Puerto Rico
No ano passado, o Luiz Perdomo escreveu um excelente texto relacionando o Puerto Rico à questão da escravidão. O texto teve diversos comentários e suscitou uma excelente discussão sobre o tema. Por isso, a princípio não seria necessário tocar mais nesse assunto. Entretanto, essa questão acabou sendo retomada no tópico “Temas Polêmicos / Draft de Ideias”. Alguns comentários me fizeram refletir bastante, e eu acho que existem alguns aspectos interessantes, que não foram abordados anteriormente, como deveriam e que precisam ser.
Antes de continuar, eu queria esclarecer que eu não sou, nem um militante radical do movimento negro, nem faço parte da ala que defende que há uma excessiva vitimização inapropriada da população negra. Eu sou apenas uma pessoa comum, igual a todo mundo, e que procura enxergar o mundo da forma mais justa, imparcial e isenta (se é que isso é possível de alguma forma hoje em dia), que pensa sobre o que vê, e escreve a respeito.
No tópico em questão, um dos usuários comentou que o jogo Spartacus, envolvia a escravidão de pessoas brancas e ninguém reclamava, portanto essa discussão envolvendo o Puerto Rico e a escravidão, não se justificava. Outro usuário retrucou com toda a razão, de que diferentemente do que ocorria, em relação à escravidão no Brasil, ninguém conhecia uma pessoa cujo bisavô tivesse sido um gladiador na Roma antiga. A resposta do primeiro usuário me deixou estarrecido, e foi um dos motivos que me levou a escrever. Para resumir ele disse o seguinte, que era preciso deixar para lá essa questão da escravidão, porque, por exemplo, os alemães superaram o nazismo. Essa resposta me deixou bastante preocupado, quando eu comecei a pensar a respeito, porque ela demonstra dois aspectos importantes, como boa parte da nossa sociedade brasileira enxerga a questão do negro.
Spartacus
O primeiro aspecto é que boa parte da nossa sociedade se identifica com o ponto de vista do opressor, e não do oprimido. Vejam que no comentário o raciocínio foi: os alemães superaram o nazismo, logo os negros deveriam superar a escravidão. A grande diferença é que no caso do nazismo, os alemães foram os opressores, e no caso da escravidão, os negros foram os oprimidos. A comparação mais correta deveria ser com os judeus, só que aí o raciocínio cai por terra, porque os judeus não “superaram” o nazismo, nem o seu mais nefasto fruto que foi o holocausto. Muito pelo contrário, os judeus fazem questão de não “superarem”, e principalmente não esquecerem, esse episódio tão cruel, sombrio e desumano, da história da humanidade, para que as futuras gerações aprendam com esse erro, para que isso nunca mais venha a acontecer.
O segundo aspecto diz respeito à falsa noção de distanciamento, que algumas pessoas têm, em relação à escravidão brasileira, principalmente do ponto de vista do tempo. Parece que a escravidão ocorreu em um tempo muito remoto e distante, quase tão distante quanto a Idade Média, por exemplo.
Só que a realidade não é bem assim.
Do ponto de vista formal e legal, a escravidão no Brasil se encerrou com a promulgação da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, há 133 anos atrás. Na verdade a Lei Áurea só acabou com a escravidão nos grandes centros, e foi só para “inglês ver”, literalmente, porque a Inglaterra, a grande superpotência da época, era quem mais fazia pressão política nesse sentido, para atender aos seus próprios interesses. Por outro lado, apesar da Lei Áurea ter abolido a escravidão, no interior do Brasil ela continuou por décadas, às vezes disfarçada, às vezes sem disfarce mesmo, e até hoje é possível encontrar lugares em que as pessoas vivem e trabalham em um regime análogo à escravidão. Segundo o portal G1, só em 2020, 942 pessoas foram libertadas, de condições de trabalho tão aviltantes, que praticamente as reduzia a escravos. Essa operações foram feitas por uma força-tarefa composta pela Polícia Federal, o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) (fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/01/28/forca-tarefa-resgatou-110-pessoas-em-situacao-analoga-a-escravidao-no-brasil-em-2020.ghtml). Em outras palavras, em um único ano, foram encontradas no Brasil quase 1.000 pessoas, vivendo praticamente como escravas, em pleno século 21.
