Houve uma época em que todos os produtos extraídos ou manufaturados só viajavam de um ponto A para um ponto B por terra ou por mar. Nos quatro cantos do mundo era assim. Portanto, os primitivos veículos de rodas e as embarcações eram a base do fluxo comercial. Com a última grande expansão marítima ocorrida no século XVI, a importância dos navios aumentou, pois trazer da América, Ásia, África e Oceania os produtos mais valiosos e desejados, para comercializá-los ou estocá-los na Europa, tornou-se a mais lucrativa atividade mercantil da época. Nos séculos seguintes, os portos marítimos reinaram, especialmente os localizados na França, Grã-Bretanha, Espanha, em Portugal, Holanda e Itália. Tudo vinha deles e para eles convergia. Dentre os mais destacados estava o porto francês de Le Havre (a pronúncia correta, em francês, é “lê avre”, com o “R” sutilmente fricativo: “O Havre”, em português), título de um dos mais populares jogos de tabuleiro do alemão Uwe Rosenberg e seguramente um dos melhores no gênero econômico já concebidos.

Se mergulharmos a fundo no propósito de analisar este jogo, o primeiro aspecto a ressaltar é que os jogadores não são administradores portuários, como afirmam erroneamente alguns comentaristas, nem tampouco o jogo se restringe ao porto. O porto é, sem dúvida, o coração do jogo, sua mola propulsora, digamos assim, com a chegada frequente dos navios que trazem matéria-prima e as despejam nos armazéns. Mas é só isso. Os jogadores, na verdade, são comerciantes e industriais. Encarnam a nata da burguesia endinheirada que ascende no auge do século XVI e chega até a nossa época, agora refinada pelo transporte aéreo e pelo comércio eletrônico em escala global.

O curso temporal de Le Havre não é preciso, mas, com alguma imaginação e esforço de pesquisa, podemos localizá-lo em algum ponto entre a última década do século XIX e as duas primeiras do século XX, período em que os navios de ferro e aço avultaram e cujo apogeu são os monumentais Titanic (1912) e Lusitânia (1906), protagonistas de dois dos mais trágicos naufrágios modernos. Do âmbito destes trinta anos para adiante surgem os transatlânticos de luxo, as ferrovias se ampliam, Santos-Dumont inventa o avião, ocorrem duas guerras mundiais (responsáveis pela introdução e desenvolvimento de novas tecnologias), o automóvel se consolida como meio de transporte ágil e relativamente barato, o avião evolui, entram em operação os hidroaviões, os voos intercontinentais se estabelecem e, por fim, as aeronaves a jato ganham os céus. Os portos recebem, então, a concorrência pesada dos aeroportos. Viajar por mar agora é demorado demais. De avião, obviamente, pessoas e produtos podem chegar bem mais cedo aos seus destinos.
Le Havre, portanto, representa tanto o ápice quanto o princípio da decadência dos portos marítimos, mas é, em essência, um jogo sobre as atividades comerciais burguesas na Europa moderna, sua diversidade e suas ramificações.
Ao longo de várias rodadas, cada uma com sete turnos individuais, os jogadores se alternam em ações como: recolher e armazenar produtos importados, construir ou comprar propriedades, fabricar ou adquirir navios, transformar matérias-primas em produtos comestíveis ou usáveis, vendê-los, fazer empréstimos, pagar juros, alimentar (entenda-se “remunerar”) seus trabalhadores, vender propriedades, contratar serviços alheios etc. Ou seja, o jogo é uma representação bem convincente do trabalho cotidiano no continente europeu. O fato do ouro e da prata não comparecerem ao rol das matérias-primas presentes no jogo é mais uma evidência de que já estamos em finais do século XIX e princípios do século XX.
As regras são poucas e simples, acessíveis a quaisquer pessoas, mas é preciso que se apreciem as atividades econômicas, especialmente as comerciais, pois Le Havre é antes de tudo um jogo de comprar, estocar, produzir e vender. Possuir propriedades, como a Olaria, a Panificadora, o Cortume etc., bem como navios, justifica-se por ampliar ou melhorar as atividades comerciais. Ora, despachar seus produtos em seus próprios navios pode ser bem mais lucrativo do que contratar os navios da concorrência (na realidade criada pelo jogo), e o navio, tanto quanto as propriedades, é um bem, vale dinheiro, é incorporado ao patrimônio, que determinará o mais rico, consequentemente o vencedor do jogo.
