Com perguntas absurdas, blefes ousados e muitas risadas, Nem a Pato! vem conquistando as mesas dos jogadores em todo o Brasil. Criado por Rodrigo Rego e publicado pela Grok Games, o jogo venceu o Prêmio Ludopedia na categoria Jogo Família, consagrando uma trajetória que começou com noites caseiras de quiz entre amigos e evoluiu até uma publicação internacional.
Rodrigo venceu outras 2 vezes esse prêmio na categoria Família. Mas, como ele mesmo conta, Nem a Pato! representa algo diferente: um projeto mais pessoal, refinado ao longo de incontáveis versões, com regras simples, mas camadas estratégicas para quem quiser se aprofundar.
No [Diário do Designer], Rodrigo compartilhou todo o processo de criação do jogo — desde as ideias rejeitadas até a parceria com uma editora norueguesa para o lançamento internacional sob o título How Dare You?. Vale a leitura!
Conversamos com o autor para entender os bastidores desse sucesso, em que ele compartilha aprendizados sobre a criação e os desafios de transformar um trivia em fenômeno de mesa.
Ludopedia: Rodrigo, parabéns pelo Prêmio Ludopedia de Melhor Jogo Família com o Nem a Pato! — um reconhecimento enorme e merecido! E essa não é a sua primeira vez recebendo prêmio nessa categoria: Camisa 12 e Estranho no Ninho também já passaram por aqui em anos anteriores. Como foi receber esse novo prêmio agora com um projeto que nasceu de algo tão pessoal? O que representa pra você essa conquista em meio a tantos jogos?
Rodrigo: A cada ano que passa, os jogos família vão se tornando o foco da produção própria das editoras brasileiras. Todo ano são mais jogos, cada vez mais bem pensados e produzidos, a ponto de vários estarem inclusive sendo exportados. Ter ganhado 3 vezes o Prêmio nos últimos 4 anos nesse contexto é uma honra gigantesca e me deixou profundamente emocionado - vocês me viram soluçando ridiculamente na transmissão do prêmio - ainda mais nessa edição em que o prêmio foi unificado. Tanto o Estranho no Ninho quanto o Camisa 12 haviam ganhado o prêmio do júri mas não conquistaram o público. Já o Nem a Pato! ganhou o prêmio conjunto, o que me deixa ainda mais seguro de que acertei nesse jogo.
As diferentes cores do selo na capa do jogo
Ludopedia: Você conta que o Nem a Pato! nasceu das noites de quiz que você organiza com amigos — e que essas noites iam muito além das perguntas e respostas tradicionais: “com música, apostas, mímica, listas, todo tipo de desafio.” Qual você acha que é a importância desses jogos de grupo, sem muitas regras, para colocar “a galera toda” na mesa?
Rodrigo: Quiz é meu segundo hobby. Para além das noites de trivia que organizo em casa há mais de 10 anos, eu já frequentei muito bar em busca daqueles pub quizzes que alguns têm semanalmente. E quiz é essencialmente um jogo de galera, então eu conheço o potencial desse tipo de jogo desde muito antes de envolver com os BGs modernos. Jogos de galera são fundamentais para quem não é gamer, pois a barreira de entrada é muito baixa - num Dobble, num Dobroou num Nem a Pato!, você explica a regra em 3 frases. Mas eles são importantes inclusive no círculo gamer. No meu grupo de jogatina semanal, raramente as pessoas conseguem chegar todas na hora marcada. Enquanto aguardamos o prato principal, a gente fica revezando entre Coup, Trio, Entre Linhas, HITSTER... e acaba que esses são os jogos que mais veem mesa, pois quase toda semana a gente puxa um deles.
Componentes do jogo
Ludopedia: O protótipo inicial incluía tabuleiro e peças físicas para delimitar intervalos, mas ao longo do tempo você foi simplificando tudo. “Matar suas ideias” nunca é fácil — ainda mais quando elas fazem parte do início de um projeto. Você também fala da importância de deixar o jogo descansar e voltar com uma “visão mais descontaminada”. Como é, para você, esse processo de desapego criativo?
