Papai Borg com dois filhotes
Wargamer adora um jargão. Não é “token”, é “counter”. Não é “tabuleiro”, é “mapa”. Não é “estrutura das rodadas”, é “sequence of play”. Não é “mecânica”, é “sistema”.
Um sistema, na verdade, é simplesmente um conjunto de elementos (mecânicas, componentes, etc.) que se repetem, com algumas variações, dentro de uma série de jogos. Um dos sistemas mais populares atualmente é o COIN, que inspirou o jogo Root. O sistema CDG, criado por Mark Herman no jogo We the People, é o mesmo utilizado no best-seller Twilight Struggle. E por aí vai.
Neste episódio atrasadérrimo de AVFdE (peço desculpas aos meus cinco corajosos leitores pela prolongada estiagem), vou tratar do sistema Commands & Colors (daqui em diante, C&C), criado por Richard Borg em 1999 e que já comporta mais de dez jogos e dezenas de expansões.
O sistema C&C tem vários méritos, e vamos falar de todos eles. Porém, eu acredito que o grande valor destes jogos está na sua simplicidade, o que os torna uma excelente porta de entrada ao mundo dos wargames. São jogos rápidos, divertidos e acessíveis, com temas que vão de goblins (sim) a samurais, passando por legiões romanas, naves espaciais (sim!) e paraquedistas da Segunda Guerra Mundial. Tem pra todos os gostos. São jogos que agradam tanto aos civis quanto aos grognards mais empedernidos.
Já ouviu falar de Memoir ’44? É um C&C, o mais popular de todos. E BattleLore? Outro C&C, também bastante popular. Entre os wargamers de carteirinha, Ancients e Napoleonics são as versões mais incensadas. Mas há outros menos conhecidos que não devem nada aos mais populares.
“Marcius, chega de embromar. Comece a falar dos jogos”. Vou começar e não vou parar mais. Senta aí que vem textão. Mas então: quais são as características que definem um C&C? Vamos a elas.
1. HEXÁGONOS
Todo C&C é jogado em um mapa composto por um conjunto de hexágonos (a unidade básica de lugar em trocentos wargames, aliás), na maioria das vezes dispostos em um esquema de 13 hexágonos horizontais por 9 hexágonos verticais. Esse tabuleiro é atravessado verticalmente por duas linhas verticais, o que forma três áreas distintas, chamadas de flanco (ou ala, ou seção, ou lado, como queiram) esquerdo, seção central e flanco direito.
O mapa de C&C: Medieval em toda a sua estupenda complexidade (versão do Vassal)
Os flancos direito e esquerdo sempre são definidos em relação ao jogador: Os jogadores se sentam um de frente pro outro. Dessa forma, o meu flanco esquerdo no mapa é o flanco direito do meu adversário, e vice-versa. Da mesma forma, sempre que suas unidades tiverem que recuar, elas têm que se mover pra trás, na sua direção, e nunca pros lados ou na direção do seu adversário (se você não puder recuar, você provavelmente está em apuros).
2. TILES DE TERRENO
O mapa básico é bem secão, como visto na imagem acima. O que traz vida ao jogo são os tiles de terreno, que são dispostos de acordo com o cenário que vai ser jogado.
Tiles de terreno (dã)
São exemplos de tiles de terreno: bosques, estradas, colinas, cursos d’água, pontes, etc. Eles interferem na movimentação das unidades, no estabelecimento da linha de visão e na eficácia do ataque ou da defesa durante o combate. Falando em...
3. CENÁRIOS
... eles são outra coisa comum a todos os C&C. Pra quem não é do métier, um cenário é uma batalha ou uma campanha específica que um wargame tenta simular. Um jogo com vários cenários oferece opções e variedade aos jogadores. Por exemplo: um único jogo sobre a Guerra Civil norte-americana pode ter um cenário sobre a Batalha de Gettysburg, outro sobre o cerco de Vicksburg, outro sobre a Batalha de Antietam, etc.
Desembarque em Omaha Beach em andamento
Cada jogo base de C&C oferece cerca de 15 cenários, que podem ser jogados isoladamente ou em sequência (o que chamamos de “campanha”), e a maioria deles pode ser jogada em cerca de uma hora. O cenário estabelece, entre outras coisas, em que hexágonos as unidades de cada jogador começam o jogo; a posição dos tiles de terreno; e a condição de vitória que definirá o vencedor.
