“Se você não puder voar, então corra, se não puder correr, então ande, se não puder andar, então rasteje, mas faça o que fizer, continue avançando sempre.” Martin Luther King
Inicialmente é importante frisar que esse é mais um texto falando sobre o lançamento do jogo nacional “Herdeiros do Khan”, e seu possível impacto sobre o preço de jogos de tabuleiro. Mas apesar do tanto que já se escreveu a respeito, ainda assim, é fundamental falar sobre esse jogo, porque ele representa talvez a primeira iniciativa, com grande chance de sucesso, de alterar, ou pelo menos influenciar, o rumo que o hobby está tomando, como será explicado mais adiante, e que preocupa muita gente. E isso justifica totalmente, não só esse, mas quantos outros textos forem escritos sobre isso.
Para aqueles que não acompanham regularmente o mercado de boardgames, a Estrela anunciou o lançamento de uma nova linha de produtos, a Estrela Premium Games, cujo escopo será a produção de jogos modernos de designers nacionais, com preços mais adequados a salários pagos em real, ao invés de em dólar ou em euro, como é a praxe dos boardgames estrangeiros. Essa iniciativa desperta certa desconfiança, porque a Estrela tem um histórico conturbado em relação a jogos de tabuleiro. Nos anos 70/80, tanto a Estrela quanto a Grow, lançaram, como se fossem seus, diversos jogos e produtos de empresas estrangeiras, sem comprar as licenças e sem pagar os royalties, apenas mudando o nome do jogo, e às vezes nem isso. Esses jogos (“Detetive”, “WAR”, “Banco Imobiliário”, “Jogo da Vida”, “Scotland Yard”, e vários outros) logo se tornaram campeões de venda, vendendo muito até hoje, e formam aquilo que se conhece conjuntamente como “jogos de tabuleiros clássicos nacionais”. Recentemente a situação mudou, especialmente com a chegada ao Brasil da Hasbro, que é a detentora dos direitos de diversos jogos de tabuleiro, tanto da Estrela quanto da Grow. Inicialmente as empresas entraram em acordo, envolvendo a continuidade dos lançamentos, mas esse acordo não foi renovado, o que deu origem a disputas judiciais, que rolam até hoje.

Antes que alguém fique preocupado com o futuro da Estrela, caso ela perca os direitos de produção do “Detetive”, do “Jogo da Vida”, e do “Banco Imobiliário”, entre outros, não custa lembrar que esses jogos representam uma gota, no oceano de produtos que a Estrela comercializa. É claro que a empresa não quer de forma alguma perder os jogos citados, sem brigar por isso, como ela tem feito, até porque eles ainda vendem aos montes e rendem muito dinheiro. Mas também, isso não significa que a empresa pode quebrar, caso deixe de produzi-los. Basta imaginar o montante de dinheiro que a empresa lucra, vendendo produtos das marcas Disney, Marvel e da Patrulha Canina (estes sim, devidamente licenciados). A coisa é mais ou menos como aquelas histórias de que a Petrobrás ia quebrar após os escândalos do “mensalão”, que a Vale do Rio Doce ia fechar após os deslizamentos de barragens em Minas Gerais, e de que o Grupo Silvio Santos estava praticamente falido, após os problemas com o Banco Santos. No entanto, apesar dos boatos, estas empresas estão muito bem de vida econômica, e continuam rendendo bastante dinheiro, para seus acionistas. Com a Estrela funciona a mesma coisa.
Voltando ao assunto do tópico, um dos primeiros lançamentos dessa nova linha de produtos é o jogo “Herdeiros do Khan”, que já pode ser adquirido em diversas lojas do setor. O preço de lançamento do produto ficou em R$ 150,00, mas já existem diversos relatos de usuários que compraram o jogo com preços na casa dos dois dígitos. Inclusive, já se formou até um consenso, pelo menos por essas bandas, de que essa deve ser a faixa de preço do jogo. Porém, nem tudo são flores, arco-íris e unicórnios. As pessoas que compraram o “Herdeiros do Khan”, logo de cara, notaram que a qualidade dos componentes é muito inferior, àquilo que se esperava, ou pelo menos ao padrão que se esperava, e nos diversos tópicos existem argumentos para todos os lados e gostos. São comentários do tipo: “o público alvo dessa linha de produtos não é o boardgamer médio, mas o público em geral, portanto não adianta comparar os componentes com os jogos modernos do nicho”, “os componentes são inferiores em relação aos board games do nicho, mas estão no mesmo nível dos outros jogos da Estrela”, “a Estrela poderia ter caprichado mais porque outros jogos da própria empresa têm preço equivalente e melhor qualidade de componentes”, “com uma tiragem de 10.000 cópias, o preço e os componentes poderiam ser melhores”, e por aí vai.