Toda a estratégia em Le Havre se resume a administrar, sempre em busca do maior lucro, o patrimônio existente, ampliando-o e diversificando-o. Começamos com as matérias-primas, que, nas dependências de nossa empresa ou nas alheias, transformamos em produtos que serão usados ou comercializados. Com isso, evoluímos, acumulamos riqueza, diversificamos nossas atividades. Ao fim, como se passássemos pelo crivo de alguma conceituada publicação financeira, responsável por avaliar ano a ano as empresas mais promissoras, contamos o quanto lucramos desde o princípio – e chaga-se a um vencedor. Mas, curiosamente, vejo uma diferença nesse jogo em comparação a outros: mesmo que não vença, o jogador deve ficar satisfeito com o seu desempenho, em especial se foi superior às últimas partidas que disputou. Vale o processo consolidado. Este é um jogo em que abdicar da obrigação de vencer em favor de jogar bem promove uma experiência de grande valia. Talvez por isso o modo solo, que erroneamente muitos condenam, não estabeleça critérios de vitória. Se o propósito do jogo é acumular riqueza – essência do Capitalismo – o sentido é ser cada vez mais rico a cada nova partida. Teremos certeza, assim, de que estamos melhorando e refinando o nosso talento para as atividades comerciais propostas pelo jogo. Daí porque também não há a definição de um vencedor em caso de empate: todos celebram a vitória. Mais coerente que isso impossível!
Boa parte de minha empolgação com Le Havre veio de tal aspecto: desse sentido de experiência em detrimento da disputa, mesmo da vitória. Vencer por vencer, eu jogaria apenas os jogos em que meu desempenho é realmente alto. Mas Le Havre oferece mais. Coloca-nos frente a frente com um mundo que necessariamente não é o nosso, nos obrigando, por nós mesmos, a nos tornarmos plurais. As decisões que tomamos ou os impasses com os quais nos deparamos ao longo do jogo não são diferentes daqueles enfrentados pelos comerciantes e empresários do tempo de Le Havre e mesmo do nosso tempo. Em escala muito menor, de simples diversão e prazer, mais ainda assim valiosa, por mais ou menos duas horas, somos o que não somos, agimos como raramente agimos, nos tornamos quem jamais imaginamos ser; corremos riscos, lamentamos uma decisão que não foi a mais adequada e resultou em perdas, nos alegramos com a escolha que afinal promoveu bons lucros e nos fez avançar. Em suma, experimentamos um cadinho mais de vida diferente da nossa. E, se formos ao fim o mais rico de todos os ricos, a satisfação é ainda maior. Não, esse não é um benefício pequeno. Pelo contrário: Le Havre consegue aliar à sua mecânica extremamente simples uma experiência caudalosa. Promove, ainda, uma Segunda Experiência, como costumo dizer, que é a capacidade que alguns jogos possuem de nos projetar para além do jogo em si, no seu tema, nos permitindo “viver” no cenário e na representação ficcionais oferecidos. Os navios que chegam e despejam sua carga, o vaivém de produtos, as empresas que são construídas ou compradas para aumentar tanto a aquisição de matérias-primas quanto a produção de manufaturados, os navios que se acrescentam ao patrimônio da empresa, vendas e revendas, exportações etc. Todo um mecanismo mercantil e industrial, acrescido de nuances e pormenores de diversificada natureza, permite-se funcionar – e muito bem azeitado. Talvez dois ou três acréscimos o deixassem perfeito em todos os sentidos, mas, para isso, a expansão oferece 4 cartas vazias, de modo que possamos criar a nossa fração de suprimentos, em prol das nossas eventuais necessidades no curso das partidas.
