Rrrr[Galvão Bueno]rrrespeitável público, esta resenha é sobre as primeiras impressões de Sa-Rê, isto é, jogou-se nem meia dúzia de partidas, as quais foram em 2 jogadores no Tabletopia. Tomou-se conhecimento dele porque essa plataforma de jogos online foi parte da divulgação de novos jogos na Gen Con 2022.
Também é preciso dizer que o jogo, no Tabletopia, tem um jeitão de protótipo em estágio ultra-mega avançado. O manual em inglês, que foi traduzido do francês, ainda carece de uma revisão, e dá noções de que a versão “final” do jogo teve elementos cortados (uma expansão deve vir se for sucesso). Além disso, alguns componentes foram adaptados para o “on line”.
Para terminar essa introdução, o Sa-Rê teve um financiamento coletivo iniciado em maio e encerrado pelos próprios autores em junho. Segundo uma nota, eles são inexperientes neste tipo de venda e observaram que o apoio estava aquém do esperado. Porém, uma versão padrão do jogo será vendida na França e Alemanha no final deste ano e uma versão deluxe está sendo preparada para o ano que vem, enquanto a editora Nostromo Éditions está em tratativas para comercializar no restante do mercado europeu e no norte-americano.

Versão padrão (à esquerda) e a arte conceitual das miniaturas da versão de luxo.
Com toda essa situação, por que jogar? Por que escrever sobre? Porque o jogo é bom,
é família, e confia-se que o autor fará um belo ajuste fino até o seu lançamento.
Bora conhecer?
Sa-Rê
Um jogo de François Bachelart.
Em Sa-Rê, o Faraó deu um
lote pra carpir pedacinho de chão (arenoso) às margens do rio Nilo a seus filhos e filhas para que eles erijam uma
cidade monumental a fim de descobrir quem será seu(sua) sucessor(a). A prole deve
buscar os recursos necessários o mais rápido possível. Mas se forçar demais os trabalhadores,
eles se revoltarão e comprometerão o empreendimento.
Em
resumo, os jogadores escolhem projetos de construção, conseguem recursos e erguem edifícios. Quem alcançar o objetivo da partida (uma escolha entre 4 opções), vence.
Uma explicação rapidona de como jogar.
Nota: as opiniões sobre a jogatina estão logo abaixo.
O jogo tem
várias rodadas. Inicialmente, os jogadores decidem democraticamente
com voto em urna eletrônica e respeitam o seu resultado qual será o objetivo dentre 4 opções. Depois, cada rodada tem
três fases:
1. Seleção de Projeto.
Pode-se escolher 1 ou mais projetos de construção dentre os disponíveis no tabuleiro central (que só serve para abrigar as fichas de edifício). Dependendo da quantidade, o Mestre de Obras se estressa e a
Trilha de Revolta começa a andar. Os projetos são colocados no
Sítio de Construção (tabuleiro do jogador), que possui
12 espaços disponíveis.
2. Produção.
Na qual se consegue os recursos externos. Tem a mecânica de “
force sua sorte” ao ficar abrindo as cartas de Estação antes que uma
Revolta Aberta aconteça. Tem cartas de recursos (obviamente), cartas de revolta e cartas obscuras (vai arriscar pôr tudo a perder forçando demais seus trabalhadores?).
Uma
Revolta Aberta (quando a Trilha de Revolta está no máximo) faz com que o jogador fique
fora da rodada imediatamente, isto é, ele não pegará mais recursos, perderá todos os que conseguiu exceto um, e não poderá fazer a próxima fase (a de construção). Ou seja, é hora de
chorar debaixo do edredom que é mais quentinho.
3. Construção.
Os jogadores
gastam recursos (madeira, pedra e ouro) obtidos externamente (das cartas de Estação), dos seus próprios edifícios de produção, dos armazéns e de caravanas
para completar os projetos e ganhar os benefícios dos edifícios construídos. São 3 tipos deles:
a) Edifícios de Produção: permitem projetos, armazenamento e produção de recursos.
b) Edifícios Administrativos: permitem caravanas e uma série de efeitos para a Fase 2.
c) Edifícios Principais: o Porto (que rende um recurso curinga) e a Pirâmide (objetivo do jogo).