Ainda na questão dos componentes, não dá para ser ingênuo de imaginar que uma empresa que sempre lançou jogos com componentes mais simples, vai passar a reduzir drasticamente sua margem de lucro, para usar componentes “top de linha”, mesmo que ela coloque o termo “Premium” no nome da linha de produtos, e na caixa do jogo, e mesmo que a tiragem seja de 10.000 cópias. Nesse aspecto, o que talvez tenha causado maior indignação, nos boardgames mais radicais, foi o uso dos famigerados “peões de Ludo”. Pensando a respeito, uma das primeiras conclusões a que se chega, é que trocar esses peões de Ludo por meeples custariam irrisórios R$ 0,60 centavos, por peça, na Ludeka. Então mesmo que fosse necessário trocar 10 peões, o que não é o caso, ainda assim o preço ficaria em pouco mais de R$ 6,00, incluindo o frete, e fica difícil até saber se a Ludeka faria uma encomenda tão pequena. Porém, indo mais distante no raciocínio, é de causar estranheza essa verdadeira ojeriza causada pelos “peões de Ludo”. Talvez isso seja uma reminiscência ou trauma de infância, por eles terem sido usados não apenas no Ludo, mas também no Banco Imobiliário, ou talvez eles sejam desprezados por serem considerados muito feios. As possíveis explicações são muitas.

O que é estranho é que da mesma forma que eles são desprezados por alguns, para outros eles são sinônimo de prestígio e de status. O símbolo do aclamado prêmio Spiel des Jahres, que dispensa apresentação, não é um meeple, mas sim um peão de Ludo vermelho. Claro que é um peão de Ludo estilizado, mas ainda assim um peão de Ludo. Outra coisa estranha é que, do ponto de vista apenas do objeto em si, um peão de Ludo é uma peça plástica mais sofisticada (possui mais formas agregadas), digamos assim, do que um simples cubinho. No entanto, os cubinhos plásticos, que são o símbolo dos jogos euro, são adorados, a ponto dos apreciadores desse tipo de jogo se identificarem como “empurradores de cubinhos”, com todo o orgulho. E isso é que é estranho, porque o cubinho, que é mais simples, é tudo de bom, e o peão de Ludo, que é mais sofisticado, é tudo de ruim. Certamente que isso se deve ao fato dos jogos euro consagrados usarem cubinhos, e como esse jogos são bons, a associação que se faz é que os cubinhos são legais. Por outro lado, os peões de ludo são associados a jogos clássicos dos anos 80, em especial o “Banco Imobiliário”, o que explica a rejeição. Quando se coloca esses jogos clássicos em perspectiva, e principalmente quando eles são comparados com os jogos modernos, os jogos clássicos, de modo geral, mostram-se totalmente ultrapassados e inferiores, logo os peões de Ludo, aos quais eles estão associados, são vistos como igualmente horríveis.
O detalhe interessante é que na comparação com os jogos ameritrash, que se caracterizam pelo uso de miniaturas super detalhadas, os eurogamers radicais costumam dizer que “jogos com cubinhos são para pessoas com imaginação, enquanto jogos com miniaturas são para pessoas sem imaginação”. Desse modo, se quando o sujeito joga “Lords of Waterdeep”, ele consegue olhar para simples cubinhos com cores diferentes e imaginar que cada um deles representa uma classe de aventureiro diferente (estamos falando dos cubinhos regulares do jogo, e não dos meeples, porque aí é covardia), não dá para explicar a dificuldade que as pessoas têm de olhar para um peão de Ludo, e imaginar que ele representa um dos filhos de Gengis Khan.

