Houve um tempo em que os BG vinham corretos e não mofavam...
Quem tem mais tempo de hobby vai lembrar de que houve um tempo em que os jogos nacionais não mofavam, nem vinham lacrados e mofados. Nessa época, dizer que o jogo estava “mofando”, não era literal, mas se referia exclusivamente, a ficar parado muito tempo na estante sem ver mesa. Hoje em dia, é incrível a quantidade de relatos de jogos que mofam, quase que de um ano para o outro, se não forem jogados.
Eu particularmente acho que nessa questão de mofo, rola certo alarmismo, porque qualquer mancha, automaticamente vira uma infestação de mofo mortal, com potencial, para se espalhar mais rápido que a Peste Negra. Mas mesmo descontado eventuais exageros, há uma quantidade enorme de jogos mofados e muitos deles vindo com o mofo direto de fábrica.
A coisa está tão feia atualmente, que já dá para colocar o MOFO, quase que no mesmo patamar de outros males do hobby, junto com HYPE e FOMO. Assim sendo, a pessoa pode não ter caído no canto de sereia do HYPE, nem sofrer de FOMO. Mas ela compra o jogo no lançamento simplesmente para não correr o risco de esperar o preço baixar, e pegar uma cópia mofada, após meses “guardada” nos estoques das editoras, em especial aquela-que-não-deve-ser-nomeada.
Nesse momento eu olho para trás e penso no início, quando surgiram as primeiras lojas e espaços e quando os jogos começaram a ser lançados nacionalmente. Não vou falar dos jogos gringos, porque aí não tem nem graça, porque é quase impossível esses jogos mofarem, ou pelo menos quase não se vê relatos nesse sentido. Mas, olhando para a coleção, eu me dei conta de que ainda tenho cópias de alguns jogos nacionais antigos como o Blacksmith Brothers, Masmorra dos Dados e Reinos de Drunagor, e não vi nada de mofo em nenhum deles.
Imagem Ludopedia: Detetive, Banco Imobiliário, WAR, e Scotland Yard, velhos ultrapassados, mas sem mofo e nem erros grotescos de impressão.
E nesse caso de produção nacional de jogos, e mofo, nem vale a pena citar Grow e Estrela. As pessoas possuem cópias do Detetive, do WAR, do Banco Imobiliário dos anos 70, e do Scotland Yard e Imagem e Ação, Jogo da Vida e Perfil, dos anos 80, ainda em perfeitas condições, e sem mofo, dependendo do cuidado de cada um. E isso apesar dos boardgamers modernos torcerem o nariz, e muito, para a qualidade dos componentes desses jogos clássicos. Seria cômico se não fosse trágico, que os clássicos jogos de tabuleiro de Grow e Estrela, “tão ruinzinhos” em mecânicas e componentes, não mofem enquanto que o mesmo não se possa dizer dos board games modernos das grandes editoras nacionais do setor.
Mas nem sempre foi assim. Eu ainda tenho minhas primeiras cópias de Catan, do Puerto Rico, do 7 Wonders, das três primeiras seasons do Zombicide, do Quarriors e do Alhambra (só para citar jogos que eu já não jogo com tanta frequência), e nenhuma delas também não apresenta qualquer sinal de mofo. Para não dizer que eu só estou listando jogos antigos, eu também tenho o Masmorra do Mago Louco (infelizmente), o Camel Cup 2ª Edição, o Massive Darkness 1ª Edição, o Western Legends, o Obscurio, o Meeple Heist e o Concept, que são mais recentes, e nenhum deles está mofado. E no início do hobby, mesmo acontecendo alguns caso de problemas com componentes e traduções, isso não chegava nem perto do que ocorre atualmente com uma frequência absurda. O próprio tão decantado "esperma de baleia" gerou muitas sacaneadas ao longos dos anos, mas esse sim era um erro que realmente não afetava a jogabilidade, porque estava apenas no lore do jogo, para dar um sabor a mais, porém nada que influenciasse no uso regular da carta. As pessoas que reclamaram muito disso, e eu confesso que fui um dessas pessoas, não faziam a menor ideia do nível de erros grotescos que os esperava, apenas alguns anos depois.

Imagem Ludopedia: Zombicide Season One e Zombicide 2.0, o primeiro veio sem mofo, já o segundo...
Como se pode ver, muitos dos meus jogos são de uma mesma editora (o que é natural, afinal ela controla 70% do mercado nacional de jogos no mínimo), e que hoje é conhecida por lançar jogos lacrados e mofados. Isso para mim é muito estranho, porque não faz sentido que uma mesma empresa, até alguns anos atrás, lançasse jogos, alguns deles com erro, mas sem esse problema sério de mofo, e hoje em dia tenha esse problema em tantos lançamentos.
