As ARTES das CAIXAS
Dentro você viu o que achou ter visto por fora?
Nesta postagem especial, a primeira de 2023, trago uma discussão sobre a arte das caixas, o que acredito que tornam as ilustrações bons exemplos a serem seguidos e o que fazem que acabam atrapalhando a experiência do jogador.
Olá, guerreiros do papel e do papelão!
Após um breve período de férias, estou de volta (não me digam que nem notaram? Aaaa vá!). Fiquei queimando a mufa um tempo para definir qual o tema deste primeiro texto, pois queria sair do óbvio e acho que uma simples análise seria pouco para a abertura do ano. Decidi, então, olhando para a minha modesta prateleira de jogos falar sobre a primeira coisa que vemos ao toparmos com um jogo: Sua caixa, mais especificamente a arte impressa nesse bloco oco de papelão.
Como de costume nesse meu tipo de postagem, o texto será separado em duas partes. A primeira será quase um ensaio sobre o assunto, enquanto a segunda trago exemplos reais do que apresentei na primeira parte. Fiquem à vontade para ler o quanto e como quiserem!
Parte I: Mais que uma Caixa
Sem me delongar muito em teorias técnicas sobre design, mas ainda não deixando de lado minha chatice habitual em levantar observações, vou destacar alguns pontos que acho interessantes para a discussão, afinal a caixa é algo muito mais importante do que apenas uma embalagem para transporte, ela é comunicação.
Antes de prosseguir, é importante salientar que este texto se refere principalmente à arte contida na parte da frente da caixa, uma vez que ela não apresenta informações textuais informativas importantes, coisa que vai fazer parte da composição da parte de trás da caixa. Não digo isso diminuindo qualquer um dos lados, elas possuem apenas funções diferentes, logo o enfoque sob os aspectos que permeiam a construção do layout de cada face (ou mesmo as laterais) da caixa são diferentes.
O ponto central a ser refletido sobre o tema é que uma ilustração na caixa ser bem feita, rica em detalhes, com maestria em técnicas de desenho, sombreamento, profundidade, diagramação, estudos de usabilidades, calor, tipografia, uso da Gestalt e assim por diante pode não ser o mais adequado para um determinado produto. Não adianta a disponibilizar uma super verba para que o ilustrador faça uma baita arte sensacional para caixa se o resto dos elementos não seguirão o mesmo padrão, se a arte dos outros componentes for feita às pressas, se o material utilizado é de qualidade duvidosa e se, por mais que seja dolorido escrever isso, a parte mecânica em si não corresponda à tamanha beleza. Um jogo com uma arte super detalhada ter regras super simples e a partida durar 10 minutos é um contrassenso, afinal o jogador espera ter mais tempo para apreciar o conteúdo do jogo tal qual gastou apreciando aquela arte da caixa (vocês ficam olhando detalhadamente a arte das caixas dos jogos que possuem ou sou apenas eu?). Reforçando: A ideia principal sempre será a mensagem transmitida ao jogador/consumidor, não a qualidade artística da ilustração por si mesma apenas.
Tratando-se da parte frontal da caixa, sua arte detém grandes responsabilidades que vão desde o olhar estritamente comercial até o artístico. Pode-se dizer, por exemplo, que a arte da caixa tem como responsabilidade:
a. Chamar atenção para o produto no ponto de venda
Não precisa ser muito versado em marketing para reconhecer a importância de um produto em se destacar dos demais em uma prateleira. Considerando ainda a alta quantidade de lançamentos e os preços elevados, onde o jogador raramente consegue comprar tudo que vê pela frente, ter uma arte que chame atenção é crucial (e aqui não me refiro a ser espalhafatosa e coloridona, pois para alguns o mistério é muito mais fascinante). Se essa arte boa para o ponto de venda é condizente com o produto que vem dentro, aí é assunto para os itens abaixo.