Antes que as pedras comecem a voar, é bom esclarecer primeiro que isso não é, de forma alguma, um ataque ou crítica a quem curte eurogames, até porque o autor também é um “empurrador de cubinhos”, e grande fã do “Lords of Waterdeep”, muito embora o Stone Age ainda seja o nº 1 da lista, considerando todos os jogos de diferentes estilos. Segundo, porque o autor do texto também prefere muito mais os cubinhos aos peões de Ludo. Por isso não faz sentido que qualquer “confrade eurogamer” se sinta ofendido dessa forma, e se isso eventualmente acontecer, o autor pede desculpas antecipadamente. A intenção não é atacar o gosto de ninguém, mas apenas propor um ponto de reflexão. Nesse sentido, não deixa de ser interessante, que quando se coloca numa mesa um peão de Ludo de um lado, e um cubinho de outro, sem nenhum jogo associado, e se desconsidera todo o background envolvido nesses dois tipos de peças plásticas, fica difícil dizer por que essa é melhor que aquela ou vice-versa.
De todo o modo, todos os argumentos inerentes ao “Herdeiros do Khan” são válidos e foram muito bem defendidos, especialmente por um dos autores o Rodrigo Rego, quem numa atitude muito louvável, veio a público tirar dúvidas, esclarecer os detalhes, e como não poderia deixar de ser, defender a sua criação. Assim sendo, muito já foi dito a respeito do jogo, tanto a favor, quanto contra, de modo que é desnecessário e contraproducente, reproduzir aqui todas essas discussões. Por isso, talvez seja mais interessante analisar os possíveis impactos que o jogo pode ter sobre o mercado de boardgames, do que as qualidades e defeitos do jogo propriamente dito.
Atualmente o hobby de boardgames está em uma espiral cada vez mais complicada, não apenas para quem compra, mas também para as próprias empresas em si. Não dá para se iludir de que as editoras de boardgames são todas umas “mercenárias” e que elas ganham rios de dinheiro explorando os pobres consumidores, cobrando preços cada vez mais altos porque querem. Se fosse possível, qualquer editora trocaria na mesma hora, qualquer um de seus títulos, pelo WAR e o Detetive, que custam na casa de R$ 100,00, mas vendem dezenas de milhares de cópias todos os anos, gerando muito dinheiro. Só que a realidade das editoras não é bem essa, bastando ver a quantidade delas que não conseguiram sobreviver e tiveram de fechar as portas. Isso sem falar que apenas Galápagos, que tem o apoio de uma multinacional (Asmodée), e a Devir, que é uma editora já com décadas de experiência, atingiram um patamar financeiro, no qual seus diretores/proprietários podem viver exclusivamente da renda dessas empresas. Em todos os demais casos, os donos de editora possuem alguma outra atividade profissional, como principal fonte de renda, ou pelo menos é essa a mensagem que todos eles alardeiam. Muitos donos de editora são conhecidos das pessoas do hobby, e eles não estão acendendo charutos com notas de R$ 100,00, não moram em coberturas na Vieira Souto ou no Morumbi, não andam de Ferrari, nem tem iates ancorados em Angras dos Reis. Qualquer um que já tenha tido uma empresa, ou tenha feito algum empreendimento, sabe o quanto é difícil, sequer sobreviver como empresário no nosso país, e com as editoras de board games isso não é diferente.
Recentemente a Devir anunciou o relançamento do aclamado “Stone Age”, pela módica quantia aproximada de R$ 500,00. Particularmente, é muito difícil acreditar que esse valor foi obtido através de elaboradas técnicas de precificação, utilizadas por engenheiros de produção, e não baseadas no preço médio em que estavam sendo vendidas as cópias usadas desse jogo. Num primeiro momento é muito fácil dizer que a Devir é uma exploradora, e que está tentando sugar até a última gota de seus consumidores, com esse preço caríssimo. Mas, passada essa primeira impressão, talvez seja o caso, e essa é uma possibilidade muito plausível, de que a empresa esteja apostando em um lucro rápido, para poder cobrir o prejuízo de algum outro jogo e conseguir equilibrar as finanças. Obviamente pode ser que isso não tenha nada a ver, e que a empresa seja mesmo a mercenária que seus detratores dizem que ela é. Porém, mais uma vez, considerando o pouco dinheiro que boardgame rende, de forma geral, e o quão minúsculo é esse mercado, talvez a primeira hipótese esteja mais próxima da realidade.