Aquela história de cozinhar a rã na panela de água morna é uma verdade, especialmente no caso dos board games. Isso porque hoje nós até brincamos com a “promofão” dos jogos mofados e com grandes descontos. Só que essa situação na verdade é totalmente absurda, e de tanto acontecer acabou se normalizando e hoje já virou até piada. Assim, um jogo lançado mofado em 2014 seria inaceitável e um verdadeiro desastre para a editora. Enquanto que um jogo lançado mofado em 2024 faz com que algumas pessoas até comemorem, porque poderão comprar o jogo com desconto, daqui a alguns meses.
O jogo-problema da vez é o Old World que a editora fez um financiamento coletivo, que atrasou quase três anos. Finalmente, quando os apoiadores receberam suas cópias, muito depois dos apoiadores de todos os demais países do mundo que aderiram ao projeto, eles tiveram uma triste surpresa. Diversos tokens e diversa cartas estão com os nomes, textos e símbolos trocados, o que afete sobremaneira a jogabilidade, e esse é apenas o início, porque muita gente ainda está apurando todos os eventuais erros do jogo.
Imagem Ludopedia: The Witcher Old World, a mais nova decepção da praça, mesmo com três anos de atraso para conferir e evitar os erros que ocorreram
Uma semana atrás aconteceu o DOFF 2024, o nosso maior evento nacional de board games. De um lado há diversos relatos de pessoas comuns, que reforçaram a impressão de que a cada ano que passa o DOFF se converte cada vez mais em um evento para quem produz conteúdo de jogos e para quem trabalha na área. Já não existem tantos jogos com desconto e até mesmo jogar, e conhecer, jogos novos está cada vez mais difícil. Do outro lado há o relato dos grandes canais de board games, que relatam que o evento foi uma maravilha, e que segundo eles o mercado nacional de jogos vai e vento e popa, e fica cada vez melhor, a cada ano. Apesar daquilo que apregoam os grandes canais de board games, a realidade para o boardgamer comum é bem diferente.
O normal em qualquer setor econômico é que as coisas vão melhorando, conforme a atividade vá se profissionalizando, novas empresas começam a se interessar, o público consumidor aumenta o que leva a um aumento da produção e por aí vai. No caso dos board games parece acontecer justamente o contrário, porque as coisas parecem piorar a cada ano que passa. No início do hobby, quando tudo ainda era ainda mais amador do que ainda é hoje, relatos de mofo eram raríssimos. Hoje em dia é a coisa mais comum. Alguma coisa deve ter acontecido, talvez uma mudança do local do estoque, ou um alteração nos protocolos da editora líder de mercado, para que essa questão do mofo piorasse tanto. Isso porque não é crível que uma empresa cujos jogos não mofavam, passasse a ter esse problema no nível que se verifica hoje, sem motivo algum.
E nem dá para culpar um eventual ajuste a um aumento da produção, porque até onde se pode apurar, as tiragens continuam do mesmo tamanho de sete ou oito anos atrás, salvo no caso de alguns party games e no caso dos campeões de venda, que são poucos. Na verdade o que parece que ocorre hoje em dia é justamente o contrário, ou seja, menos cópias lançadas, a preços cada vez mais altos. E mesmo no caso dos jogos campeões de venda, os preços continuam subindo, talvez não no mesmo ritmo logo antes da pandemia, mas continuam subindo. Junto a isso, parece que o controle de qualidade está cada vez pior.
E esse é o panorama geral do hobby atualmente: menos cópias sendo lançados, preços cada vez mais altos, e controle de qualidade dos lançamentos caindo drasticamente e a olhos vistos.
Isso torna cada vez mais preocupante o futuro do hobby, porque a continuar esse processo que se vê hoje o que será daqui a 10 ou 20 anos?!?! As pessoas que descobriram o hobby durante a pandemia ou logo depois, nem sabem que lá no início, os jogos eram mais baratos e o controle de qualidade era muito superior. Claro que, nem tudo era perfeito, e também aconteciam erros, mas nada perto daquilo que se vê hoje em dia. O Old World é apenas um exemplo, e como eles existem muitos e basta dar uma navegada pelos tópicos dos últimos lançamentos, para se comprovar isso.
Imagem Ludopedia: Chaparral (MS Jogos) e For The Quest (1010 Games), jogos independentes bons, que salvo alguns problemas do primeiro, especialmente no manual, não apresentam nem de longe os graves problemas de alguns jogos gringos muito mais badalados
Por fim, se nada mudar e continuarmos a seguir por essa senda sombria, o futuro do hobby, que se avizinha, e isso se é que teremos algum futuro, se apresenta cada vez mais sinistro e bota sinistro nisso. Para não terminar o artigo nesse tom tão pessimista e sem esperanças, eu quero crer que em um futuro com um hobby cada vez mais restrito, as pequenas editoras independentes que fazem um ótimo trabalho, com qualidade, transparência, profissionalismo e acima de tudo respeito aos consumidores, possam herdar esse grande contingente da comunidade boardgamer, que cada vez parece ser menos o foco das grandes editoras do setor.
Um forte abraço e boas jogatinas!
Iuri Buscácio
P.S. Quem se interessar por outros textos similares, pode encontrá-los no canal iuribuscacio aqui da Ludopedia ou no portal Maxiverso.com.