b. Transmitir qual o teor do conteúdo do jogo
Essa arte também deve responder a quem esteja admirando sua beleza quem é o público-alvo daquele produto. Se o jogo tem um clima pesado de terror, infantil ou para toda família, é preciso isso ficar claro de alguma forma, sem que seja preciso ler um texto descritivo ou um ícone em algum canto. Dialogando diretamente com o item acima, é preciso que um consumidor, que não possui tempo sobrando, afinal têm muito manual para ler e carta para colocar sleeves, ao bater o olho em uma prateleira consiga perceber se o jogo está dentro do seu perfil.
c. Expressar, mesmo que superficialmente, a complexidade e até aspectos mecânicos do jogo
Esse item pode ser polêmico, acredito pela sutileza, mas não menos importante. Se o jogador sacou o teor temático do jogo, se é de terror, aventura e etc., ele acaba por necessitando captar se aquele jogo lhe parece divertido! Se não fosse por esse aspecto, mesmo que por nuances, todo jogo cujo tema é similar teria artes similares, pois existiria uma fórmula para isso, o que não existe... mais! Digo que ‘não existe mais’, pois algumas poucas décadas atrás a fórmula existia e consistia em colocar crianças e pais felizes a brincar, jogando seja lá qual fosse o jogo. Isso era algo básico, principalmente pelo fato de o consumidor serem adultos comprando estes jogos para crianças. Conforme os jogos foram evoluindo mecanicamente e atingindo um público cada vez mais maduro, a arte da caixa foi também se modificando, deixando de trazer pessoas e fotos dos componentes do jogo para dar espaço para conceitos mais abstratos, contudo, sempre sendo necessário ainda expressar qual era o universo contido dentro daquela caixinha de papelão, o que, em última instância começa a depender de um pouco mais de esforço por parte do espectador, afinal este critério atualmente fica mais evidente apenas através da comparação entre produtos, inclusive considerando outros elementos além da arte, como tamanho e formato da caixa até mesmo o preço.

(Alguns exemplos de jogos clássicos no qual era comum ter pessoas e o produto estampados na arte da caixa)
d. Introduzir o tema aos jogadores
Onde e quando o jogo se passa, quem são os personagens, o que está acontecendo e questões similares devem ser respondidas logo de cara e sem a ajuda de um vendedor, amigo, criador de conteúdo ou mesmo o manual (ele é de extrema importância, mas não como o primeiro contato com o tema). Se cada componente é importante para ajudar a construir a narrativa, a caixa sendo a primeira coisa que o jogador vê possui um impacto crucial em localizar o jogador em qual será seu papel no recorte temático, ficcional ou não, em que o jogo se passa. Sabe aquela frase batida “Não julgue um livro pela capa”? Então, serve para tudo, jogos de tabuleiro incluso. Apesar da frase orientar que não devemos julgar, nós vamos julgar, afinal isso é natural e faz parte do comportamento humano (e eu não acho errado, caso me pergunte), então, ao julgar, se a ideia que se formou em sua mente ao ver a capa/caixa não for condizente e compatível com a ideia geral que a experiência de jogo proporcionou, não se culpe, culpe a arte da caixa!
Agora que terminei de levantar os pontos que na minha opinião julgo centrais, é preciso dizer que não existe uma fórmula perfeita. Uma ilustração de caixa vai sempre percorrer caminhos próprios, vagando entre os itens mencionados acima com maior ou menor ênfase em algum, devido a escolhas pessoais dos envolvidos, sejam artistas, gamedesigners ou mesmo produtores da editora.
Eu, Raphael, não sou artista, minhas formações são outras (comunicação e, em breve concluída, psicologia), logo preciso tomar bastante cuidado para não misturar conceito com prática e, pensando nisso, pedi a ajuda de um expert no assunto: Marcelo Bissoli, diretor criativo e artista gráfico, responsável por diversos jogos, entre eles The Cook Off (Luis Francisco, 2013. Mandala Jogos) e Triora: Cidade das Bruxas (Michael C. Alves, 2019. Meeple BR). Marcelo me respondeu algumas perguntas sobre como se dá esse processo de criação, vamos às respostas:
1 - Como acontece normalmente um briefing para arte de um jogo?
