Esse é o primeiro capítulo de uma (longa) história em partes, que serão publicadas aos poucos aqui - sendo a última delas somente em Maio. Convido-o a acompanhar como elementos inusitados podem fazer parte da criação de um jogo sem que as pessoas tenham a mínima ideia disso. O título é diário de um design - e não de um designer - pois essa é a história do Cheez-Tricks - e não a minha.
Nunca fui uma criança de brincar com coisas criativas, faz-de-conta, boneco, carrinhos. Muito menos de esporte, bolas e afins. Sempre fui uma criança de jogar.
Tenho pouquíssimas recordações da minha infância (e também da adolescência, e também da semana passada), mas sempre me lembro de estar jogando. Começou com jogos de crianças simples, logo veio um videogame (telejogo, e depois Intellivision, quem tiver menos de 40 dá um google), do qual eu nunca mais larguei (continuo com um PS5),
Em paralelo a tudo isso, mas sempre no topo do interesse, o baralho. Provavelmente a minha primeira apresentação foi junto ao meu avô, que jogava Escopa de 15 comigo. Mas a minha memória mais forte sempre será Águas de Lindóia, quando eu tinha algo entre 8-10 anos. Costumávamos passar férias em famílias em hotéis da região. No final da tarde, 18, 18:30, eu saía do quarto, de banho tomado, e ia direto para o salão de jogos. Lá encontrava umas senhoras da minha idade (70, 75 anos) e ficávamos jogando buraco, até a hora da minha mãe, muito constrangida, ir me buscar para jantar. E aquelas senhoras, muito firmes, diziam “não, o garoto só sai quando o jogo acabar”.

O que uma criança de 9 anos faz numa cidade como essa? Joga baralho.
Nunca mais parei. Na adolescência, flertei com o Bridge - juntei mais 3 amigos, comprei alguns livros sobre o assunto, me dediquei por cerca de um ano, mas não vingou. Mas a Tranca sempre esteve presente. Jogava sempre que podia, normalmente com amigos - a família nunca foi de jogar cartas. Quando comecei a namorar, jogava com ela e outros casais. Chegamos ao absurdo de ter um local fixo para jogar Tranca - um bar que íamos todo fim de semana, e que tinha uma mesa com um cobertor em cima pronto pra gente jogar, sob o olhar curioso das pessoas ao lado.
Em 2001, o baralho deixou de ser hobby e começou a virar profissão. E quando seu hobby vira profissão, ele acaba sendo deixado de lado como hobby (acredite, já fiz isso umas 3 vezes..). Em 2009 conheci os boardgames modernos, e o baralho ficou aposentado de vez. Os tabuleiros e suas variedades pareciam muito mais interessante do que aquele pack de 52 cartas que, naquele momento, era responsável pelo meu sustento.
Entretanto, a força do baralho nunca ficou de fora. Logo que entrei nos jogos modernos, conheci o Tichu - e ele veio a se tornar meu jogo favorito da vida (e ainda é, mesmo conhecendo mais de 1500 jogos modernos diferentes, e mesmo tendo jogado incontáveis partidas de Tranca). Sinal de que o baralho era uma presença definitiva na minha vida.
Nunca jogou? Pare tudo e vá jogar agora!
Além do Tichu, um jogo de vaza, Last Panther (parte do Mü & More), foi o ‘fechamento’ oficial das jogatinas em casa por muito, muito tempo. Às 2 da manhã, depois dos jogos mais pesados, uma rodada de Last Panther para finalizar. Um jogo de vaza com regras hiper simples, mas absolutamente perfeito (e um dos preferidos até hoje), por diversos motivos que vou citar mais adiante. E, por muito tempo, esses foram os meus principais jogos de baralho.
Em 2019, participei do “Vaza-Day” - uma ideia do Fel Barros que era o embrião do que um dia se tornaria o Cartapalooza - o maior evento de Carteado do Brasil (talvez do mundo, a gente precisa auditar isso) que em 2022 reuniu cerca de 100 pessoas, abastecido pela coleção particular do Fel de mais de 200 carteados.
Chega a pandemia. A necessidade de jogar online me levou ao Discord (que eu nunca tinha usado, pois nunca fui de jogar online), à comunidade do PGC (Portland Game Collective) e finalmente ao playingcards.io - uma plataforma/sandbox para jogar cartas online, de utilização ridícula e programação bem fácil. E centenas de jogos de baralho diferentes para ser jogado online. Como já tinha parado de trabalhar com mágica, o baralho não era mais uma profissão - e pôde voltar a ser um hobby. E o mundo do baralho voltou a me fascinar.
Comecei a conhecer inúmeros jogos - a maioria deles de vaza, shedding, climbings e rummys - o que foi batizado de “Carteado” aqui no Brasil - versões modernas de jogos de base clássica. Carteados do mundo todo - especialmente do Japão - com ideias absolutamente mirabolantes e que, de vez em quando, até funcionavam. Entrei em um pequeno grupo de WhatsApp de Carteado - acho que tinham no máximo 10 pessoas - que hoje virou, sem dúvida alguma, o principal grupo de produção de conteúdo de Carteado moderno no Brasil - conversando diariamente com figuras conhecidas como Gustavo Lopes (Gambiarra) e Magana (Carteados Around the World). Começamos a trocar experiências, jogar online, jogar presencial, e os Carteados tomaram conta de 80% do meu tempo direcionado ao hobby do board game.
Jogo de vaza de bruxas que fazem entregas para a "Amajon" e sentem dores nas costas? Temos!
No fim, retornei à Águas de Lindóia - mas o baralho pode ser bem diferente de 52 cartas com 4 naipes. Pode ter 8 naipes, com quantidades de cartas diferentes em cada um deles. Pode ter dois números na mesma carta. Pode nem ter número. Pode nem ter naipe.
Um belo dia, o Fel Barros e o Fábio Tola me fazem um convite: "Por que você não cria um jogo de vaza? Você gosta tanto, já conhece tanta coisa. Cria aí que a gente corre atrás para publicar.” Minha primeira resposta foi rápida: nem a pau. Já tinha transformado dois hobbies em profissão. Não queria fazer o mesmo com o terceiro (apesar de já ter feito, pois traduzi diversos jogos para editoras nacionais). Devido à insistência deles, cedi. E aí nascia o que seria, um dia, o Cheez-Tricks.
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