Alguns autores estimam que há cerca de 3 mil jogos de cartas conhecidos, para baralhos do tipo francês ou espanhol. Grosso modo, são jogos que com alguma frequência reúnem pessoas em volta de uma mesa ou que apenas são mencionados em livros e revistas, pois muitos estão extintos ou em vias de desaparecer, uma vez que comparecem aos compêndios, têm suas regras descritas e comentadas, mas só muito raramente são jogados.
Por exemplo, Casino (pronuncia-se Casinô, à francesa) é um jogo muito fácil de aprender, rápido, dinâmico, viciante e com uma sofisticada oferta estratégica, a ponto de um estudioso afirmar que “é um jogo em que um perdedor constante não poderá culpar as cartas, mas a si próprio”. Pois bem, este fascinante jogo tornou-se praticamente obscuro no Brasil. Não conheço ninguém, além de mim e alguns poucos amigos, que o joguem. Se a internet não nos oferece quase nada quando o pesquisamos (salvo menções a cassinos, os locais de jogatina…), não há, porém, um livro sequer sobre jogos de cartas que não o mencione.

Sua origem é incerta, tendo aparecido na Europa por volta do início do século XVII, derivado provavelmente de outros jogos mais antigos, como o Papillon e o Callabra. Afirma-se igualmente que o Casino é talvez uma espécie de “simplificação” da Scopa, muito embora alguns defendam que é o inverso, tese fundamentada pelo fato de que a Scopa também é conhecida como Casino Italiano, o que sugeriria que Casino a precede. A verdade é que, comparado à Scopa, Casino é um jogo mais fino e elegante.
Recentemente, relendo “Dom Casmurro”, me deparei com um trecho em que Machado de Assis menciona um jogo de cartas muito popular no Rio de Janeiro do século XIX, mas sobre o qual quase nada encontrei. Para conhecê-lo melhor, tive que importar um livro de Portugal: “O Voltarete: regras e etiqueta”, da Sra. Maria Luísa Mascarenhas Peça.
Assim a autora define o Voltarete: “É um jogo de cartas, de vaza, que exige dos jogadores reflexão e alguma estratégia. Os três parceiros fazem lanços em leilão, de que resulta um contrato de jogo”. O Voltarete chegou ao Brasil no início do século XIX, pelas mãos dos portugueses e, como alguns outros jogos mundialmente conhecidos e praticados, deriva de um jogo de cartas espanhol, denominado Juego del Hombre. O certo é que, assim como o Casino, não há futuro para o Voltarete no Brasil, se é que ele ainda é jogado… Ambos continuarão restritos aos livros e à mercê da boa vontade de curiosos que, como eu, talvez cheguem a descobri-los e talvez jogá-los.

Coincidentemente, este pode ser o destino de muitos dos jogos de cartas contemporâneos, inseridos no universo dos jogos de tabuleiro. Mas talvez o motivo não venha a ser o gradativo esquecimento, o que é bem natural, pois “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, como bem disse Camões. O motivo, provavelmente, será a saturação ou, em alguns casos, o desprezo.
Com tantos jogos de cartas lançados ano a ano, uma boa fração tende a desaparecer sem nem ao menos ter sido desfrutada a contento. Um jogo como o originalíssimo Sky Tango (2012), de Johann Ruttinger e Jacques Zeimet, será, com toda a certeza, a guloseima de uma minoria de jogadores; não mais que isso. Destino igual terá Montmartre (2019), de Florian Sirieux. Outro problema, este restrito ao Brasil, é a tendência que temos de exaltar o produto estrangeiro em detrimento do nacional. Temo que, por essa via, jogos como Time Machine Rocket (2021), de Fábio Michelan, Vossa Excelência (2018), de Fernando A. C. Prado e Marcelo S. Dias, e Sereias (2019), de Jorge Luís Rocha e Sabrina do Valle, por não receberem a devida atenção, tenham um destino semelhante ao de Sky Tango e Montmartre ou mesmo pior. E, no entanto, são jogos excelentes, cada um à sua maneira, escolhendo, ademais, o humor como recurso temático, expresso na arte de suas cartas e mesmo em algumas legendas, no caso específico de Vossa Excelência. Passemos, então, a um rápido comentário sobre os mesmos:

Time Machine Rocket, ao tempo que me surpreendeu, tornou-se um vício. Não jogo menos de 3 a 5 partidas numa única jornada. É um jogo muito dinâmico, em que sorte e estratégia se rivalizam, uma interferindo na outra, organicamente. Para jogá-lo bem, deve-se somar ímpeto e cautela, avaliando, com base no que se apresenta à mesa, qual o melhor procedimento a adotar no momento. É um jogo inteligente e muito perspicaz, embora frequentemente julgado como um simples jogo de treta. Ora, interpretá-lo assim é se limitar ao superficial. Não há uma partida igual à outra e, às vezes, é melhor fechar uma rodada com prejuízo do que deixar que o adversário a finalize, pontuando mais. O marco de 40 pontos a alcançar para vencer não pode ser esquecido. Coadunar seu desempenho com esta perspectiva é fundamental. Como Can’t stop, não se deixe arrebatar pela euforia gratuita, mas também não se acomode. Seu caráter orgânico impressiona! Os personagens históricos vão da pontuação de 1 a 6, conforme retrocedemos no tempo, desde o pós-Segunda Guerra Mundial até a Idade Antiga (4000 AC). Para avançar no jogo, precisamos viajar no tempo, mas com perspicácia, pois a ambição desenfreada pode nos conduzir ao vórtex temporal, que nos impõe um atraso irremediável. As ilustrações das cartas, pautadas no humor – e de muito bom gosto –, representam grandes personagens da História em diversos campos do conhecimento, da cultura, das artes, religiões, filosofia e ciência: Elvis Presley, Santos Dumont, Carl Sagan, Confúcio, Jesus etc.

Um card game que tem tudo para se consolidar, fascinar e perdurar. Especialmente se receber uma segunda edição por uma grande editora, que reconheça no mesmo um potencial para se universalizar. Mas, como eu disse no início, há um risco no fim do túnel, oriundo de nossa natural tendência a desprezar o produto nacional, em favor de seus rivais estrangeiros. O certo é que Time Machine Rocket foi, de longe, um dos melhores card games que joguei nesse ano. Coloco-o ao lado de Jaipur, Mandala, Capital Lux, Parede, Sky Tango e mais uns dois ou três realmente excepcionais.

Vossa Excelência foi por muito tempo um jogo que eu pesquisava, pesquisava, mas adiava a sua aquisição, e ninguém que eu conhecesse o possuía. Um dos motivos de minha resistência era que sou capaz de me entregar ao diabo, mas não aperto mão de político. E o tema desse jogo é, essencialmente, a politicagem brasileira. O horror que é estar à mercê dessa gente destituída de qualquer escrúpulo. Ora, o jogo é exatamente sobre isso. Mostra os conchavos, a sujeição dos eleitores, as conveniências do poder, as falcatruas, as alianças em prol disso e daquilo, o abandono de tudo o que é sério quando o ano é de reeleição, a canalhice, o desprezo pela sociedade, o apego ao dinheiro… Caramba! Está tudo ali, carta a carta, ação por ação.
O modo solo é bem difícil, se não soubermos administrar com eficácia o nosso gabinete, sempre “animado” por personagens os mais insanos e interesseiros. Uma das expansões, inclusive, introduz o caos digital, a ameaça constante da internet. Um jogo brilhante!

Sereias foi, ao fim das contas, uma surpresa incrível! O tema foi arrancado de Homero e seus epígonos. Com seu canto e sua beleza, as sereias atraem os barcos e os “conquistam”. Era assim nas lendas antigas, que traziam para o mito a implacabilidade da vida. E é assim que pontuamos. Um dos segredos mágicos desse jogo, aparentemente inocente, está na sua oferta de embarcações, sempre em evolução, pois o jogador que detém a carta dos ventos deve, em seu turno, fazer os navios se moverem, escapando às sereias ou ficando mais à feição de seu canto. Ter a carta dos ventos é muito importante, mas abdicar dela, às vezes, também o é. Mas como fazemos isso? Forçando que o adversário, tão logo o possa, a leve. Só joguei esse jogo face a face, em dois, e assim ele me pareceu equilibrar a sorte oriunda do tema – uma vez que não se pode prever com precisão o que o destino reserva para os navios, tanto quanto para os jogadores – e o raciocínio natural a todo jogo mais estratégico.
Concluo pondo em destaque o meu receio. Em meio a tantos jogos lançados mensalmente, a tendência é que nos lembremos, ao fim, somente dos maiores e mais badalados. Aos jogos maiores e mais falados reserva-se o céu lúdico; aos maiores e menos comentados, um certo limbo; mas aos menores, os card games propriamente ditos, resta a poeira das escuridão e do anonimato. Aliás, é assim com tudo… Felizmente há alguns jogadores que preferem seguir sua intuição a se resignar ao que nos oferta, com histeria, o Sistema. É em suas mãos que está a sobrevivência dos jogos que aqui comentei.
Que tal agora uma partidinha de Casino? Ou vocês preferem Time Machine Rocket?
Mayrant Gallo é professor, escritor e faz parte da Invasion BG. Publicou mais de 15 livros. Eclético, aprecia cinema, literatura, música, jogos de tabuleiro, baralhos, plastimodelismo, pintura e tudo o que de refrescante e elevado a vida pode nos oferecer.
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