Le Havre é tão poderoso no desenvolvimento do seu tema, que torna inevitável que julguemos todos os demais jogos econômicos pela sua régua de excelência, o que pode se tornar desastroso, pois os jogos devem ser avaliados pelo que são e não pelo que poderiam ser. Joguei recentemente o Carson City, que é um jogo excelente, mas que, em comparação com Le Havre, perde em muitos furos, como diria Guimarães Rosa. Um dos motivos é que todo o dinheiro acumulado no jogo é para a compra de pontos de vitória ao final da rodada e da partida. Ora, no Velho Oeste, os homens mais poderosos da cidade eram exatamente os mais ricos. Transformar dinheiro em pontos de vitória num jogo que é uma representação da vida em uma das mais icônicas cidades do Velho Oeste tem o mesmo sentido de paradoxo que, durante a sessão de uma peça teatral, fazer o dramaturgo entrar no palco e dizer para a plateia: “Eu inventei essa história”. Aliás, esse é um dos maiores equívocos de muitos dos jogos classificados como euros: revelar, no próprio sentido do jogo, uma incoerência com seu tema. Daí porque muitas vezes diz-se que o tema é postiço, ou arranjado, e poderia ser qualquer outro, à livre escolha.
Em mais ou menos um mês joguei mais de 50 partidas de Le Havre. 95% no modo solo. Meu melhor desempenho foi de 346 francos. O pior, 187. Como ocorre na existência humana, o jogo não depende só de nós. Aprendizado, experiência, conhecimento, tino comercial, raciocínio, intuição e inúmeras outras habilidades não são o bastante. Contingências as mais variadas influenciam, e em Le Havre três setores do tabuleiro contribuem para isso: a trilha de ofertas portuárias, as três pilhas de cartas de propriedades e os Edifícios Especiais, que entram no decorrer do jogo. Os três setores se estabelecem pelo acaso e, assim, municiam ou minam fortemente o nosso desempenho, para o qual, então, não basta uma estratégia específica, previamente definida ou implantada ao longo das rodadas. Madeira e argila num primeiro momento, ferro, tijolo e aço num segundo, hulha e coque sempre, comida (remuneração de pessoal) e navios o mais rápido possível são as nossas necessidades. Se focarmos num ou noutro item apenas e nos descuidarmos dos demais, o desequilíbrio, talvez o fracasso, será inevitável. O jogo é fácil, mas rico em nuances e pormenores, o que nos deixa sempre aquém de um possível, mas improvável, propósito de dominá-lo.

O modo solo é digno de elogios e algumas observações. Primeiro, a experiência que ele oferece é a mesma, exceto pelo fato de que o trabalho é redobrado: somos os únicos a construir os edifícios que, apropriadamente, abrirão caminhos, por conseguinte novas possibilidades, sem as quais o jogo não avança; ou seja, turno a turno, temos que construir mais e mais, se quisermos evoluir comercialmente, criar uma frota de navios e alimentar o nosso pessoal; se a carta “Cais” (que a rigor deveria se chamar “Estaleiro”) calhar de ser uma das últimas de uma das pilhas, bem como a “Olaria”, não duvide de que sua riqueza ao fim será menor, a não ser que, porventura, alguma carta de Edifício Especial favoreça-o a reparar a escassez de tijolos e a impossibilidade de usar o “Cais”, que é, tematicamente, como se estivesse desativado ou ainda em construção. Portanto, superar o seu recorde sempre e sempre não será possível. E contente-se com pouco mais de 200 francos de riqueza ao fim, pois esse já é, sem dúvida, um considerável desempenho.
Segundo, as observações acima não são em detrimento do jogo, pelo contrário: são a evidência de um mecanismo em perfeito estado de funcionamento com a representação do seu tema. Tanto no modo solo quanto no coletivo, essas contingências representam as dificuldades circunstanciais que regem as sociedades humanas. Lembremo-nos apenas de quatro fatos capitais, desde o século XX até a nossa época: a Segunda Guerra Mundial, a alta do preço do petróleo nos anos 1970, a Globalização da segunda metade da década de 1990 em diante e a pandemia de Covid-19 em 2020. No contexto destes quatro eventos havia uma configuração socioeconômica em vigor e que drasticamente foi alterada. Em Le Havre, como afirmei antes, as cartas são as responsáveis por tais contingências, ao passo que outras dependerão do desempenho do próprio jogador enquanto lida com aquelas primeiras. Em suma, não existe em Le Havre nenhuma estratégia prévia e eficaz, consolidadora de uma possível vitória; existe, sim, adaptação constante, o “jogar com a realidade”, com o que se nos oferece, turno a turno, e conforme lidamos com o organismo quase vivo que constitui esse jogo.
