eu tenho pesquisado, quando falam sobre estes jogos, nem sequer mencionam uma possível controvérsia sobre seus temas e utilização de seus elementos. Assim, desconfio que seja impopular a ideia de detrair ou evitar estes temas nos jogos de tabuleiro, em razão da diversão. É comum ouvir à pergunta sobre o tema, a resposta “é só um jogo para se divertir, não é a realidade”. Talvez porque tenho o pensamento mais alinhado aos preceitos budistas, acredito que o jogo também seja realidade. A prática de diversão também alimenta a consciência. Não me sinto à vontade de jogar muitos jogos porque para mim a não-violência parece ser um axioma. Contudo, é compreensível que exista níveis de abstração em nome da pura mecânica do jogo. Eu mesmo não consigo chegar a níveis de abstração mais profundos. Até pode ser que a abstração de determinados níveis de maldade virtuais esteja mais próxima de uma virtude. Este texto não objetiva atacar ou defender jogos e condutas, mas colocar luzes no tema e discutir um pouco sobre ética e moralidade nos jogos, bem como níveis aceitáveis de violência, agressão, contrassenso, práticas criminosas etc.
Talvez discussões como essas até causem mal-estar na condição pré-fabricada dos board gamers, que em seus nichos desejam menos pensar do que defender a conjuntura confortável da isenção; seja por medo da contrição, seja por pura ignorância.
Mais de 100 milhões de pessoas assistiram, em 2021, à sangrenta série televisiva da Netflix, Squid Game. Se a violência na tela é ruim ou não para nós, já foi extensivamente estudado. O consenso geral entre estudiosos de todas as ciências é que pode ter efeitos negativos. Mas a questão de saber por que somos atraídos à violência tem recebido muito menos atenção.
Morte, sangue e violência sempre atraíram as multidões, basta lembrar das reuniões de inúmeros antigos romanos para a carnificina no Coliseu, e ainda nos séculos posteriores, as execuções públicas geraram grandes bilheterias. Na era pós-moderna, as arenas de vale-tudo estão sempre lotadas para ver os nocautes mais violentos. De acordo com o Fundo de Defesa das Crianças, “Nos EUA, crianças e adolescentes têm 15 vezes mais probabilidades de morrer por armas de fogo do que os seus pares em 31 outros países de rendimento elevado combinados”. A taxa global de mortes ou ferimentos relacionados com armas de fogo ou violência física neste país é superior à taxa de qualquer outro país industrializado. Embora múltiplos fatores possam levar a ações violentas, uma imensa fortuna de teoria e evidência mostra uma forte associação entre a perpetração da violência e a exposição à violência nos meios de comunicação social, meios digitais e entretenimento, não só nos E.U.A – país que mais influência comportamentos em todo o mundo – mas também no Brasil, que por exemplo, concentra 10,4% do número total mundial de assassinatos.
Dilemas
Ultrapassando o paradigma da aceitação ou legitimação da criminalidade ou da violência, parece que, embora os jogos de tabuleiro geralmente explorem tópicos bastante diversos, não conheço mais de dez que colocam você como jogador (a) no papel de um personagem extremamente imoral e realmente vil. Diferentemente de livros ou filmes com protagonistas imorais, maníacos e muito perversos, que são muito mais aceitos e bastante populares. Talvez essas formas de entretenimento podem suportar mais facilmente esse tipo de afluência, hipoteticamente porque os espectadores/leitores não interagem diretamente com a história e, portanto, não se sentem responsáveis. No entanto, também existem muitos videogames que colocam você no papel de um personagem imoral/mau, e são muito bem aceitos. Talvez a idade dos jogadores de videogame seja muito menor do que a faixa etária de romances e jogos de mesa modernos. É um ponto bem interessante para discussão.
Uma hipótese surge quando penso que os jogos de mesa têm a característica de serem coletivos. Você joga com outras pessoas que estão sentadas à sua frente na mesa, te observando e te julgando, razão pela qual as pessoas podem se sentir extremamente desconfortáveis fazendo “coisas horríveis” em jogos de tabuleiro. É outro ponto a se pensar.
