O Prazer de Criar (III de III)
“Deixe Fluir”
Olá, oficineiros!
Eu, Raphael, voltei com o terceiro e último texto sobre o livro “Criatividade: o flow e a psicologia das descobertas e das invenções”, do autor húngaro-americano Mihaly Csikszentmihalyi. Já escrevi sobre os elementos que compõe o cenário da criatividade (domínio, campo e indivíduo), decorri sobre a mente criativa e suas características e hoje, como acho ser possível deduzir olhando o título do livro e o nome dessa postagem, vou escrever um pouco sobre o ‘Flow’, conceito de maior relevância e sucesso do autor, que se refere ao sentimento de prazer que acompanha o ato criativo, contudo, pode ser relacionado até mesmo com o ato de jogar, uma vez que ele também busca uma sensação de prazer.

(Essa cena non-sense é do clipe Let it Flow, da Toni Braxton.
Tá aqui só pelo trocadilho e bizarrice mesmo)
O Flow, que em tradução livre significa ‘fluxo’, consiste em um mecanismo psíquico que atua quando ocorre uma sensação ideal, motivadora, enquanto tarefas estão sendo realizadas. É a busca do prazer ao realizar uma determinada atividade, em outras palavras, é o sentimento que mantém as pessoas motivadas e envolvidas com determinada atividade.
Mihaly buscou entender o que diferenciava a pessoa que sentia prazer em uma determinada atividade, em detrimento a outra pessoa que não sentia prazer fazendo a exata mesma atividade. O que ele descobriu, em suma, é que as pessoas que sentiam maior prazer sentiam-se motivados devido a qualidade da experiência ao estar envolvido na atividade.
Ter conhecimento dos elementos que conferem às pessoas a sensação de flow é importante por dois motivos: o primeiro se relaciona ao autoconhecimento, no qual o individuo consegue, ao menos em tese, entender quais característica atrapalham sua experiência em determinada atividade; e o segundo motivo é se relaciona com o processo de criação criativa, no qual um criativo, dotado de um conhecimento de como o flow funciona e com ferramentas o suficiente para manipulá-lo, conseguiria guiar melhor a experiência da pessoa que irá consumir sua produção. Um gerente de recursos humanos, por exemplo, ao criar um projeto de gamificação na empresa, conhecendo o flow, teria condições de configurá-lo de acordo com os perfis dos funcionários, assim como, por exemplo, um gamedesigner, seria capaz de guiar a experiência do jogador.
Listarei abaixo os nove elementos principais responsáveis pelo estado de flow que Mihaly cita em seu livro, buscando exemplifica-los relacionando com a experiência nos jogos de tabuleiro (a essa altura do campeonato, deve ter ficado claro para você, leitores, que adoro listar coisas, né? Acho que torna a experiência mais didática):
1. Metas claras a cada etapa da trajetória: Em nosso cotidiano, de um modo geral, não existem demandas claras e bem estruturadas. Vou colocar a roupa para lavar antes ou depois de buscar o filho na escola? Ao fazer o almoço, começo pelo arroz, pelo feijão ou vou alternando entre eles conforme o tempo passa? Mesmo no âmbito profissional, muitas vezes os problemas se misturam e as tarefas não parecem ter fim, algumas vezes mal lembramos quando as começamos. Por outro lado, uma atividade prazerosa envolve clareza e controle. Um músico sabe exatamente quais as notas que irá tocar na sequência para gerar uma música harmoniosa. Imagine um cirurgião que não sabe exatamente quais as ordens dos procedimentos durante uma cirurgia, que perigo deve ser! Ao jogar algo, também precisamos de regras claras (atire o primeiro meeple quem nunca se estressou com manual confuso), assim como uma estrutura rigoroso de funcionamento: quantas rodadas o jogo possui, ou quando ele se encerra, como se faz para pontuar, quais desdobramentos de uma determinada ação e assim por diante. Quem já tentou jogar algo enquanto lia o manual o mesmo tempo, ou seja, foi jogando sem ter uma clareza das metas e da trajetória, provavelmente vai afirmar que a experiência foi prejudicada por isso, logo, houve um rebaixamento do prazer de se jogar.
