Dentre os antigos povos desaparecidos, um dos mais interessantes foram os fenícios. Autodenominados cananeus, passaram, no entanto, à história pela denominação que lhes foi atribuída pelos gregos, fenícios (phoinikes: “púrpura”), inspirados pelo artigo mais desejado produzido por eles, a tinta de cor lilás que era a preferida, entre os mais poderosos e ricos, para tingir o tecido de suas vestes, conferindo às mesmas um requinte de nobreza e elegância. As três maiores contribuições dos fenícios para a humanidade foram: 1) o estabelecimento regular do comércio marítimo, notadamente no Mediterrâneo; 2) as navegações explorativas e comerciais ao longo do mesmo Mediterrâneo, que impulsionaram o surgimento de inúmeras cidades, entre as quais Cartago, a mais célebre e que mais tarde se bateria com o Império Romano; e 3) a criação do alfabeto fonético fenício, que inspirou o alfabeto grego e o latino e moldou quase todos os idiomas europeus escritos de nossa época, embora seu propósito inicial fosse meramente comercial, para facilitar a anotação de créditos, débitos, descontos, dívidas etc., ou seja, preencher o livro-caixa. Por causa das navegações, a cartografia e a astronomia foram áreas do conhecimento que também receberam forte contribuição fenícia. Igualmente a produção de joias e ornamentos diversos.
Neste pequeno grande jogo de Martin Wallace, publicado em 2002 e jamais reeditado, os fenícios nos interessam enquanto comerciantes e navegadores. Como comerciantes, eles partem da cidade-estado de Tiro, no atual Líbano, e vão até a Península Ibérica. Ou seja, varrem de ponta a ponta todo o Mediterrâneo, comercializando vinho, especiarias, alabastro, azeite de oliva, óleos perfumados, tecidos, a tão almejada tinta púrpura tíria, cobre, prata, ferro, chumbo, estanho, ouro, madeira, vidro, marfim, papiro, joias, ornamentos, amuletos, esculturas e até escravos. Como navegadores, criam barcos inovadores (o birreme e o trirreme, por exemplo), ampliam e estendem amplamente o comércio da região, fundam colônias, erguem cidades, expandem reinos, seduzem os povos ‒ não pela força, mas pela influência de suas atividades, bem como pela qualidade dos produtos que fazem chegar a reinos e lares os mais distantes. Reza a lenda de que os fenícios nem possuíam uma força militar unificada, tamanha era a sua aceitação junto aos outros povos, seja por gozarem de prestígio comercial seja por pagarem altos tributos… Seus barcos iam de um canto a outro do Mediterrâneo, e mesmo além dele, sem carecer de proteção armada, senão a mais elementar, mínima. Vendedores notórios, e abarrotados de mercadorias atraentes, os fenícios eram aguardados. Atacá-los com frequência não seria uma atitude inteligente, pois isso poderia interromper suas viagens, e, assim, os povos beneficiados por eles ficariam a ver navios.

O jogo em si impressiona bastante, pelo que oferece de simplicidade, contenção e elegância, ao passo que proporciona prazer e genuína diversão, em partidas disputadas acirradamente com 3 a 4 jogadores muito envolvidos e comprometidos, e nas quais não falta tensão, bem como, ao fim, a expressão mágica que eleva qualquer jogo: “Vamos a mais uma partida?” São poucos os jogos que conheço, especialmente do tipo “euro”, capazes de tamanha sedução. Sobretudo porque as partidas em Tyros são dinâmicas, fluem naturalmente e não vão além de 70 a 90 minutos, devido ao seu modo de marcação de rodadas, que envolve um dos aspectos mais interessantes do jogo: a expansão dos reinos. Quando um jogador usa sua última peça de expansão, estamos na rodada final, que terminará no momento em que todos os jogadores afirmem que passaram. Dá-se então a pontuação, que é sem dúvida um dos charmes desse jogo. Não há pontuação concomitante ao fluxo da partida, exceto se um jogador for o primeiro a construir cidades em cada um dos quatro reinos, condição que lhe concede 7 pontos. Mas, numa partida muito marcada e atenta por parte de todos os jogadores, especialmente com 4, alcançar essa pontuação é uma empreitada bem mais difícil.