Mas vamos deixar um pouco de lado essa situação relatada acima, tão degradante, que envergonha e humilha o Brasil, perante as demais nações do mundo, e vamos retornar à nossa questão temporal. A escravidão está distante 133 anos, e isso é muito mais perto do que se pode imaginar a princípio. A pessoa mais longeva, devidamente registrada de que se tem notícia, foi a francesa Jeanne Louise Calment, que viveu até os 122 anos e 164 dias de idade (21 de fevereiro de 1875 até 4 de agosto de 1997).
Jeanne Calment comemorando 121 anos de idade em 1996.
Isso quer dizer que se Jeanne Calment fosse negra, se tivesse nascido um pouquinho mais tarde, em 21 de fevereiro de 1888, no Brasil (já havia a Lei do Ventre Livre, mas essa era solenemente ignorada e transgredida, assim com a Lei dos Sexagenários), e se tivesse vivido apenas mais 11 anos (é claro que isso é forçar um pouco a barra, mas é só para dar uma ideia), você poderia ir até a casa dela, e tirar uma foto ao lado de uma escrava de verdade. Trocando em miúdos, todo o período transcorrido desde a abolição até hoje, praticamente caberia na vida de um único ser humano.
Essa é a medida do quão próxima, a escravidão está de nós.
Outro aspecto dessa questão, que não pode deixar de ser mencionado, é que se a escravidão está tão próxima de nós, os seus efeitos estão mais próximos ainda. Não é nenhuma novidade que o Brasil é o país mais socialmente desigual do mundo, e que essa desigualdade só vem crescendo ao longo do tempo. Só que isso é especialmente mais marcante em relação a pessoas negras. Até bem pouco tempo atrás, o Estado e a sociedade sequer reconheciam que havia um problema. Somente de alguns anos para cá, a sociedade como um todo começou a refletir, que talvez tenha havido alguma injustiça, com essa expressiva parte da população, e que é preciso fazer algo a respeito, para resolver essa grave questão social.
O negro foi liberto e o pouco que ele tinha de sustentação social, um lugar para morar e algo para comer (que apesar de ter custado muito sofrimento, humilhação, lágrimas e principalmente sangue, ainda era alguma coisa), foi tirado da noite para o dia, e nunca se pensou em dar nada em troca, desse pouco que ele recebia. O negro foi libertado do açoite, do tronco e da senzala, apenas para ser condenado à favela, à violência, à pobreza, à exploração, ao subemprego, e à fome, tanto ele quanto as suas gerações futuras. Na verdade trocou-se uma miséria humana por outra.
Não precisa ir muito longe, para ver que algo de muito errado acontece no nosso país, principalmente com os negros. Nem mesmo boa vontade é necessária, basta apenas honestidade e isenção. Basta olhar uma sala da UFRJ ou da USP (não vou nem falar da PUC, para ficar só nas públicas), principalmente de mestrado ou doutorado, e depois comparar com uma cela do Complexo Penitenciário de Bangu ou do Centro de Detenção Provisória de Osasco. Qualquer um que fizer isso verá que, a predominância de indivíduos em um tipo de instituição, ou em outra, vai depender do quanto mais claro, ou mais escuro, for o tom da pele. O mesmo se aplica aos moradores dos condomínios do Leblon e do Morumbi, e das vielas do Complexo do Alemão e de Paraisópolis.