2. Feedback imediato para cada ação: Diferente de atividades corriqueiras, ao vivenciar um estado de flow, as pessoas buscam feedback (devolutiva) em tempo real. A informação sobre estarmos indo bem é importante para que a pessoa consiga modelar suas ações conforme a atividade é realizada, para que no final do processo não saia frustrada. Ao passar um café, só saberemos que ficou bom ou ruim alguns minutos depois, dando uma bicadinha, e se realmente ficou ruim, é difícil de consertar. Em jogos de tabuleiro (ou mesmo digitais), aqui que entra a importância de trilhas de pontuação, indicadores visuais e assim por diante. Obviamente, a sensação de aleatoriedade e mesmo suspense, como quais cartas irei relevar de um baralho, fazer parte da experiência, então não podemos confundir o feedback com uma ajuda em se sair bem. Esse feedback, aplicado a jogos, pode ser visto até mesmo como um meeple alocado em determinado local, para que os jogadores entendam, sem precisar memorizar, quais ações já foram realizadas naquela rodada e estão indisponíveis, ou até um simples marcador de rodada utilizado para que a galera não precise decorar quanto falta para acabar a partida.
3. Equilíbrio entre desafio e habilidade: Durante o flow, acreditamos que nossas habilidades são condizentes com nosso desafio. Eu mesmo dificilmente entraria em um estado de flow jogando uma partida de hockey. O motivo é que sou um rapazote desajeitado, com pouca coordenação motora, beirando seus 100 quilos e que nunca pegou um taco de hockey na mão. Qualquer tipo de coisa que nos deixe ansiosos, frustrados ou entediados irão, automaticamente, nos tirar do estado de flow. Na primeira vez que joguei Terraforming Mars (Fryxelius, 2016) não entendi nada, achei o jogo arrastado e chato. Hoje eu amo aquele negócio com ilustração duvidosa. O que acontece, nesse caso, é que é preciso não apenas internalizar as regras, mas entender como montar combos, quais cartas funcionam com quais, quando é a melhor oportunidade de baixar alguma carta, como construir uma maquininha eficiente e assim por diante. É um jogo que requer um desafio, mas nossa habilidade em reconhecer os combos nas partidas iniciais está prejudicada pela quantidade elevada de cartas diferentes entre si e nosso pouco (ou nenhum) conhecimento sobre elas. Um bom jogador de Magic: The Gathering (Garfield, 1993) , por exemplo, não é apenas aquele com um bom baralho de cartas (apesar de isso ajudar muito), é aquele que aprendeu a jogar com este determinado baralho (daí a graça da pessoa montar seu próprio baralho). Pode entregar na minha mão um baralho matador: eu vou fazer bobagem durante a partida.
4. Ação e atenção se fundem: Ao fazer aquele feijão ou passar o café, posso apostar contigo que você não está pensando muito em como se faz feijão ou se passa café. Quem aí levanta a mão e me afirma, com todas as suas forças, que durante as 8 horas do seu expediente de trabalho você está focado exclusivamente no trabalho? Já durante o flow, a pessoa está entregue à atividade inteiramente. Sua concentração paira entre o como fazer e o que fazer, mas dentro daquele universo fechado que se torna a atividade. É a fina sintonia entre a pessoa e a atividade. Um exemplo é afirmar que uma das piores experiências em jogos de tabuleiro que se pode ter não tem relação com o jogo em si, mas com o ambiente. Jogar durante eventos, com muito barulho, um empurra-empurra de cadeiras ou mesmo com aquela pessoa chata que fica puxando assunto nada-a-ver, não larga o celular ou, pior, fica querendo mandar no seu jogo (o chato alpha player) são exemplos de coisas que tiram nossa atenção da partida e não deixam que nossas ações ocorram com toda clareza que deveriam.
5. Distrações devem ser afastadas: Este elemento 5 seria o paralelo do elemento 4, mas internamente, em nossa consciência. Segundo os relatos que o autor coletou, quem consegue vivenciar o estado de flow é aquela pessoa que consegue, mesmo que temporariamente, afastar da mente questões alheias as problemáticas e desafios da atividade prazerosa. Se um músico tocar pensando no boleto que venceu ontem, sua arte provavelmente sairá prejudicada. O mesmo acontece com o jogador, caso ele não consiga estar inteiramente presente no ato de jogar. Tem gente que consegue curtir um jogo numa bagunça de um evento tanto quanto se estivesse na paz serena do seu lar, e isso acontece pelo fato dessa pessoa não encarar a barulheira como uma distração. Outro exemplo prático é a frustração que acompanha erros gráficos nos componentes: a pessoa está lá, lindona jogando algo e ZÁS, pega uma carta na mão com um erro de ortografia. Se essa pessoa sentir que esse erro a direcionou para um pensamento do tipo “eita, que porcaria de editora vacilona”, isso pode atrapalhar seu flow, a desconectando da sensação de prazer que estava vivenciando.
