Final do ano, todo canal, escrito, áudio ou visual faz sua lista de retrospectiva. Melhores e piores jogos, melhores editoras, melhor jogo de designer nacional, etc. Mas por um azar, em 2017, um dos melhores jogos do ano foi lançado aos 49 do segundo tempo, na última semana de dezembro, quando todo canal já tinha feito sua lista.
E Lisboa já chegou causando, embora não por um bom motivo. Nos primeiros dias do lançamento, tudo que se falava era dos erros de produção. Quem entrou no kickstarter do jogo e já estava frustrado com o atraso, se frustou mais ao saber que as cartas não teriam acabamento em linho nem a 3ª camada do playerboard. E não parou por aí. Inúmeras cópias foram entregue com tokens/playboards descolando, variações em tonalidades das cartas, erro no corte entre outros. E por mais que a Mandala tenha feito, a princípio, uma reposição rápida, muita gente ficou chateado com razão.
Mas eu não fui um desses. Nem apoiei o projeto no Kickstarter. Até tinha achado interessante na época, mas Vital Lacerda nunca foi dos meus autores favoritos. Curto os jogos dele mas não chegam a me empolgar. No final, eu acho que eles tem uma complexidade que é maior do que necessária para que eu curta o jogo ao máximo. É como se eu quisesse que seus jogos sofressem uma revisão final para editar e reduzir coisas que estão lá em excesso. Mas isso faz parte do meu gosto pessoal, não de um problema do autor. EU, prefiro aqueles onde as regras e mecânicas são simples e a estratégia complicada e no caso do Vital, tudo é complicado.
Erros de Impressão e variação de cores não foram poucos
Mas aí jogo chegou e eu achei ele lindo. Me apaixonei pela arte dele. Mesmo com as ausências de alguns acabamentos, eu achei que era uma produção que valia o preço. E olha que como europlayer, em geral, não usando feijãozinho para marcar algo eu já estou satisfeito. O tema também me interessou. Como eu morei em Portugal, vi com meus olhos a Lisboa reconstruída, havia uma relação sentimental com o jogo. E tudo que eu pensava era em como me convencer que eu queria um jogo de um autor que eu nem curtia tanto. E nessas horas, se não tem justificativa a gente inventa, não é mesmo? Então comprei! E passei a rezar para Padim Pe. Cícero pra que o jogo fosse bom! E ele me atendeu. Lisboa é que ele é espetacular!
Um dos motivos pelo qual eu curto jogos com mecânicas e escolhas simples é que eu consigo visualizar toda a estratégia na minha mente de forma linear desde o início. E isso me permite tomar as decisões táticas de forma confortável. Ainda que eu tenha muitas opções, eu consigo traçar um caminho que será competitivo no jogo. Em um jogo com variáveis em excesso, me deixa cansado e sem paciência para analisar todas. No final eu opto por ignorar alguns elementos e focar no restante. E aqui Lisboa já começou a me ganhar.
Usando o Gallerist como exemplo, outro jogo Vital lançado no Brasil, toda aquela escolha do dos tiles de pontuação do lado direito do tabuleiro, foram completamente ignoradas por mim nos primeiros jogos. Eu cheguei a me esquecer delas na metade da primeira partida. Só quando alguém ativou aquele espaço pela 1a vez que eu me lembrei que ele existia, e até pedi para me relembrarem para que servia. Já Lisboa, pro nível do Vital Lacerda, é um jogo extremamente direto na sua proposta. São cerca de 10 ações como variáveis. O restante é trabalhar timing e ordem em fazê-las. Por isso, embora não dê pra dizer que ele tenha regras elegantes, Lisboa é tão elegante quanto um jogo de Vital Lacerda consegue ser.
E apesar de ser mais simples e direto na mecânica, Lisboa não é, nem de longe, um jogo simples de se dominar. Isso me lembra até um pouco Great Western Trail, onde você fica 50 minutos explicando todas as regras para no final, a escolha do jogador se resumir a andar 2 ou 3 tiles. Fazer a ação X ou a Y. E essa é a beleza de Lisboa. Ele é altamente complexo dentro da sua simplicidade.
Para dar ideia da simplicidade da mecânica geral , em cada rodada, você vai jogar uma carta da sua mão, no seu portfólio (playerboard) para ganhar os bônus do topo e rodapé da carta e fazer mais uma ação extra(influenciar nobre/vender produto) OU jogá-la na corte, para ganhar o bônus do meio da carta. No final, você repõe sua mão com uma das cartas abertas na mesa (uma de cada tipo). Mecanicamente, é só isso, embora, é claro, existam milhares de variáveis por traz.