Esse exemplo do Stone Age se aplica a praticamente todas as demais empresas do setor. Recentemente a Meeple BR anunciou que o esperado “Tainted Grail: The Fall of Avalon” vai custar “apenas” R$ 850,00, e algumas pessoas estão comemorando porque o jogo vai vir a menos de R$ 1.000,00, que era a faixa de preço que se esperava. Isso como se R$ 850,00 fosse um valor muito barato, e que todos pudessem pagar. As pessoas interessadas estão na mesma apreensão em relação ao “Descent: Lendas da Escuridão”: será que também virá por R$ 850,00 ou será que o preço vai bater os R$ 1.000,00, ou mais até?

Entretanto, esses argumentos não implicam em um apoio incondicional, geral e irrestrito às editoras de board games, porque certamente que elas têm muitos acertos, mas também muitos erros no currículo. Esse erros se verificam especialmente no que diz respeito ao controle de qualidade e ao processo de revisão, que, em alguns casos, geram erros grosseiros na caixa de jogos e expansões, bem como nas impressões e traduções. Essas ponderações servem apenas para mostrar que essa análise é responsável e calcada na realidade. Por isso a ideia aqui não é fazer uma manifestação intransigente e descerebrada, seja a favor ou contra as editoras, mas sim procurar analisar o mercado de board games, não só pelo ponto de vista de quem compra, mas também pelo de quem produz e de quem vende board games.
A “gourmetização” e “deluxetização” do hobby está elevando os preços de tal forma, que as pessoas já estão tendo de se programar para juntar dinheiro e conseguir comprar board games. Um mercado, composto por poucos consumidores e onde as pessoas só conseguem comprar um ou dois produtos por ano, não é um mercado saudável, e sua tendência no longo prazo é acabar, ou se tornar tão absurdamente restrito, que mesmo que ele ainda exista, em termos práticos vai ser como se tivesse acabado.
A verdade é que os jogos de tabuleiro nunca estiveram tão caros, e nem por isso parece que as editoras estejam ganhando tanto dinheiro assim. A exceção talvez seja a Galápagos, que é um ponto fora da curva, primeiro porque possui um percentual absurdamente grande e desproporcional dos jogos lançados no país, principalmente entre os títulos que vendem mais, e segundo porque conta com o apoio do Grupo Asmodée, que faz toda a diferença. Por outro lado, é muito fácil para alguém de trás do teclado, dizer que as empresas do setor deveriam adotar essa ou aquela estratégia para baratear os custos dos jogos. Essa é uma situação muito confortável, porque não há nehuma responsabilidade envolvida, não se arrisca nada, não se enfrenta nenhuma dificuldade de implementação, basta imaginar, elucubrar e teorizar. As editoras por outro lado operam no mundo real em que as decisões têm consequências e, que um erro pode levar desde a demissão do diretor, até o próprio fechamento da empresa, que tem sob a sua responsabilidade, uma grande quantidade de profissionais, pais e mães de família que dependem daquele emprego. Agora o fato de ser fácil falar apenas no campo hipotético, também não quer dizer que as pessoas não possam comentar a respeito, debater, trocar idéias, e apresentar sugestões, que é o que se propõe esse texto.
Não dá para deixar de ponderar, também, que o mercado brasileiro de boardgames ainda é muito pequeno, apesar do tanto que ele já cresceu em 10 ou 15 anos, e a política das editoras, de tiragens baixas e preços altos, tem grande parcela de culpa nisso. A grande maioria dos boargamers aqui possui um grupo de jogo de quatro ou cinco amigos que também compram board games, mas os demais amigos e parentes desses boargamers são pessoas que não compram board games, e quando muito jogam somente os jogos que esses boardgamers já possuem. Muitos boardgamers aqui possuem amigos e parentes, para os quais, gastar R$ 800,00 em um jogo de tabuleiro é um verdadeiro absurdo, totalmente injustificável, coisa de maluco mesmo, e que elas jamais fariam isso. Um dado curioso, e que mostra a relatividade dos valores e necessidades, é que gastar R$ 800,00 em jogo de tabuleiro é realmente muito caro, mas trocar de celular, apenas porque o novo é mais moderno ou mais bonito (sendo que o atual funciona perfeitamente), ou pagar para ir a um festival de música, desfilar em uma escola de samba do Grupo Especial, ou comprar o abadá de um trio elétrico de Salvador que custa quase a mesma coisa é perfeitamente normal. É como diz o ditado popular, cada um com a sua cachaça. Pagar R$ 800,00 em um jogo de tabuleiro está totalmente fora de cogitação, para essas pessoas, mas pagar R$ 99,00 (que é o valor do “Herdeiros do Khan” já em algumas lojas), aí é outra história totalmente diferente.