4. COMMAND CARDS
Todo C&C vai ter pelo menos um deck de cartas de comando. Gerenciar essas cartas é o coração do sistema. Cada jogador vai ter uma mão de cartas (algo em torno de cinco, mas pode variar), e seu turno consiste simplesmente em jogar uma delas, fazer o que a carta permite e comprar uma carta para repor a mão ao final do turno. Simples assim. Há dois tipos de cartas de comando que sempre estão presentes nos C&C: cartas de seção (que permitem a ativação de unidades em um ou mais dos três setores em que o tabuleiro é dividido) ou cartas de tática (que permitem jogadas especiais que não são possíveis com as cartas de comando).
Cartas de seção e de tática em BattleLore
Uma carta de seção, por exemplo, vai permitir que você ative três unidades do seu flanco esquerdo. Uma carta de tática vai permitir que você ative quatro unidades de cavalaria em qualquer lugar do mapa. E por aí vai.
5. UNIDADES
O conceito de unidade é importantíssimo nos C&C. Uma unidade é representada por um conjunto de figuras (miniaturas de plástico ou blocos de madeira, dependendo do jogo) iguais (entre uma e quatro). Uma unidade de infantaria em Memoir ‘44, por exemplo, é composta por quatro miniaturas de soldadinhos. Uma unidade de elefantes, em C&C: Ancients, é formada por dois blocos de madeira. Nos combates, para cada dano que uma unidade recebe, ela perde uma figura (miniatura ou bloco). Logo, no caso da unidade de infantaria do exemplo acima, são necessários 4 danos para eliminá-la completamente.
Uma unidade da infantaria francesa (com 3 blocos) se prepara para um corpo-a-corpo
com a cavalaria inglesa (com 2 blocos) em C&C: Napoleonics
Cada vez que você varrer do mapa uma unidade inimiga, você ganha um ponto de vitória. O jogo termina quando um dos jogadores atinge um número determinado de PVs, dependendo do cenário (há outras formas de ganhar PVs, mas a principal é passar fogo no inimigo). Não é simples?
6. DADOS DE COMBATE
Finalmente, todo C&C tem dados que resolvem os combates. Unidades mais poderosas rolam mais dados – quanto mais dados você rolar, maiores serão as chances de acertar o adversário. Esses dados normalmente têm faces que representam os tipos de unidade no jogo (um canhão representando artilharia, um tanque representando blindados, etc.), além de faces com bandeiras (que forçam a unidade atacada a recuar); com um símbolo coringa (uma espada, por exemplo), que serve para atacar qualquer tipo de unidade; e uma face que representa um líder (normalmente um elmo), uma unidade especial que oferece benefícios para as unidades que o acompanham.
Os belos dados de combate de BattleLore; um jogo sem dados é um jogo sem VIDA
De uma maneira bem simplificada (as regras ficam mais elaboradas, dependendo do jogo e do tipo de combate), se você está atacando uma unidade de infantaria, você causará um dano para cada resultado com um símbolo de infantaria. Gente, é simples demais.
Essas são as principais características do sistema. Você vai encontrar os elementos acima em todos os C&C que você jogar. Porém, cada jogo vai trazer peculiaridades que vão torná-lo mais simples, menos simples, e navegando pelos diferentes temas e mecanismos você com certeza vai encontrar sua praia. Tem tudo que é tipo de tema que você imaginar.
Don't Tread On Me!
O primeiro jogo do sistema, Battle Cry (1999), é o mais simples de todos. Cada jogador assume um dos dois lados que combateram na Guerra Civil: o exército da União, ou “ianques”, e o exército confederado, ou “rebeldes”. As figuras são representadas por miniaturas (a regra até agora tem sido: quando o jogo tem a expressão “Commands & Colors” no título, usam-se blocos de madeira; nos outros casos, são usadas miniaturas de plástico). O jogo conta com 15 cenários, representando várias batalhas da Guerra da Secessão, o que proporciona uma excelente variabilidade entre as partidas. Battle Cry teve uma versão de aniversário lançada em 2010, registrando os 150 anos da Guerra Civil.
Pra cima dos chucrutes
Em 2004, Richard Borg lança Memoir ’44, um dos wargames mais populares de todos os tempos. As miniaturas provocam ondas de nostalgia em muitos marmanjos: elas se parecem com aqueles soldadinhos de plástico que aparecem em Toy Story. O jogo base trata das batalhas entre aliados e alemães na Segunda Guerra Mundial, do desembarque na Normandia até a Batalha do Bulge, na virada de 1944 pra 1945. O tabuleiro tem dois lados: um com praia e outro só com terra. O pessoal abusa da criatividade: em um dos cenários, pra definir a posição inicial dos paraquedistas no mapa, você literalmente os lança de uns 30 centímetros de altura em cima do mapa, e onde eles caem, eles ficam. O jogo tem mais de 30 expansões, que cobrem vários cenários da Segunda Guerra Mundial.