R.: O briefing é feito ouvindo todas as partes envolvidas, jogando o jogo em si e ponderando sobre aspectos comerciais (afinal, o jogo é um produto) e complementando o briefing com questões válidas por parte do artista. Outros detalhes como prazo, complexidade, técnica e até custo também influenciam no desenvolvimento do briefing.
2 - A arte da capa é discutida de forma separada em relação a arte dos demais componentes?
R.: Eu gosto de adotar uma pequena regra de limite e materiais utilizados e defendo uma arte coerente com a capa. Certamente ela faz parte da experiência do consumidor/jogador e não pode quebrar expectativas, mas isso não é uma regra absoluta e o artista faz o que pode dentro do que lhe é pago e solicitado.
3 - Quais pontos principais a produção e o artista costumam se preocupar na elaboração da arte da parte frontal da caixa?
R.: No que se refere à produção da caixa, um artista deve se concentrar na composição, destaque pra logomarca e coerência com o que o jogo propõe ou aborda. Podemos considerar também pontos de produção final e acabamento como laminação fosca ou brilhante, textura (gofragem) e verniz.
4 - O que para você é preciso para compor uma boa arte de caixa?
R.: Ter uma boa direção de arte, prazo e muitos estudos.
5 - O que você acha, no geral, das artes das caixas dos jogos que conhece? Possui jogos cuja arte da caixa mais gosta e alguns que não gosta?
R.: Eu acho que visualmente as artes evoluíram bastante nos últimos anos e muitas se tornaram obras dignas de premiação. Sempre gostei das artes da Fantasy Flight Games, mas uma arte de capa que posso citar e que gostei bastante foi a do jogo RPG Quest! Quanto a uma arte de capa que não me agrada (mas aí é algo pessoal) é a do Catan.
Com a entrevista, que reforçou alguns pontos apresentados, vamos para a segunda parte da postagem, aquela que eu cito exemplos que acredito terem cumprido seu papel, sendo uma boa arte, e outros que acho que não foram muito bem planejados.
Parte II: A Arte na Prática - Exemplos
Quando apresentei o que considero importante pensar durante a etapa de criação de uma ilustração de caixa, não me prendo na questão de a arte ser literal ao tema ou a mecânica apresentada. Me preocupo com a criação de expectativa que eu, como jogador, tenho ao ser impactado por aquela imagem e a coerência que sinto entre essa expectativa e a realidade vivenciada pela experiência do jogo em si. Reforço que entendo que os itens listados acima se misturam, dividindo linhas tênues do que é técnica com o que é gosto pessoal. Uma coisa que não farei, pelo menos por enquanto, por mais que possa soar meio contrassenso, é citar os artistas e ilustradores, pois como foi visto na entrevista com o Marcelo, nem sempre o artista tem a liberdade e direcionamento corretos, sendo um trabalho em conjunto entre o artista, game designer e editores. Porém, não fiquem tristes (sei que não ficariam mesmo haha), pois um dia trago um post especial somente para falar de ilustradores que gosto (já adianto os nomes de Vicent Dutrait, Paul Mafayon e Michael Menzel, cada um com seu traço e estilo bem diferente do outro. Se não os conhece pelo nome, vale uma busca na internet!).
Retomando, a arte da caixa é importante para:
a. Chamar atenção no ponto de venda
b. Transmitir o teor do conteúdo do jogo
c. Expressar a complexidade e aspectos mecânicos
d. Introduzir o tema
Com base nestes critérios, vou listar algumas caixas de jogos famosos e o que penso sobre elas, contudo é importante dizer que citarei apenas jogos em que conheci o jogo fisicamente, sabendo como funciona, logo não irão achar nessa lista nenhum jogo com arte cabulosamente bisonha como a de Roads & Boats (Jeroen Doumen, Joris Wiersinga. Splotter Spellen. 1999), que se diga de passagem acho ser a capa mais feia que já vi durante toda a minha breve vida no hobby. Vamos lá!