As ações como já ditas, são apenas 10. Nove delas são ações dos nobres (3 para cada) e uma ação de venda de mercadoria. Mas embora sejam poucas, como você se prepara para fazê-las no tempo certo, e de maneira que ajuda pouco seu adversário, faz toda diferença. Por exemplo, um jogador pode, se cumprir alguns pré-requisitos, segui-lo e realizar a mesma ação que você em uma menor potência. Cabe a você, não apenas perceber o que quer fazer, mas em que momento fazer, para que os demais se beneficiem o mínimo possível disto. Se seus adversários conseguirem sempre seguir suas ações, eles estarão fazendo mais coisas por rodada que você e provavelmente eles vão te vencer.
E tudo ainda faz sentido no tema como se espera do Lacerda. No construtor real você vai para construir, desenvolver projetos arquitetônicos ou contratar assistentes que depois serão utilizados nos prédios que você inaugurar. No primeiro ministro você vai para financiar construções de navios, produção de produtos ou conseguir decretos que aumentam o valor dos seus estabelecimentos comerciais. E no rei você vai para obter influencia sobre a igreja, inaugurar prédios públicos ou pegar favores para ir nos outros nobres uma outra vez no futuro. Esta integração com o tema, característica do Vital Lacerda, ajuda demais para explicar e entender o jogo. Em geral eu sou um daqueles jogadores que mata o tema, que explica um jogo dizendo que uma ação produz cubo marrom e a outra produz amarelo, sem se preocupar com o que aquilo significa. Mas em Lisboa não. Eu falo da cidade, falo do nome dos personagens, por que cada ação que ele faz está relacionado com aquela figura histórica e tudo, absolutamente tudo, faz sentido.
A minha impressão é que Lisboa é a evolução do autor. O jogo que ele trouxe tudo que ele aprendeu em outros jogos, tudo aquilo que ele sabe que funciona e é importante e colocou no jogo. Tudo o que está lá, precisa estar e nada a mais. Ele, talvez pela primeira vez, soube fazer um jogo altamente temático, sem ter que criar 47 mecanismos para isso. E justamente ao ser complexo, dentro do simples, que Lacerda demonstra ter alcançado um outro nível.
Quem joga, vê claramente elementos que ele já testou em outros jogos, mas que parecem funcionar melhor em Lisboa. No início do post eu falei dos tokens de pontuação de final de jogo do Gallerist. Como aquilo é confuso e facilmente esquecível nos primeiros jogos. Em Lisboa o mesmo mecanismo, em outra forma, está lá. São os decretos do Marquês de Pombal. Mas aqui, é muito mais fácil você relacionar isso com suas ações e pensar em como eles irão te ajudar mais na estratégia que você pretende traçar.
Cartas de Decreto definem pontuação no final do jogo
A ação extra que alguém pode fazer na vez do adversário é outro exemplo. Quando em Gallerist isso é feito ao expulsar um pessoa de um local, aqui o jogador precisa ativamente buscar um favor real para aproveitar a ação de um adversário. Deixa de ser um poder passivo e passa a ser uma estratégia e planejamento do jogador.
Outra coisa que adorei no jogo é que embora seja um jogo onde tudo que você faz depende das cartas, muito pouco se depende da sorte ou até mesmo da aleatoriedade. Em geral, a qualidade da sua mão em muito pouco ou nada interfere no jogo. Podem até haver algumas cartas levemente melhores que outras, mas ficar limitado por cartas ruins na mão é quase impossível. Isso por que todo tipo de carta está disponível para você a maior parte do tempo e cabe apenas a você manter uma mão que te dá flexibilidade.
Lisboa não é, no entanto, um jogo sem problemas. O primeiro deles é, que em 4 jogadores pode ter um alto downtime. As vezes os jogadores se perdem seguindo a visita ao nobre de outro jogador e quando terminam a ação ninguém nem lembra mais de quem é a vez. Existe até um meeple específico para marcar isso e não deixar os jogadores se confundirem na ordem. E é justamente por isso que eu acho que o jogo brilha com 3 pessoas. É como se o 4º jogador não incrementasse na competitividade do jogo, apenas no tempo. Mas isso é uma característica que vejo também em Great Western Trail, meu outro jogo preferido de 2017.
Outra questão é o tempo de explicação. Assim como GWT, o Lisboa demora para explicar. E por ser menos iconográfico que o GWT, talvez demore um pouquinho mais para as pessoas jogarem sem perguntar mais nada.
É uma pena portanto, que o lançamento deste jogo tenha acontecido tão tarde. E é uma pena maior ainda que nos primeiros 30 dias falamos mais dos erros da produção nacional do que da qualidade deste jogo. Mas se você curte jogos com estratégias mais desafiadoras, mesmo que não seja um amante de Vital Lacerda (como eu não sou), você precisa experimentar Lisboa. Se nada disso servir, pelo menos você estará conhecendo um pouco mais da história de Portugal e jogando aquele que talvez seja, o jogo mais bonito de todos os tempos!
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