Desde os tempos mais remotos, o homem desejou voar. Mas foi Alberto Santos Dumont que tornou isso possível, no início do século XX, para se decepcionar com seu invento pouco depois, ao vê-lo transformado em máquina de guerra. Paradoxalmente, foi com os rápidos aprimoramentos tecnológicos proporcionados pelas duas Grandes Guerras Mundiais que a aviação chegou ao primeiro degrau de evolução, nos anos 1950, com os primeiros jatos, e depois, nas décadas seguintes, especialmente com estas aeronaves: o Trijato Boeing 727, o Boeing 747 Jumbo, o Concorde e o Boeing 777, também conhecido como Triplo Sete. Obviamente que antes e entre o surgimento destes aviões, bem como depois, há muitos outros, tão icônicos quanto, mas não é sobre aviões este texto; é sobre alguns jogos de tabuleiro que conseguiram representar, com rara felicidade, aspectos deste fascinante tema: a aviação comercial.
Planes (2014), de David Short, é um jogo de aeroporto, esse local quase mítico, quando não dramático, que a aviação comercial criou. E que gerou um punhado de bons livros e filmes, dentre os quais “Aeroporto” (1970), de George Seaton, baseado no romance de Arthur Hailey. Os jogadores tentam embarcar seus passageiros (cubos) nos aviões, que em seguida, completos, partem. Curiosamente, o elemento mais interessante e desafiador do jogo, e onde toda a estratégia se realiza, é o saguão do aeroporto, representado por uma “nova-Mancala”. Os jogadores circulam ali com seus cubos (como perambulam os passageiros nas horas que precedem os voos), até que consigam embarcá-los. É absolutamente prazerosa essa movimentação tático-estratégica, que oferece um “espírito de jogo” único, ao passo que renova, tematicamente, um jogo milenar, a Mancala. Planes é uma pequena joia, para a qual se dá bem pouca atenção.



Jet Set (2008), de Kris Gould, é um jogo econômico de construção de rotas aéreas. Aviões, dinheiro, cartas e marcadores de rotas são os únicos componentes, às vezes com dupla função, o que é bem interessante e uma lição para os criadores atuais, que enchem os jogos de componentes. Alguns jogadores costumam chamá-lo de “Ticket to Ride dos Céus”, muito embora o Alan R. Moon, criador do Ticket to Ride (2004), já tivesse levado para os ares, com anos de antecipação, o espírito desse jogo clássico, com o Airlines (1990), embrião do Airlines Europa (2011). Cronologicamente, o Jet Set se encaixa entre esses dois e é bem provável que tenha sofrido forte influência do primeiro e, curiosamente, influenciado o segundo. Os jogadores se dedicam a fazer voos curtos e longos, ligando grandes cidades da Europa. Com isso reclamam os objetivos das cartas abertas para todos os jogadores à mesa, que lhes concedem dinheiro e pontos de vitória. O jogo termina quando todos os jogadores realizam seu voo final, mais extenso, que liga três cidades, ou quando o primeiro jogador que realizou o voo final põe o quinto avião sobre sua carta. Um jogo fluido, desafiador e tenso, que infelizmente vai acabar esquecido em meio a tantos jogos novos cujos aspectos visuais e publicitários nos enfeitiçam e seduzem.



Yukon Airways (2019), de Al Leduc, celebra uma atividade comercial (os voos fretados), um lugar histórico (o Yukon, no Canadá, palco da Corrida do Ouro de Klondike, em 1896) e um tempo (o período áureo dos hidroaviões, desbravadores de territórios inóspitos), além de homenagear uma pessoa, o pai do próprio Leduc, que fundou e desenvolveu uma empresa de frete de hidroaviões, em Whitehorse. É um dos jogos mais bonitos que já vi, desde a ilustração da caixa até os componentes: cartas, dados, cubos, aviões, tabuleiro e tabuleiros individuais. A leitura do tema pelas mecânicas e suas minúcias é perfeita. A dica primordial é: gaste combustível, mas guarde combustível, não esquecendo de fazer as melhorias exatas, que em seguida o beneficiarão. Ao longo do jogo, os jogadores transportam passageiros (mineiros, turistas, aventureiros, médicos e policiais) para as várias regiões do Yukon e, com isso, ganham dinheiro e aperfeiçoam seu avião e sua empresa. O nível de detalhamento é tamanho, que uma das melhorias constitui uma reserva de clientes para o período do Natal. O jogo é rápido, pois conta só com seis rodadas, e o grande desafio é tirar o maior proveito possível do que se lhe oferece turno a turno. É um jogo realmente brilhante, em especial para quem aprecia o tema ou implementações históricas bem realizadas.