Great Western Trail
(1ª edição – esquerda / 2ª edição – direita)
Irei começar com um dos jogos que acho que mais deixa evidente os pontos levantados pelo fato de uma nova edição ter modificado quase que por completo a ilustração da caixa, criando uma comparação direta: Great Western Trail (Alexsander Pfister. 1º Edição: Conclave Editora. 2016; 2º Edição: Galápagos Jogos. 2021). Temos à esquerda, o que para uma pessoa míope que esteja um pouco mais longe não passa de um borrão cinza, a arte da Primeira Edição. Já no lado direito, com muito mais cores, a caixa da Segunda Edição.
Falando da arte da Primeira Edição, temos algo monocromático, cinza, apático, com uma fonte pesada. No ponto de venda, se a caixa se destaca é pelo fato de destoar das demais devido sua paleta de cores sem vida, o que não acho ser algo positivo, já que não me atrairia como consumidor. Temos como destaque focal o rosto dos tipos de trabalhadores, mas não é possível fazer uma leitura precisa do que o jogo se trata além de ‘acontecer no velho oeste’, apesar dos outros elementos como vacas, cavaleiros, um trem e um par de ‘wigwan’ (as tendas dos índios norte-americanos). Uma coisa que podemos considerar é que o jogo não é muito simples, justamente pela quantidade de informação na caixa, além do aspecto sério que as cores e expressões dos personagens passam. Certamente não é um jogo alegre e festivo.
A Segunda Edição, contudo, apesar dos componentes e regras serem praticamente os mesmos na essência, a arte da caixa considero muito superior. Temos uma paleta de cores renovada e muito mais vibrante, muito mais condizente com a que o restante dos componentes apresenta e que, pela beleza e composição, chama atenção na prateleira. O título deixou de ter letras grossas e traz um estilizado que lembra mais a temática de velho oeste, com arabescos decorando a caixa, dando vida às faixas pretas que compõe o layout, o que, em última instância, serviu para dar destaque tanto à ilustração como ao título, criando blocos visuais bem estabelecidos. Eu acredito que a escolha por estas faixas pretas foi acertada, pois elas me passam um certo ar de elegância vintage. Caso a direção de arte, ao invés disso, tivesse colocado a ilustração tomando toda a caixa e o título sobre a mesma, acho que se perderia uma parte dessa sensação de ‘coisa mais antiga’, que é pertinente ao tema do jogo. A ilustração em si agora apresenta cowboys (provavelmente) guiando o gado em um ângulo que mostra o horizonte, com o rio e a cidade. Essa ilustração me remete muito bem ao tabuleiro do jogo e ao sentimento de jogá-lo: é como se nosso meeple, no papel do cowboy, conseguisse observar e planejar sua rota, notando o quão perto está chegando do seu destino enquanto lidera um rebanho de bovinos, que é eixo central mecânico do jogo, apesar das outras possibilidades que ele apresenta.
Dead of Winter: Um Jogo de Encruzilhadas e Dead of Winter: Noite Sem Fim
(O primeiro jogo lançado - esquerda / Segundo jogo da série – direita)
Apresentando exemplos de arte muito bem feita, mas que não cumpre os requisitos que considero necessários para considerar uma boa peça no geral, estão os jogos da série Dead of Winter (nota: desculpem aí, mas a caixa do Noite Sem Fim, à direita da tela, não achei a versão nacional em uma boa qualidade para utilizar, então usei a gringa mesmo).
O primeiro jogo lançado, Dead of Winter: Um Jogo de Encruzilhadas (Jonathan Gilmour, Isaac Veja. Galápagos Jogos. 2014) é um jogo de terror em que jogadores controlam sobreviventes, rolam dados e descem a pancada em zumbis. Tá. A caixa deixa isso claro? Não. Olhando a caixa, apesar da belíssima ilustração, se a pessoa não sabe do que o jogo se trata de antemão (e o título não ajuda muito, afinal ‘dead’, proveniente de morto/morte e afins, pode ser usado para fins variados) pode achar que o jogo retrata uma novela mexicana, devido a intrigas e um enredo cheio de personagens e o destaque no título dramático. O jogo, de fato, traz elementos de intriga, com jogadores sendo traidores e cartas com historinhas bem interessantes, mas a mecânica central é a exploração, gestão de cartas e os recursos que representam, rolagem de dados e combate com ZUMBIS. Ao olhar a caixa, pensando no que pode se tratar o jogo, com tantos rostos e o foco no drama, o consumidor pode ser levado a achar que se trata de um jogo de interpretação de papeis, um jogo social. Se a caixa fosse de tamanho menor, mais comum para esse tipo de jogo, essa sensação seria ainda maior, destacando neste exemplo como o tamanho da caixa impacta na percepção também.