Rodrigo: Eu sempre tive um método muito desapegado para criar jogos. Se você não mexer o suficiente em todas as alavancas que o jogo oferece, corre o risco de nunca descobrir a melhor versão dele. Tem uma metáfora que gosto muito que diz que game design é como medir a profundidade de um lago num barco. Você navega um pouco, joga a âncora e vê que, naquele ponto, o lago tem 4 metros. Navega mais um pouco, joga de novo e mede 3 metros. Navega de novo e descobre um ponto com profundidade de 6 metros, e aí decreta: a profundidade máxima do lago é de 6 metros. Mas você só jogou a âncora 3 vezes. Pode ser que houvesse um ponto com 30 metros de profundidade, mas como você não explorou o suficiente, não o achou. Jogo é assim também, quanto mais você explora, maior a chance de encontrar a melhor versão dele. Por isso eu fico às vezes meio desconfiado quando um jogo fica pronto muito rápido. O que decididamente não foi o caso do Nem a Pato!. Para um jogo tão enxuto, é impressionante a quantidade de versões que ele teve, desde essa inicial, com colchetes delimitando intervalos, até as inúmeras versões intermediárias que levaram a essa atual. Não sei se encontrei o ponto mais profundo do lago, mas com certeza a âncora afundou muito mais do que quando joguei ela das primeiras vezes.
Protótipo inicial com colchetes delimitando intervalos
Ludopedia: Você descreve o Nem a Pato! como “a adaptação perfeita do ‘chicken game’ para trivia”, e isso realmente se percebe na mesa: os palpites vão subindo, o blefe entra em cena, e o simples ato de dizer “Nem a Pato!” vira o ponto alto da rodada. Como foi encontrar esse equilíbrio entre um jogo leve e acessível, mas ainda com decisões tensas?
Rodrigo: Para um jogo como esse, não pode haver nenhuma concessão à complexidade. A gente que está emaranhado no hobby acaba não tendo ideia de quão difícil é aprender um jogo de tabuleiro, por mais simples que seja, para o público em geral. Isso foi algo que eu tive dificuldade de entender, e que o Kristian Ostby (autor do Revive, e editor da versão internacional do Nem a Pato!) reclamou do protótipo que mostrei para ele. O jogo era simples, mas para atingir um mercado mais amplo, precisaria ser ainda mais simples. Mas não podia perder a tensão que o encantou quando jogou da primeira vez: quanto mais tempo passa, mais fica difícil de acreditar que o número em questão está correto. As várias versões que o Nem a Pato! teve foram todas almejando simplificar o jogo, mas mantendo essa tensão crescente. A adição do mecanismo de desconfiar foi uma lição aprendida com o É Top!?: uma forma de tornar tenso e divertido o ato de não acreditar no número que o jogador anterior falou - mas por incrível que pareça, essa foi uma das últimas coisas que foi adicionada ao jogo.
Ludopedia: O jogo tem uma estrutura simples, mas também oferece regras avançadas — como “Dobrei!”, “Quer apostar?” e “Na mosca!”. Como foi o desafio de incluir essas ideias sem comprometer a leveza, mas dando camadas extras para quem quer mais desafio?
Rodrigo: As regras avançadas não são fundamentais para o funcionamento do jogo, mas para quem já está acostumado, dão uma apimentada. O "Dobrei!" é a que eu gosto mais, pois se você dobrar um palpite anterior, ganha uma carta que cancela um ponto negativo. Isso ajuda a fazer os palpites escalarem mais rápido e desincentiva as pessoas a começarem com palpites baixos demais para não terem nenhum risco. Em tese você pode começar dizendo que a distância da Terra à Lua é "1 km", mas com a regra do Dobrei, está dando ponto de graça pro próximo a jogar. O "Quer apostar" é uma regra que aumenta o risco e o blefe do jogo, pois se o jogador duvidado diz isso, o desafio agora vale ainda mais pontos negativos - mas quem duvidou tem o direito de "desduvidar". Cabe a ele decidir se aceita o desafio reverso ou não. O "Na mosca!" é para quando você tem certeza que o jogador anterior cravou a resposta. Ele é muito pouco usado, pois as perguntas do Nem a Pato! são feitas para ninguém saber a resposta. Mas como tem doido pra tudo, pode ser que alguém saiba o número exato de pernas da centopeia gigante amazônica, e o "Na mosca" está aí pra isso.
O "Dobrei!" desincentiva começarem com palpites baixos demais
Ludopedia: No diário, você comenta que “passamos meses pesquisando cada uma das 360 perguntas”. Como foi esse processo de curadoria e revisão? E que cuidados são importantes ao se criar perguntas para um jogo de trivia? Houve diferenças entre a versão nacional e a internacional?