Protótipo do Tabuleiro Central com edifícios de Produção (menores, à esquerda), Administrativos (médios, ao centro) e Principais (grandes, à direita). Logo acima, os três recursos do jogo: pedra, madeira e ouro. Ao lado, o recurso curinga (colorido).
Se o objetivo
não foi alcançado neste momento, prepara-se a
nova rodada com o armazenamento de recursos, comércio de caravanas, edifícios produzindo e Trilha de Revolta voltando ao mínimo.
Gostosinho de jogar
Foi bem
agradável fazer umas partidas de Sa-Rê. Ele tem um “quê” de
7 Wonders: Arquitetos no que diz respeito à
facilidade de entender, turnos rápidos,
interação na medida, e o objetivo de conseguir recursos e realizar construções. Entretanto, o de nome egípcio é algo
mais elaborado e tem umas burocracias que incomodam.
Primeiro, vamos falar bem do jogo.
O manual tem uma página inteira com um conto sobre uma trabalhadora egípcia que explicava a vida de trabalho intenso para construir uma cidade e como as pessoas poderiam se revoltar ou poderiam ser punidas. A partir disso, elaborou-se
o coração do jogo, que é a
Fase 2. Todo o resto é consequência disso.
A Fase 2 (Produção) tem o
baralho com suas cartas viradas para cima inicialmente. Os jogadores sabem o que está por vir. E devem escolher continuar ou não. Se for
revolta (quando os trabalhadores se recusam a produzir), o jogador pode assimilar o estresse e
seguir produzindo (ou seja, forçando os trabalhadores a continuar). Se a carta tiver mais de 1 recurso, os trabalhadores se cansam e
mais revolta é somada.
Não bastasse isso, a carta
Escolha de Hórus obriga o jogador a pegar as 2 próximas cartas e fazer seus efeitos, bons ou ruins. Ela
é cumulativa, ou seja, o jogador pode acabar tendo de aceitar umas 6 cartas de uma vez e ter todo o benefício e prejuízo disso. Por fim, tem a carta
9ª Praga do Egito, que
vira o baralho e todos pegam novas cartas “
no escuro”.
Apoio de cartas para ajudar com a mecânica principal.
Os
edifícios Administrativos basicamente mudam um pouco o roteiro da Fase 2 ao
amenizar as revoltas e permitir manipular um pouquinho de nada o baralho. Porque esses edifícios ajudam um tanto é que existe o fator “Cidade Desenvolvida”: conforme ela cresce, a Trilha de Revolta fica
mais curta.
O conjunto de cartas e a mecânica foram
bem casados e viveram felizes para sempre. Em geral, é aleatório se a rodada dará muitos ou poucos recursos aos jogadores. E
quem não arrisca, não petisca. Uma
virada de mesa pode ocorrer nessa hora (literalmente, se preferir).
Um comentário breve sobre o
Sítio de Construção (tabuleiro de jogador). Ele tem 12 espaços (um quadro 4x3). Como os edifícios de produção dão descontos de produção nas adjacências, a colocação das peças deve ser planejada para depender menos da Fase 2.
Sítio de Construção (tabuleiro de jogador) e edifício permitindo desconto nas adjacências.
Outra coisa interessante é a
construção da Pirâmide (que está presente em todos os 4 objetivos da partida). Ela é feita em
três estágios, cada qual em rodadas diferentes. Mais que isso! Ao escolher o projeto da Pirâmide, o jogador pega uma carta dela aleatoriamente, porque os estágios possuem
quantidades diferentes de recursos para
cada jogador. Isso causa uma decisão importante: pegar logo a Pirâmide para saber o que produzir ou pegar mais tarde para conseguir os tais descontos?
Agora, vamos morder. Falar mal, mesmo!