O segundo jogo da franquia, Dead of Winter: Noite Sem Fim (Jonathan Gilmour, Isaac Veja. Galápagos Jogos. 2016) tem todos os mesmos elogios: arte incrivelmente bem feita, sendo rica em detalhes; Arte que conecta bem o lance do tema de inverno com o que o jogador vê; Cores utilizadas que chamam a atenção, sendo vibrantes e usando muito bem efeitos de sombra e luz. Contudo, também tem (quase) todos os mesmos problemas: ainda pode parecer coisa de dorama; ainda pode parecer um jogo de interpretação de papéis; ainda não deixa claro se tem combate físico ou é tudo na base do terror psicológico. Apesar disso tudo, a edição dois anos mais velha corrigiu algo muito importante: fica claro agora que TEM ZUMBI. Essa adição simples de uma silhueta de uma criatura humanoide deformada, que sem muito esforço alguém nota ser um zumbi, deixa tudo mais macabro, até mesmo a arte usou tons mais escuros para reforçar a ideia, apesar de mecanicamente os jogos serem ainda muito parecidos. Dead of Winter, no final das contas, é um bom exemplo de como a adição de um único elemento pode fazer a diferença, e por isso resolvi incluí-los na postagem.
Terraforming Mars e Terraforming Mars: Expedição Ares
(Terraforming Mars - esquerda / Terraforming Mars: Expedição Ares – direita)
Outro comparativo, apesar de não serem o mesmo jogo, tendo apenas um parentesco próximo (seriam irmãos segundo a árvore genealógica tabuleirística será?), é o Terrafoming Mars (Jacob Fryxelius. Meeple Br Jogos. 2016) e Terraforming Mars: Expedição Ares (Sydnei Engelstein, Jacob Fryxelius, Nick Little. Meeple Br Jogos. 2021). . Não vou falar dos jogos em si, até pelo fato de já existir um texto comparando ambos (acesse, caso curioso, em: https://ludopedia.com.br/topico/56730/terraforming-mars-vs-tfm-ares-expedition-confronto), o importante é saber que ambos tem o mesmo tema, são jogos guiados por cartas e, obviamente, ocorrem em Marte.
Apesar de serem diferentes, coloquei amboslado a lado, pois existem muitas semelhanças. O de Terraforming Mars (à esquerda) possui aquelas caixas como de Great Western Trail, contudo com uma textura terrosa, até aí, sem muitos problemas. O título estar na parte de baixo, apesar de incomum, não me incomodou também e a fonte utilizada no título achei forte e não tenho o que reclamar. O que me faz considerar a arte da caixa ruim são dois pontos principais: 1. A paleta de cores deixa tudo apagado e não me passa a sensação de ‘planeta vermelho’ que talvez tenha sido a intenção por trás dessa escolha, inclusive já vi caixas com tons diferentes, não sabendo dizer exatamente se foi diferença de tiragem ou só desbotamento mesmo – e durabilidade do produto é algo muito importante, o que me faz não achar que o produto realmente chame atenção no ponto de venda (e olhando a lombada desse jogo na estante, nem sequer se destaca ali, e olha que nem são muitos); 2. Os caras ali, astronautas, sei lá, estão plantando algo? Colhendo minhoca? O que isso tem relação com o fato de os jogadores serem MEGA corporações? Nada. Não entendi. Isso não me transmite realmente o papel que o jogador assume e nem a complexidade do jogo, afinal ser uma pessoa passeando pela superfície do planeta ou ser o CEO de uma empresa interplanetária, realizando ações que literalmente modificam o planeta são coisas completamente diferentes!