Pan Am (2020), da equipe Prospero Hall, é um dos melhores jogos de aviação lançados nos últimos anos, e não só de aviação. A beleza é indiscutível, notadamente do tabuleiro, dos aviões e das cartas de destino. Até o manual exala bom gosto e frescor, com suas ilustrações da época de ouro da aviação comercial, marcada pelo luxo e pela elegância. A Pan Am se estendeu dos EUA para o mundo com a velocidade de seus próprios aviões e assim absorveu rotas pertencentes a outras empresas, em quatro continentes. No Brasil, inclusive, virou Pan Air e se abrasileirou, tornando-se vítima de um complô político que a dissolveu. Longa e triste história, recontada em “Pouso forçado” (Record, 2015), de Daniel Leb Sasaki. A verdade é que o jogo Pan Am consegue duas raras proezas: 1) ser historicamente perfeito, uma interpretação bem fiel da aventura expansionista da verdadeira Pan Am, e 2) não impor aos jogadores trabalho em vez de diversão. Ou seja, confere ao jogo o que ele deve ser: deleite e passatempo, como eram os jogos antigos, que embalaram nossa infância. Em suma, vai contra a corrente atual, de jogos poluídos, enfadonhos e maquiados, que dão mais trabalho que prazer, mais histeria quando do lançamento que satisfação quando jogados. A essência básica de Pan Am é administrar uma empresa aérea, que compra aviões, manda a campo os seus engenheiros, abre rotas, ganha dinheiro com elas, vende-as eventualmente à Pan Am, que está a se expandir com voracidade, e compra as ações desta, o que é uma evidência de bom senso e uma forma de não ficar para trás. Melhor retrato de uma economia expansionista agressiva impossível. As cartas de eventos de época dão um sabor todo especial ao jogo, promovendo queda ou alta das ações, bem como perdas ou benefícios e inesperadas reviravoltas de final de jogo. São sete rodadas apenas, que os jogadores devem aproveitar ao máximo, com uma estratégia, se possível, sem falhas e posicionamento tático eficaz, contando, claro, com um pouco de sorte, pois, como na vida, sorte é fundamental, ou só os mais capazes seriam bem-sucedidos. Pan Am não é somente uma grata surpresa, é para muitos um jogo imprescindível. Conheço pessoas que bem pouco jogam, mas sempre jogam Pan Am. Não, não é um paradoxo. Aqui em Salvador, criamos extraoficialmente o Clube Pan Am, que se reúne uma vez por mês para jogar de duas a três partidas, a depender da disposição do grupo.
Airport Rush (2022), de Anderson Butilheiro, é um jogo de manifesto de carga. Organize o carregamento dos aviões e deixe-os prontos para decolar. A carga são os dados; os aviões, as cartas que se cumprem e que geram pontuação própria, ampliada pelos objetivos e os possíveis bônus. Cartas de eventos facilitam as ações com os dados e com os próprios aviões ou promovem atrasos circunstanciais, o que é precisamente temático. Os objetivos alcançados pelas cartas de aviões que alçam voo, a princípio, podem parecer fáceis, mas não são, e não raras vezes seremos punidos por nossa audácia ou desenfreada cobiça. Um ótimo jogo de aviação, no qual reconhecemos a influência de outros, o que não é nenhum demérito, pelo contrário, atesta o conhecimento do seu autor e a sua habilidade de extrair algo novo do universo em volta. Um jogo compacto, bonito, prazeroso e que diverte, além de trazer para o universo dos jogos de aviação um elemento pouco explorado: o manifesto de carga.




Espero ter oferecido aqui alguma informação proveitosa ou um simples atrativo que motive os jogadores a conhecer e jogar esses jogos. Destes só o último saiu no Brasil, porque, afinal, o autor é daqui. Os demais seguem inéditos, o que me surpreende, já que, o avião foi inventado por um brasileiro e não são poucos os apaixonados por aviação no País, eu incluído. Sem falar que as empresas aéreas brasileiras marcaram época na aviação mundial, embora tenham desaparecido, engolidas pela voracidade e velocidade do meio: Real, Pan Air, Cruzeiro, Transbrasil, Vasp, Varig… todas hoje uma lembrança que ainda persiste, um brilho súbito no olhar.
Mayrant Gallo é professor, escritor e faz parte da Invasion BG. Publicou mais de 15 livros. Eclético, aprecia cinema, literatura, música, jogos de tabuleiro, baralhos, plastimodelismo, pintura e tudo o que de refrescante e elevado a vida pode nos oferecer.