Protesto do grupo Mães de Maio, em São Paulo, contra a violência praticada contra os jovens negros (2.abr.2017)
Da mesma forma, também é gritante a diferença entre os valores dos salários que são pagos a profissionais brancos e a profissionais negros, pela mesma função. Isso sem falar, que como o acesso à educação é muito menor, e mais dificultado, para negros do que para brancos, fica muito mais difícil para os negros alcançarem bons cargos e bons salários. Evidentemente que toda a vez que se trata disso, sempre tem alguém que aponta o exemplo de um amigo ou conhecido negro, que com muito esforço e dedicação, conseguiu se formar e alcançar um bom emprego. Mas isso são exceções, e definitivamente, uma conjuntura social deve ser analisada com base na regra, e não nas exceções.
É muito diferente ser branco e ser negro no Brasil. É muito diferente ser a pessoa que suja e ser a pessoa que limpa. É muito diferente andar livremente por uma loja, do que ser constantemente vigiado pelo olhar do segurança. É muito diferente ser abordado pela polícia, sendo branco em um bairro nobre (quando isso raramente acontece), e ser abordado pela mesma polícia, sendo negro, na periferia ou numa comunidade. É muito diferente estar no lugar da pessoa que dá o tapa, de estar no lugar da pessoa que recebe o tapa. E é isso que a sociedade brasileira faz, diuturnamente, há séculos com a população negra. A experiência de vida de cada um, bem como os números e as estatísticas estão aí para quem quiser ver.
Mombasa
Por fim, obviamente, ninguém defende que sejam execrados e abandonados jogos como o “Puerto Rico”, o “Mombasa”, e o “Endeavor”, que tratam do tema escravidão, colonização e exploração de populações não-brancas (para incluir além dos negros, os povos nativos, que também sofreram um bocado). Muito pelo contrário, eles devem ser jogados, primeiro porque são bons jogos e segundo, para que não se esqueça, que até bem pouco tempo atrás, a escravidão era uma realidade, por mais cruel e desumana que ela fosse.
Endeavor
Só não dá para pensar como se essa questão do negro já tivesse “enchido o saco”, como se isso fosse “coisa do passado”, e que essa vitimização do negro fosse exagerada. O negro brasileiro não se “vitimiza”, ele é literalmente um vítima de uma sociedade que é a mais desigual, injusta, e socialmente perversa, do mundo. Essa é a realidade, que muitos ainda se recusam a enxergar, como ficou demonstrado nos comentários do tópico citado acima.
Um forte abraço e boas jogatinas.
Iuri Buscácio
P.S. Perdão pelo lapso, mas ficou faltando um relato aqui, que confirma ainda mais essa nossa proximidade da escravidão. No início desse ano de 2021, o Jornal Nacional noticiou duas operações da Polícia Civil e do Ministério Público do Trabalho, na cidade do Rio de Janeiro, em que foram libertadas duas senhoras, mantidas em condições análogas à escravidão. Apesar de serem casos diferentes, a situação é quase idêntica. Essas duas senhoras foram retiradas de suas casas, ainda meninas (11 e 13 anos), em cidades pequenas do interior do estado, de famílias muito pobres, que não tinham condições de criá-las, com a promessa de ter uma vida melhor na capital. Pois bem, assim que chegaram nas casa das famílias que as teria "adotado" elas começaram a trabalhar de domésticas, apesar da pouca idade, do raiar do dia até a noite, sem nunca terem recebido salário, muito menos hora extra, sem nunca terem tirado férias, sem folga semanal, sem terem podido aprender a ler e escrever, sem FGTS, sem poderem sequer sair na rua, ou assistirem televisão, mas uma delas pelo menos tinha um rádio. Quando as famílias viajavam, colocavam um parente na casa, tomando conta para que nenhuma das duas infelizes tentasse fugir, como se elas tivessem para onde ir. Essa situação perdurou, no primeiro e no segundo caso, por 43 e 46 anos respectivamente. Isso não é uma situação análoga à escravidão, mas sim a própria escravidão em si, só faltando os castigos físicos e os grilhões para a sua configuração total. E a mais cruel, cínica e triste ironia, é que esses casos aconteceram o primeiro no bairro da Abolição, e o segundo no bairro de Vila Isabel, batizado assim para homenagear a princesa.