Já a caixa à direita na imagem, de Terraforming Mars: Expedição Ares, é diferente, mas não muito, então fica em um limbo entre bom e mal exemplo para mim, já que arrumou coisa que achei ruim, mas manteve outras. A primeira diferença é que essa caixa é de uma qualidade MUITO superior em relação ao material, é bem mais vistosa, com verniz localizado e cores mais vivas. A qualidade do traço e efeitos de luz e sombra são melhores nessa ilustração e o título voltou para a parte de cima, local mais comumente usado. Além disso, a arte ‘abraça’ a caixa, tendo a lateral/lombada como uma continuidade da imagem da face da tampa, o que acho bem bonito (vale mencionar que o topo e fundo das laterais da caixa possuem uma textura terrosa como do outro jogo, Terraforming Mars, o que gera estranheza por apresentar uma ‘quebra’ no padrão da imagem). Dessa forma, a caixa chama bem mais atenção na prateleira, o que é uma evolução ao irmão mais velho. Contudo, os problemas com a apresentação do tema e mecânica persistem. Ainda somos apresentados a um planeta com uma mísera construção e duas pessoas contemplando o horizonte, ao invés de um aparato tecnológico caro e avançado e grandes empresas dominando a p#%ra toda! O Terraforming Mars: Expedição Ares é um excelente exemplo de uma arte fantástica, mas com um uso pobre da caixa como forma transmitir mais do que o básico da experiência que o jogador terá.
Wingspan
(Um do queridinho de muitos)
Um bom exemplo que trago onde o título foi muito bem usado na parte inferior da caixa é Wingspan (Elizabeth Hargrave. Grok Games. 2019), um jogo adorado por muitos, com componentes de excelente qualidade, no qual os jogadores assumem o papel de observadores de pássaros.
Na caixa, bem ilustrada e com um efeito que parece uma imagem levemente aquarelada, um passarinho chamado ‘scissor-tailed flycatcher’, ou em português, tesourinha-rosada. Para amantes da natureza (e coisas fofas) a caixa é de encher os olhos. O passarinho é muito bem desenhado, sendo fotorrealista, com um fundo em um tom azul agradável e que faz sentido, afinal o pássaro está voando (logo, no céu) e, por fim, o título na parte inferior da caixa me chama a atenção por um motivo interessante: ele não parece ter sido apenas uma escolha estética, como foi em Terraforming Mars, mas ele faz sentido e se integra de forma orgânica ao pássaro! Como a cauda do pássaro interage com as letras, finas e elegantes, dando a impressão que elas estão fisicamente presente junto da ave, quase como se o tesourinha-rosada tivesse desviado ou mesmo levantado voo a partir dela, logo o fato de estar na parte inferior da caixa dá uma impressão de altitude, de que essa palavra, que geralmente está no alto, apesar disso, ainda está mais baixa que a ave, dando uma sensação quase de ‘olhar para cima para ver a ave em relação ao título’ para as pessoas que estão acostumadas com as diagramações convencionais.
A caixa acaba sendo um tanto minimalista, mas o restante dos componentes também são assim, as cartas, por exemplo, são basicamente brancas com a ilustração de uma ave, ícones e textos, tudo seguindo uma paleta de cores pastel e leve, o que, apesar da simplicidade, consegue manter uma coerência entre o visto internamente e externamente. Isso tudo faz com que a mensagem da caixa não seja muito evidente em um primeiro momento, contudo, o jogador experimenta um fenômeno através da arte da caixa muito similar ao tema do jogo que lhe é apresentado: observar pássaros. Além disso, a caixa ser direta contribui com a percepção de complexidade do jogo, que é relativamente leve e fácil de ensinar, uma evidência que corrobora isso é o fato de o jogo ocupar o 1º lugar na categoria Família no famoso portal Boardgame Geek (ou só BGG).
Cidades Sombrias: Salem 1692
(Uma caixa? Um livro? Não, mais que isso: um Jogo!)
Um exemplo diferente de uma caixa que acho boa é quanto ela não se limita aos padrões impostos pelo mercado e inova de alguma forma. Um formato diferente, por mais que encareça o produto é uma ótima forma de ajudar a transmitir todos os pontos levantados. Existem alguns jogos que fazem isso, mas para o exemplo usarei o jogo Cidades Sombrias: Salem 1692 (Travis Hancock. Galápagos Jogos. 2015).