Por fim, discordo quanto à afirmação tácita de que as cartas “Serraria” e “Mercado Negro” não entram em jogo”, na partida solo completa; não só entram como começam entre os Edifícios Iniciais. Reza o manual: “Qualquer carta que não tenha um tique ao lado da quantidade apropriada de jogadores é removida do jogo. Exceção: se uma carta tem um texto que diz ‘Início’ ao invés de [sic: gramaticalmente o correto aqui é “em vez de”, “em lugar de”] um tique, ela é colocada com os 3 Edifícios Iniciais”. Ou seja, no espaço referente a 1 jogador, as duas cartas não trazem nenhum tique, apenas a informação “Início”, portanto elas devem começar entre os Edifícios Iniciais, tanto na partida reduzida quanto na completa. Já na carta “Mercado” há duas informações específicas, que a destinam diversamente para: 1) figurar entre as cartas de Edifícios Comuns na partida solo completa, e 2) compor os Edifícios Iniciais na partida solo reduzida. Adianto que a partida solo completa sem essas duas cartas – “Serraria” e “Mercado Negro” –, como propõem equivocamente alguns jogadores, não oferece grandes possibilidades de expansão comercial e industrial, o que estaria completamente em desacordo com a essência do jogo, exceto se o modo solo tivesse como objetivo a vitória, “jogássemos contra o jogo”. Não é o caso. Tanto na partida solo quanto na coletiva o objetivo é um só: tornar-se mais rico! No modo solo, tentamos enriquecer mais e mais a cada nova partida; no coletivo, devemos ser o mais rico dos ricos e, assim, alcançar a vitória.

Chegou talvez o momento de concluir… Mas antes é necessário avaliar o manual, ao menos o da versão brasileira, pela Ludofy. Deixemos claro que nem sempre se deve julgar tão rigorosamente um manual, pois, a depender do jogo, do seu caráter intuitivo, o manual torna-se um simples roteiro de ações e tira-dúvidas. Em Le Havre, todavia, o manual é muito importante, uma vez que não se pode jogá-lo com precisão sem uma leitura acurada das regras e que não deixe dúvidas. Primeiramente, o manual em português está cheio de erros gramaticais, o que me deixa seguro para afirmar que não sofreu a revisão devida ou que esta, se houve, não foi muito exigente; as cartas também têm erros crassos em suas legendas, que, no entanto, vou me eximir de comentar. Segundo, salvo a exígua informação na lista de componentes sobre a expansão Le Grand Hameau (e a algumas misteriosas cartas bônus!), não há mais qualquer referência à mesma em todo o manual. Suponho que esta expansão deva trazer alguma espécie de menu, ainda que conciso, acerca do seu propósito no jogo… E, se a Ludofy a acrescentou ao jogo base, deveria, de alguma forma, incluir também o seu “manual” ou talvez inserir no manual geral as informações mais importantes para o seu uso correto. Não basta ao jogador simplesmente baralhar o maço e sortear até seis cartas e colocá-las no setor de Edifícios Especiais. Há, inclusive, cartas que não funcionam com certa quantidade de jogadores… Mas, de minha parte, pergunto: e se a edição já veio assim da casa publicadora original? Então caberia à editora brasileira dar o máximo exemplo de profissionalismo e seriedade (afinal é o que se espera de qualquer editora): deveria interferir no manual! O certo é que a edição da Ludofy me pareceu destinada a quem já conhece o jogo, o que, sem embargo, é um equívoco, já que, uma vez posto à venda, o jogo é para qualquer pessoa, como eu, que cheguei a Le Havre pesquisando jogos cujo tema fosse do meu interesse – neste caso, economia naval ou portuária. Um manual deve se bastar a si mesmo, eis a verdade. Não deve carecer de interpretação, exegese ou vídeos explicativos.
Bem, vamos afinal à conclusão… Que mais dizer de Le Havre? Fica a critério de cada jogador dizer o que quiser, conforme o grau de experiência que alcançar. De minha parte, exalto o seu paradoxo: um dos jogos mais fáceis de aprender e jogar, ao passo que é também um dos mais profusos e completos em sua essência. Mas claro que isso é a minha experiência. A sua talvez seja bem diversa.
Mayrant Gallo é professor, escritor, boardgamer e sócio da Invasion BG. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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