Tyros é brilhantemente bem elaborado. Nada sobra, nada falta. Seu conceito reduz ao elementar aquele momento da História que fez dos fenícios os primeiros grandes comerciantes marítimos. Estamos há mais de mil anos antes de Cristo. A região, que podemos definir como o coração do mundo antigo, ferve de novidades, invenções, inovações, conflitos, vaivém de pessoas, navios e veículos terrestres, reinos que dominam outros ou que se expandem, engolindo os menores. O fato de não possuir boas terras para a agricultura, mas desfrutar de vastos bosques de cedro e estar à beira-mar, fez a cidade-estado de Tiro olhar para o horizonte marítimo e construir barcos ‒ o melhor meio para se lançar no comércio intenso rumo ao extremo oeste do Mediterrâneo. Na verdade, sabe-se que os fenícios foram além do Mediterrâneo, chegando à Grã-Bretanha, no Atlântico, em busca de estanho. Mas essa façanha não comparece ao jogo. O limite europeu do mapa representado no tabuleiro é a Península Ibérica, o que hoje compreende a Espanha e Portugal. A essa região ‒ da qual compravam prata, que revendiam ao longo do Mediterrâneo, na volta ‒ os fenícios levavam principalmente azeite de oliva e azeitonas. Segundo alguns historiadores, a forte produção de azeite de oliva nestes dois países é uma herança fenícia.
Tyros capta muito bem esse movimento geográfico descrito acima. Todos os jogadores começam com dois barcos construídos à margem de Tiro, a leste do Mediterrâneo. Dali eles partem levando suas mercadorias aos reinos adjacentes e a outros mais distantes. Representadas pelas cartas do jogo, as mercadorias dão o sentido de entrega de produtos e, ao mesmo tempo, estabelecem a quantidade de movimentos no tabuleiro, retângulo a retângulo, que cada barco executará até que alcance o reino desejado. Se pretendemos chegar a um reino de cor amarela, usamos as cartas amarelas, que representam a variedade de óleos que os fenícios comercializavam. Cada carta compreende um movimento vertical ou horizontal, jamais diagonal. O movimento final deve ancorar o barco do jogador num espaço de um reino de mesma cor que as cartas jogadas. Ali, mais tarde o jogador poderá fundar uma cidade e, sucessivamente, construir novos barcos, abdicando de fazê-lo, se quiser, em Tiro. Conforme os reinos se expandem, os jogadores potencializam sua pontuação de fim de jogo, viajando para locais mais remotos e fundando novas cidades ou construindo novos barcos. Há um detalhe aqui e outro ali, mas não cabe neste momento precisá-los.
Cada reino é representado por uma cor de carta, que simula, assim, o produto de maior interesse de sua população, para compra, uso ou revenda: o cobre, óleos, o tecido púrpura, o cedro. Sendo que há ainda quatro cartas curingas, que encerram todas essas mercadorias e, tematicamente, dão a dimensão do interesse do reino alcançado por ofertas comerciais diversas.

Obviamente que todo jogo ‒ como um quadro, um filme, um romance, um ensaio ‒ representa um recorte de um momento e um lugar. Seus autores jamais poderiam pretender exaurir o tema do qual se ocuparam. Pensar contrário a isso configura um delírio. Posto isto, cabe exaltar o quanto o recorte de Tyros é preciso, se valendo com eficiência e fluidez do mínimo que engloba aquele momento que transformou os fenícios nos primeiros comerciantes marítimos, importadores e exportadores exímios, que fizeram do mar seu meio de sobrevivência, sua fonte de recursos e seu horizonte de expansão. A complexidade dessa civilização que Roma, Grécia e outros povos despeitados se encarregaram de exterminar, motivados pela inveja e obcecados por batalhas, não comparece ao jogo. Nem poderia, sob pena de elevar o mesmo a um patamar “injogável” ou, se fosse o caso, jogável com muito esforço, muito trabalho, muito suor, o que o desterraria para um limbo da estante só muito raramente espanado. E não será isso o que ocorre com muitos jogos? Tyros, por sua vez, tem a medida da exatidão, a beleza do elementar, a grandiosidade do diminuto. Compreende um momento e um lugar históricos, mas ainda é um jogo, com tudo o que ele irrevogavelmente deve ter e que lhe é imprescindível: diversão, prazer, uma hora e meia de imersão naquele instante da eternidade em que os fenícios foram grandes comerciantes ‒ talvez os maiores.
Mayrant Gallo é professor, escritor e faz parte da Invasion BG. Publicou mais de 15 livros. Eclético, aprecia cinema, literatura, música, jogos de tabuleiro, baralhos, plastimodelismo, pintura e tudo o que de refrescante e elevado a vida pode nos oferecer.