Rodrigo: Boa parte do playteste de uma trivia está em descobrir qual o tipo de pergunta que favorece a dinâmica do jogo. No Estranho no Ninho, por exemplo, o elenco de perguntas começou normal - geografia, cinema, ciência, etc. - até vermos que era nas perguntas bizarras que o jogo brilhava. E aí reformulei todas as perguntas em torno disso. No Nem a Pato!, ocorreu algo parecido. A versão que mostrei da primeira vez era baseada em ir reduzindo um intervalo possível de respostas entre 0 e 100. O tipo de pergunta que gerava mais interesse eram aquelas em que você conseguia estimar mais ou menos o valor, mas sem ter certeza. Mas o Nem a Pato! deixou de ter um intervalo fixo: é só aumentar, aumentar, aumentar. Descobri que as perguntas que geravam uma dinâmica mais interessante eram as que a resposta ia muito além do que as pessoas pensavam, para permitir que o escalonamento dos palpites chegasse até às raias do absurdo. Além disso, as pessoas ao ver a resposta queriam o contexto. "O maior peido do mundo durou mais de 2 minutos? Quem? Quando? Onde?" Então além de reformular as perguntas para incentivar palpites gigantescos, tivemos que escrever uma frase de contexto para cada uma das respostas.
Para a versão brasileira, o conteúdo é bem parecido, mas quis substituir algumas perguntas por outras que falassem do Brasil. "Envergadura do Cristo Redentor" ou "Porcentagem de Marias na população brasileira", por exemplo.
Ninguém sabe a resposta, mas todo mundo quer tentar.
Ludopedia: Você conta que enviava protótipos por conta própria até conseguir contato com uma editora, e que na maioria das vezes não teve retorno. Quais caminhos você recomenda hoje para os designers brasileiros que querem buscar editoras de fora? E o fato de ser um jogo de trivia facilitou ou dificultou o processo?
Rodrigo: Eu sei que é caro, mas a forma mais fácil de ter um jogo publicado por editora internacional é ir a convenções e eventos internacionais. Minha vida mudou quando fui a Essen em 2022, pela primeira vez. Se antes 90% dos emails que eu mandava sequer eram respondidos, quando comecei a falar que queria marcar uma reunião em Essen, essa taxa melhorou drasticamente. Muitas editoras lá colocam uma pessoa exclusivamente para ter reuniões com designers e selecionar jogos interessantes. É em eventos que elas estão abertas a ver novos jogos, não numa quarta-feira de inverno às 16h30, quando seu email não solicitado chegar nelas. Dos 5 protótipos que levei em 2022, assinei 4. Dois eram de trivia, então não sei se isso dificultou. Muitas editoras não têm interesse em trivia, mas outras tantas podem ter, e como os jogos que levei eram diferentes do que o mercado já tinha, acabei tendo sucesso. Outra coisa importante de ir nesses eventos é mostrar sua cara. Fazer os editores te conhecerem, mesmo que não tenham interesse no seu jogo. Para o próximo, mesmo que seja por email, já não vai ser mais o contato de um desconhecido.
Ludopedia: O jogo já traz uma base sólida e várias possibilidades adicionais nas regras avançadas. Mas olhando para frente: há ideias que ficaram de fora e que você gostaria de resgatar em uma expansão? Ou mesmo conceitos que você já está desenvolvendo para um novo jogo?
Rodrigo: Assim como no É Top!?, não acho que novas caixas vão acrescentar nada em termos de regras. Quando houver novas, elas terão mais perguntas divertidas, mais daquilo que as pessoas já gostam no Nem a Pato! original. Sobre novos jogos de trivia, eu estou trabalhando em um novo, que já está inclusive assinado, e espero que saia em breve. Mas como não foi anunciado ainda, não posso adiantar muito agora.
Rodrigo: Boa parte do playteste de uma trivia está em descobrir qual o tipo de pergunta que favorece a dinâmica do jogo.
Estou vivenciando isso em um jogo que estou desenvolvendo.
Realmente tem umas perguntas que sacodem a mesa e a galera se engaja, vai à loucura.
Já tem outras meio "méh...", ninguém sabe, ninguém liga.
Então estou sentindo por aqui também que a "escolha do conteúdo" é tão importante quanto a definição das regras.