Mas muitos são os jogos em que te colocam em situações-problema, desconfortáveis, que exigem do jogador condutas mais agressivas de vez em quando. Não obstante, percebo que nem tanto eles envolvem seus jogadores em dilemas éticos ou morais mais profundos, que neste caso sim, seria mais aceitável do ponto de vista maniqueísta do irrefutável.
Há jogos que te projetam em situações que abrangem todo o espectro da experiência humana. Diante de decisões difíceis, você deve escolher um curso de ação, defendê-lo ou modificá-lo e, não raro, enfrentar o julgamento dos seus pares. Em cenários tão diferentes como um supermercado ou um campo de concentração, você explora seus próprios conceitos de certo e errado e os de outros jogadores.
Em
Above and Below, os jogadores têm a oportunidade de explorar cavernas desconhecidas em busca de recursos e tesouros. No entanto, essa exploração pode levantar questões éticas sobre colonização e exploração de terras desconhecidas, especialmente se os jogadores encontrarem habitantes nativos das cavernas.
Dead of Winter é um jogo de sobrevivência em um apocalipse zumbi. Os jogadores têm que trabalhar juntos para sobreviver, mas também têm objetivos pessoais secretos que podem ser contraditórios com os objetivos do grupo. Isso cria dilemas éticos sobre trair ou ajudar os outros em busca de sua própria sobrevivência.
Secret Hitler é um jogo que simula a ascensão do fascismo na Alemanha pré-Segunda Guerra Mundial. Os jogadores são divididos em liberais e fascistas, e alguns jogadores assumem os papéis de Hitler e do Chanceler. Os jogadores devem tentar descobrir a identidade dos fascistas enquanto evitam eleger Hitler. O jogo pode levantar questões éticas sobre traição, confiança e colaboração política.
Em
Diplomacia os jogadores representam potências europeias durante a Primeira Guerra Mundial. Os jogadores negociam alianças, formam tréguas e traem uns aos outros em busca da supremacia global. O jogo pode levantar questões éticas sobre as complexidades da diplomacia e das relações internacionais.
The Grizzled é um jogo cooperativo que retrata soldados franceses durante a Primeira Guerra Mundial. Os jogadores enfrentam dilemas éticos enquanto tentam sobreviver às adversidades da guerra, equilibrando sua própria saúde mental com o apoio aos companheiros soldados.
Freedom: The Underground Railroad é mais um jogo cooperativo e simula o movimento abolicionista nos Estados Unidos, onde os jogadores trabalham juntos para ajudar escravos a escapar para a liberdade através da Ferrovia Subterrânea. Os jogadores enfrentam dilemas éticos ao decidir como e onde ajudar os escravos, enquanto tentam evitar a captura pelos caçadores de escravos.
Em
The Others, enfrentando o horror, os jogadores assumem o papel de heróis que tentam salvar uma cidade de forças malignas sobrenaturais. Eles enfrentam dilemas éticos ao decidir como combater essas forças, equilibrando o uso de seus próprios poderes sobrenaturais com o risco de corrupção.
Endeavor coloca o jogador no papel de uma civilização que decide se vai se envolver na escravidão. Mas o jogo tem um mecanismo embutido que faz com que todas as sociedades escravistas sofram um pouco quando ocorre a abolição. Mas não existem muitos jogos que apresentem questões difíceis como estas. No videogame é mais fácil, isso ocorre porque eles (os videogames) tiveram um ciclo de desenvolvimento mais longo. Os jogos de hobby não tiveram o mesmo ciclo de desenvolvimento dos videogames. Na verdade, foi apenas na última década que os jogos de tabuleiro começaram a ter um impacto cultural como os videogames.
Enfim o texto chega ao seu derradeiro parágrafo com uma vontade de se estender, mas com a necessidade de adequação do suporte fórum digital, que vindica uma sucintude maior. Talvez as costuras poderiam ter sido feitas de modo mais coeso, mas em geral, os textos são produzidos sob efeito de um fortuito súbito e seus tecidos nem sempre são tão minuciosamente observados. Não tenho raízes tão profundas em nenhum terreno e não tenho posições que não possam ser modificadas, proponho-me a estar em constante mudança de pensamento, felizmente!