6. Não existe medo do fracasso: O processo é mais importante do que a finalização. A imersão é mais importante que o resultado. O autor descreve isso como até mesmo um “controle absoluto, mas na verdade, não estamos no controle a questão apenas não vem à tona” (p. 120). A vivência no flow é responsável por uma sensação agradável de autorrealização por si só, pelo ato de estar fazendo determinada atividade. O jogar implica correr o risco de perder, contudo, se o risco da derrota se torna maior do que o prazer da partida, o flow não acontece. Quando vemos jogadores profissionais sofrendo de problemas psíquicos, como ansiedade, depressão, burnout, entre outros, vemos que o medo prevaleceu em relação ao prazer. Por isso, inclusive, Huizinga em seu livro Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura (1938), coloca o jogo como uma atividade que não pode visar lucro, justamente para evitar as pressões externas que ocasionariam um medo do fracasso (trarei um texto somente sobre ele no futuro). Jogar é saber que vamos, em algum momento, perder. É um comum, infelizmente, ler ou ouvir relatos de pessoas que tiveram partidas estragadas por causa de um grau de competitividade muito elevado, beirando a agressividade e hostilidade. Tirar sarro, falar alto e provocar os amigos na mesa é normal, contudo, que depois da partida os envolvidos ainda se abracem com respeito e amor.
7. Preocupação com a autoimagem desaparece: Quando a atividade é prazerosa, o fardo que carregamos no cotidiano do quem somos e o que somos some. Esse elemento é aquele que o músico sente quando se refere a ‘estar em conexão com algo maior’ ao tocar durante um concerto. A ausência de distrações, como dito anteriormente, auxilia a entrada da consciência em um estado de concentração no qual preocupações corriqueiras desaparecem. Durante partidas de jogos de tabuleiro, quando em flow, nosso corpo deixa de existir. Não somos mais Raphael, Heloisa, Pedro ou Joana, somos um guerreiro medieval, uma família europeia da metade do milênio, somos cientistas, piratas, ninjas ou robôs.
8. Percepção de tempo é distorcida: As frações do relógio não marcam mais o tempo, marca a experiência. Durante o flow o artista pode passar horas a fio sem comer, sem nem sequer perceber que o dia amanheceu, da mesma forma que após o flow, pode ter parecido que tudo ocorreu muito rápido, que um pouco mais de tempo debruçado sobre a atividade não faria mal, seria até prazeroso. É aquele momento em câmera lenta que o filme busca retratar. A mente humana, em relação ao tempo, é muito misteriosa e isso fica claro durante o flow. Tem gente que joga uma ‘partidinha’ de Twilight Imperium 4 por oito horas seguidas e nem se dá conta. Perceber que o relógio bate diferente é uma boa dica de que se está vivenciando o flow.
9. A atividade é autotélica: Autotélico é ter “uma finalidade em si mesmo” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2014). O prazer deve estar relacionado com a energia que a experiência da atividade produz sendo voltada para ela mesma. Aqui Huizinga e sua concepção de jogo dialogam novamente com o flow, assim como os elementos 5, 6 e 7 dessa lista, uma vez que qualquer finalidade externa ao prazer do ato pode desencadear situações que retirem o individuo do flow. Fazer uma ilustração, praticar algum esporte, tocar em um show ou mesmo jogar algum jogo com a finalidade de ganhar dinheiro e reconhecimento pode, sem muita dificuldade, desviar o flow, causando angústias psíquicas. Um jogo de tabuleiro é um sistema fechado, tem regras próprias e não se estende além de si mesmo, assim como o jogador, por sua vez, deve ter ciência de que seu desempenho naquela partida não representa nada além daquela exata partida (salvo jogos de campanha, mas nesse caso podemos considerar que a campanha em si é a experiência fechada), para que com isso consiga vivenciar verdadeiramente o fenômeno isolado daquele jogo. Quem joga buscando criar comparativos diretos entre um jogo e outro (criadores de conteúdo, por exemplo), pode obviamente encontrar o flow nisso, contudo a atividade do flow será a ‘busca pelas diferenças’ e não o jogo em si.
(Representação gráfica (simplificada) do Flow)
Aqui encerro a listinha e, com ela, as postagens sobre o trabalho do Mihaly. Espero que tenha sido proveitoso para vocês, leitores, de alguma forma. Assim que o tempo permitir e minha mente resolver cooperar, trago mais conteúdo. Até lá, não deixem de seguir o canal, pois ainda existem as postagens de texto de outros colaboradores, além das produções de criação e tradução, que são os objetos centrais do canal.
...e fico por aqui, por enquanto, caros oficineiros.
Comentem, curtem, compartilhem, joguem e criem muito!
Até a próxima e abraços digitais!
Texto por Raphael Gurian
2024
Bibliografia:
Criatividade: o flow e a psicologia das descobertas e das invenções / Mihaly Csikszenmihalyi: tradução Roberta Clapp, Bruno Fiuza – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2023.