O jogo foi planejado para ter uns fatores a mais. É perceptível que algumas coisas
foram capadas: talvez tivessem mais edifícios, mais tipos de recursos, mais mecânicas de interação. Tudo isso deve ter sido limado para deixar o
produto mais enxuto e com
partidas amigáveis (até demais).
A Fase 1 (Seleção de Projeto) e a Fase 3 (Construção)
nem precisariam existir isoladamente com suas próprias regras (como em
Oh My Goods!, em que isso faz sentido). Dificilmente o jogador irá querer pegar 4 projetos de uma única vez, porque se
ganha muita revolta (pode ir quase à metade da trilha). Portanto, mais (edifícios de) Mestres de Obras
é inútil e não se vê diferença entre os jogadores nessa etapa. Já durante a Construção, os jogadores
não interagem, só gastam recursos e fim. Bem seco, mesmo! Mais que o Saara.
Para construir, é possível conseguir recursos
de tudo que é lugar: cartas, edifícios, descontos, armazém, caravana. Se duvidar, você pode
arrancar um pedaço da mesa e usar como madeira no jogo. Só
há dificuldade se a configuração de cartas da Fase 2 estiver ruim ou se houver uma Revolta Aberta (quando se perde a rodada).
As famigeradas cartas de revolta que forçam os jogadores trabalhadores ao limite.
O
fator beleza também atrapalhou. Olha, não é segredo que os jogos contemporâneos (os pós-modernos)
precisam ter miniaturas. O Sa-Rê nasceu com isso. Os edifícios foram planejados para serem em 3D, todos lindões no tabuleiro de jogador. E como se usa os efeitos deles? Pegando
as cartinhas deles, onde se colocam os recursos e estão os lembretes de suas ações. Ok, isso faz sentido. Mas as miniaturas são a versão de luxo. A variante padrão (igual ao do Tabletopia) são fichas, que poderiam muito bem
cumprir esse papel. Essa redundância é decepcionante.
Outro
problema sério é com relação aos
objetivos. Eles sempre envolvem a construção da Pirâmide e a de outros edifícios. Mas eles
são subjetivos demais (que ironia): não há pré-requisitos e qualquer caminho (mesmo o mais inesperado) pode levar à vitória.
Por fim, a gente assopra.
Para um jogo família, Sa-Rê se sai muitíssimo bem. É
simplicidade e descomplicação em um jogo com boa interação em um “force sua sorte” bem montado.
O
posicionamento dos edifícios no Sítio de Construção é importante, mas não é fundamental. Nada de ficar
gerenciando recursos dali pra cá, de cá pra lá. Às vezes, há desperdícios, mas isso não agride o jogador.
Para quê ficar
quebrando a cabeça para
conseguir recursos? Os próprios edifícios construídos ajudarão bastante com isso. Aliás, não existe construção impossível: toda rodada é plausível fazer alguma (exceto em raros casos de Fase 2 ruim). Tem até um
recurso curinga para facilitar ainda mais.
Os
turnos são rápidos. Não tem de ficar pensando muito. A ansiedade (e provocações) fica por conta das cartas da Fase 2. “Vai encarar esse Hórus aí”? “Olha a Praga escondendo o jogo”. “Toma essa quartelada aí”. “Não aguenta uma revolta, bebe leite”.
Fim de uma partida. Imagem do tabuleiro vitorioso.
Há males que vêm pra bem. O
cancelamento do financiamento coletivo foi
positivo. Primeiro, porque o jogo ainda precisa repensar seu
aspecto mercadológico: muita ênfase no cosmético e menos na jogabilidade final. Segundo, porque permite a
divulgação do produto em dois grandes eventos: Gen Con (como aconteceu) e Essen.
O material é muito bom, sim. A mecânica da Fase 2 é
bem divertida em jogatina. O desafio de
esticar a corda até o limite e uma disputa franca entre jogadores categorizam
Sa-Rê como um jogo que merece ver mesas.
Até uma próxima.
Fonte das imagens: vídeos de divulgação, Gamefound, Tabletopia, manual do jogo e Board Game Geek.
PS: Corre à letra miúda
que Sa-Rê é bem melhor que Foundations of Rome.