A arte da caixa consiste basicamente em fazer o produto final ficar parecendo um livro. Para tal são usadas texturas e cores que remetem a um exemplar antigo, desgastado, judiado com o tempo, com algumas marcar e manchas, mas nada exagerado para não perder a mão e soar até cafona. Na loja isso chama a atenção, mesmo que seja para mal, deixando questões na cabeça do consumidor como ‘Oxi, isso é jogo?’. Se atiçou a curiosidade, metade do caminho já foi percorrido. Respondendo às outras questões, apesar da arte não literal de tudo que rola na partida, Cidades Sombrias: Salem 1692, responde de forma indireta em parte por ter um nome bem objetivo, que remete a Salém, cita ‘ser coisa sombria’ e coloca um ano específico de séculos atrás. Isso, aliado ao fato de ter o formato de um livro, são fortes pistas para saber que o jogo envolve contagem de história, logo é um jogo social, que envolve bruxas, intrigas e até morte. Durante a partida, é isso mesmo que rola. Os componentes são apenas cartas e os jogadores assumem os papeis de aldeões, representados por personagens únicos, que precisam desvendar quem é são as bruxas infiltradas, enquanto elas angariam novos seguidores para sua seita. Esse é um exemplo de como um jogo consegue ter uma arte de capa super simples, sem uma ilustração literal das coisas, mas que o resultado positivo irá vir através de uma junção de outros elementos.
RPG Quest – A Jornada do Herói
(Aquele ditado “Por fora bela viola”)
Vou encerrar o texto dando espaço para dois jogos de designers nacionais. Acho justo, afinal jogos nacionais estão em uma crescente de produção e qualidade nos últimos tempos. O primeiro que selecionei foi motivado por duas coisas: 1. É um jogo que eu acredito levantar um ponto crucial à discussão; 2. Foi citado pelo Marcelo Bissoli na entrevista, então acho legal mostrar, apesar de discordar um pouco. Apresento-lhes formalmente RPG Quest – A Jornada do Herói (Marcelo Del Debbio. Daemon Editora. 2017).
Antes que alguém venha me criticar gritando ‘Para Para Para’ a lá João Kleber, eu tenho plena ciência que a arte DA CAIXA deste jogo é LINDA. Nisso concordo com o Sr. Bissoli, o entrevistado. A ilustração DA CAIXA chama muito a atenção, sendo rica em detalhes, com diversas camadas de profundidade, efeitos e mesmo os personagens, sejam os heróis ou a cabeça de dragão são incríveis. Parabenizo o ilustrador que fez essa arte em específico. Não tenho dúvidas que essa arte chama a atenção nas lojas e auxilia muito o jogo a ser vendido, eu sou prova disso, pois quando vi numa prateleira de uma loja, comprei! O real problema é que diferentemente dos jogos da saga Dead of Winter, apresentados anteriormente, onde os personagens e o tipo de ilustração da caixa é idêntica as artes do jogo em si (o que na verdade faz parecer que a arte da caixa é basicamente uma montagem das artes dos componentes do jogo), em RPG Quest – A Jornada do Herói acontece exatamente o oposto: nada, nadinha, nenhum, nem dois, nem três, nadicas de pitibiribas a arte dos componentes é sequer remotamente semelhante à arte da caixa. Para ser muito sincero, e se alguém ficar triste que me perdoe, mas não posso mentir: as artes do jogo em si achei bem feias, pobres mesmo. Não que uma arte ruim seja sinônimo do jogo ruim ou que isso, necessariamente, estrague a experiência, sou fã de Stefan Feld e se eu alegasse algo assim seria um hipócrita. O que acontece é que não tem nenhuma coerência, não é compatível o que vejo na caixa com o que vejo no restante dos componentes.