Como o mercado consumidor de board games é pequeno, as tiragens dos jogos também são pequenas, logo o preço por unidade acaba tendo de ser mais caro. Essa acaba sendo a tendência do mercado, ou seja, vender jogos com tiragens de 1.000,00 unidades, custando quase R$ 1.000,00, ou produzir 2.000 unidades, vendidas a R$ 500,00 cada uma, como se esse fosse um valor “comum”. Não custa lembrar que, segundo o IBGE, em 2020, a renda média do brasileiro (renda média, não o salário mínimo) foi de R$ 2.543,00. Portanto, para a média dos brasileiros, pagar R$ 500,00, significa gastar 1/5 da renda mensal, em um jogo de tabuleiro, o que é completamente inviável.
Dessa forma, todo mundo tem a “fórmula mágica chinesa da prosperidade”, que é vender em tiragens muito maiores, a preços menores, atraindo mais consumidores, de modo que todo mundo fique feliz, os designers, as editoras, os lojistas e os compradores. O problema, é que aumentar as tiragens dos jogos é mais fácil de falar, do que de fazer, da mesma forma como deve ser para “um rato prender o sino no pescoço do gato”. Para uma editora de board games, mesmo de tamanho médio, dobrar a tiragem de um jogo, de 3.000 para 6.000 unidades, pode dar muito certo, e a editora ganhar muito dinheiro, como também pode ser absurdamente arriscado, o jogo pode encalhar, e talvez a empresa nem sobreviva a esse prejuízo. Não custa lembrar que muitas editoras não sobreviveram, mesmo sem fazer esse tipo de aposta arriscada.
Por outro lado, se nada for feito nesse sentido, o mercado nacional de board games vai simplesmente continuar do jeito que está hoje, com jogos cada vez mais caros, e sendo cada vez mais excludente, isso se as coisas não piorarem nesse sentido, o que parece que será o caso. Claro que ninguém tem a ilusão, nem espera que, da noite para o dia, as editoras de board games comecem a produzir seus jogos com tiragens de 10.000 cópias, custando R$ 150,00, por unidade. Mas um aumento paulatino das tiragens e, evidentemente, o reflexo disso na redução dos preços, mesmo que pequeno é perfeitamente possível. Ninguém imagina que uma editora vai pular de uma tiragem de 2.000 para 5.000 cópias, de um lançamento para o outro, no entanto, passar de 2.000 para 2.200 ou 2.500 cópias, aí já é outra conversa e muito provavelmente viável. Mantendo esse ritmo constante e principalmente essa filosofia empresarial, a editora certamente estará produzindo muito mais cópias, a um preço muito menor, e ganhando mais dinheiro, talvez bem antes do que se espera. Mas para isso é fundamental sair da zona de conforto, onde as editoras de board games se instalaram, e da qual não pretendem abrir mão tão cedo, principalmente se estão conseguindo manter as portas abertas, onde diversas outras falharam.
É exatamente aí que entra a Estrela e a importância do lançamento “Herdeiros do Khan” e do selo Estrela Premium Games. Como a maior empresa de jogos e brinquedos do país, a Estrela tem condições financeiras de fazer apostas, e inclusive suportar prejuízos, muito maiores que as editoras tradicionais de board games, além de ter acesso e já possuir uma base consolidada de clientes, exponencialmente muito maior. Então, mesmo que apenas uma pequena parcela dos consumidores Estrela faça essa migração para os jogos de tabuleiro moderno, isso já será excelente. Não custa lembrar que uma pequena parcela de centenas de milhares de pessoas, já é gente para caramba. Mesmo apenas três, quatro ou cinco milhares de novos consumidores de board games, entrando no mercado, já fariam uma diferença enorme. Nesse cenário, a Estrela poderá fazer investimentos, que levem ao aumento da quantidade de pessoas que compram board games, muito além da capacidade de todas as editoras de board games tradicionais reunidas. Isso sem falar no grau de exposição e divulgação, sem precedentes para o hobby.

Claro que um dos riscos dessa empreitada da Estrela, reside no fato de que seu consumidor médio está muito mais acostumado com jogos mais simples do que com jogos elaborados. Nesse caso, sendo o “Herdeiros do Khan” um jogo médio de “controle de área”, com “pegar e entregar” existe a possibilidade de que o consumidor Estrela ache o jogo muito complicado para os seus padrões. Quem tem mais tempo de estrada vai lembrar que aconteceu algo parecido com o “WAR” e o “Supremacia”. O segundo era um jogo muito melhor, mas era tão mais complicado que as pessoas acabavam optando por jogar o “WAR” que era mais fácil de entender. Todavia, conforme relatado pelo próprio Rodrigo Rego, diversos jogos foram apresentados para a equipe da Estrela. Dentre as opções o “Herdeiros do Khan” era com folga o mais pesado, e mesmo assim foi o que mais despertou o interesse na empresa. E se tem algo que a Estrela já demonstrou ao longo de décadas é que ela não joga para perder e que sabe ganhar dinheiro, muito dinheiro, com jogos e brinquedos, como ninguém. Por isso é de se supor que a empresa saiba o que está fazendo e no que está se metendo.
Há que se considerar também que mesmo o boardgamer médio não sendo o público alvo da Estrela Premium Games, principalmente por conta da qualidade dos componentes, se o mercado de board games continuar se tornando cada vez mais elitizado e com preços cada vez mais altos, pode ser que boa parte das pessoas do hobby fique sem opção. Está cada vez mais complicado acompanhar os lançamentos. Certamente, todo mundo gostaria de comprar o “El Grande Big Box”, mas também é certo da mesma forma, que a maioria das pessoas não tem condições de pagar os R$ 800,00 que o jogo custa, por melhor que ele seja, e por mais alta que seja a qualidade dos seus componentes.

Dessa forma, um boardgamer, menos abastado, que quisesse continuar comprando jogos de tabuleiro modernos, teria que abdicar totalmente dos jogos mais complexos, e se conformar com os jogos festivos e jogos familiares. E mesmo esses últimos já estão atingindo a casa dos R$ 300,00/R$ 400,00, e a continuar nessa batida, rapidamente também se tornarão proibitivos. Nesse caso, o “Herdeiros do Khan”, que conforme dito em outros tópicos, é um board game moderno com preço e componentes adequados a uma realidade socioeconômica brasileira, poder vir a ser uma alternativa. Principalmente se não surgirem outras iniciativas, nesse sentido de baratear os preços dos jogos. Há que se destacar também, que apesar dos componentes do “Herdeiros do Khan” estarem bem abaixo do padrão do mercado de board games, ainda assim, o jogo tem feito certo sucesso entre o público boardgamer tradicional. Muitas pessoas têm dito abertamente que pretendem comprar o jogo, nem que seja para incentivar o mercado nacional, e estes parecem estar em maior número, do que aqueles que rejeitam o jogo, por conta dos componentes.
Por fim, apesar da baixa qualidade dos componentes, o “Herdeiros do Khan” ainda é uma boa alternativa, e vale o investimento, muito baixo por sinal (apenas dois dígitos em algumas lojas), até mesmo para quem é do hobby. Além disso, desde que a Estrela mantenha essa nova linha de produtos, e quem sabe até melhore a qualidade dos componentes para os novos lançamentos, muito provavelmente jogos como o “Herdeiros do Khan”, assim como os demais jogos baratos das editoras tradicionais é que vão representar verdadeiramente o futuro do board game nacional.
Um abraço e boas jogatinas.
Iuri Buscácio
P.S. Não dá para afirmar categoricamente que uma coisa esteja atrelada à outra, mas após o “Herdeiros do Khan”, ser bem recepcionado, inclusive pela comunidade boardgamer, não será de se espantar, se começarem a surgir “promoções” com preço mais baixo, para alguns jogos de editoras careiras, o que antes seria impensável...