Sobre os outros aspectos, fica tudo um pouco a desejar, pois é tudo meio genérico também. Ok, ficou parecendo que acho o jogo ruim, e acho mesmo, por mais chato/triste/tóxico/bocózinho que possa soar eu preciso admitir isso, mas o ponto aqui não é criticar o jogo em si, mas o que achei que ele era por causa da arte da caixa e o que eu senti ao jogá-lo. Vendo a capa imagino: os jogadores são heróis que encontram e sentam o sarrafo em monstro vagabundo. Tem isso também, mas o jogo é muito mais focado nas viagens, contatos criados, time agrupado e missões a serem cumpridas do que flechada, porrada e magia em tempo real, inclusive, a mecânica que é até bacana e criativa, não passa a emoção da batalha que eu vi na capa, me deixando frustrado. Por viés de comparação, outro jogo que me fez sentir exatamente a mesma sensação de discrepância entre o fuzuê de uma batalha épica (que apresentam na caixa) com a calmaria contemplante de uma reunião tática dentro de uma taverna (que é o ritmo dos jogos) foi Ethnos (Paolo Mori. Conclave Editora. 2017), as diferenças são que a arte dos componentes de Ethnos mantém o padrão da capa e que eu gosto do jogo e sua vibe meio Ticket to Ride de ser.
Grasse – Mestres Perfumistas
(Momento desabafo: Que dificuldade achar uma imagem em boa qualidade da capa!)
O outro jogo nacional que escolhi para esta postagem foi Grasse – Mestres Perfumistas (Bianca Melyna, Moisés Pacheco. Ludens Spirit. 2018). Jogo este que em sua edição do financiamento coletivo acompanhava uma luva de caixa branca com dois perfumes desenhados, era elegante, mas por ser um material extra, irei considerar a arte da caixa e não essa luva.
Essa arte da caixa é simplesmente linda (e ia falar que é cheirosa, mas o espirito de tiozão não se aguenta e já escrevi). Ela consegue se destacar de muitas outras caixas por utilizar cores chamativas em alguns pontos específicos, como os frascos de perfume sobre a mesa e o horizonte com uma bela plantação de flores lilás, em contraponto aos tons marrons, duros e fechados do personagem e do restante do cenário, tudo emoldurado por barras bege que ajudam a não deixar a vista escapar para fora da imagem, que é tão bela quanto um quadro bem feito.
Se tratando dos aspectos do teor temático e mecânico, a imagem é um tanto literal, o que a faz ser eficiente sem muita enrolação. No jogo somos produtores de perfumes e passamos pelas diversas etapas de fabricação, da colheita à finalização, assim como é demonstrado na arte da caixa. Como a galera a mais tempo no hobby deve estar acostumada, jogos que envolvem temas desse tipo costumam ser um pouco mais complexos, com mecânicas de gestão variadas, e temos isso em Grasse – Mestres Perfumistas, e a arte da caixa, cheia de elementos variados passa essa impressão também. Temos então, como um bom exemplo de arte de caixa eficaz, uma arte bem feita, condizente com as ilustrações do resto dos componentes e mesmo a qualidade dos mesmo (existem uns frasquinhos plásticos translúcidos customizados que representam os perfumes que são incríveis), que chama a atenção do produto no ponto de venda, que coloca o jogador na época e local que o jogo ocorre e com detalhes o suficiente para que o jogador entenda, somente olhando a caixa, qual será o recorte que irá vivenciar durante a partida e dá boas pistas da complexidade do jogo.
Por enquanto é isso, galera. Espero que tenham curtido e se agradou, quem sabe não trago no futuro novas postagens com outras artes de caixa e o que penso delas. E vocês, quais as caixas que mais gostam e menos curtem? Compartilhem ai com a galera nos comentários! ^.^
Abraços digitais
Um texto de
Raphael Gurian
A ideia deste formato de análise não é explicar um jogo, para isso existem muitos outros textos, vídeos e etc. A finalidade do texto é fazer uma análise crítica acerca de critérios que acho importante e que muitas vezes acabam não sendo explorados em análises de uma forma mais detalhada. Os jogos analisados não seguem qualquer critério comercial, incentivo ou pagamento, sendo escolhidos com base em fontes de vozes da minha cabeça, aliado ao fato de ter já jogado o jogo em questão muitas vezes, a ponto de me sentir confortável em opinar sobre o mesmo.
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