Detalhes de C&C: Ancients
Em 2006, surge o primeiro jogo com o nome do sistema: “Commands & Colors: Ancients”. É o favorito de muitos fãs do sistema: embora os wargamers curtam Battle Cry e Memoir ’44, em Ancients o sistema finalmente deu aquela encorpada que atingiu a perfeição. Continua sendo um jogo relativamente simples, de regras fáceis de serem explicadas; seu turno continua sendo jogar uma carta, ativar unidades, comprar uma carta; os cenários continuam durando por volta de uma hora. Mas Ancients, ao mesmo tempo, é um jogo que enche mais a barriga, mais satisfatório, mais “sério”, na falta de uma palavra melhor. As miniaturas são substituídas por blocos de madeira (marca registrada dos jogos da série que tem “C&C” no nome), que representam diferentes unidades com suas características peculiares de movimento e força de ataque. O jogo cobre um período histórico vasto, que vai de 3.000 a.C até 400 d.C. Aumentou a variedade de unidades em relação aos jogos anteriores; porém, esses tipos são agrupados em unidades leves, médias e pesadas, e cada uma delas é representada por um símbolo e uma cor (leves, círculo verde; médias, triângulo azul; e pesadas, quadrado vermelho). Esses símbolos estão nos dados: ao atacar uma unidade pesada, você causa um dano para cada resultado com um quadrado vermelho. A simplicidade na resolução dos combates é uma das marcas registradas do sistema.

Pra tchurma do RPG
No mesmo ano de 2006, Borg lança o mais diferentão dos jogos C&C: BattleLore, outro campeão de popularidade. O jogo é ambientado na Guerra dos 100 Anos, entre ingleses e franceses, que durou mais ou menos de 1337 até 1453. Porém, é uma história completamente reimaginada com elementos fantásticos: você vai lutar com anões, goblins, magos, aranhas gigantes, elementais e o diabo a quatro. Se você é do RPG, comece sua coleção de C&C por aqui. A edição original é da Days of Wonder; a Fantasy Flight lançou a segunda edição em 2013, e em 2010 saiu uma reimplementação do jogo, também pela Fantasy Flight, ambientando BattleLore no universo de Game of Thrones, chamada Battles of Westeros (feita por outro designer; não foi uma criação de Richard Borg).
I fart in your general direction!
Em 2010, surge Commands & Colors: Napoleonics, um dos mais adorados pelos wargamers, pois é um dos jogos do sistema em que as peculiaridades das unidades militares da época são mais bem transpostas para o jogo. Há algumas pequenas diferenças em relação aos jogos anteriores: os dados sofreram mudanças, as unidades perdem poder de fogo (rolam menos dados) quando sofrem dano (em Ancients, por exemplo, uma unidade que rola 2 dados no ataque continua rolando dois dados mesmo que seja reduzida a apenas um bloco), não há face de líder nos dados; mas, no geral, a experiência C&C permanece a mesma na sua essência. O tema, obviamente, são as guerras napoleônicas: o foco no jogo base é franceses versus ingleses, com as expansões acrescentando outros exércitos.
Eu curto os bloquinhos, mas OLHA ESSAS MINIS MANO
Em 2012, meio que na surdina, Borg lançou Samurai Battles pela Zvezda, gigante russa do mercado de jogos, brinquedos e miniaturas. Uma peculiaridade interessante é que é um jogo “dois em um”: com os componentes da caixa, você pode jogar a versão Commands & Colors do jogo, mas também joga um tal de Art of Tactic, que envolve escolha simultânea de ações. As miniaturas são muito bem feitas. Esse jogo será relançado pela GMT em 2021 como Commands & Colors: Samurai Battles, com blocos de madeira em vez de miniaturas, é claro – até onde eu sei, a GMT não trabalha com miniaturas. O jogo terá 30(!) cenários, um recorde absoluto em termos de jogos base da série.
Eu curto os bloquinhos, mas OLHA ESSE TANQUE MANO
Em 2015, Borg lançou pela PSC o jogo The Great War, um C&C ambientando na Primeira Guerra Mundial. É um jogo muito bacana, com miniaturas de tanques deslumbrantes (especialmente se você tiver a Tank Expansion). Os tiles de trincheira e terra de ninguém são posicionados aleatoriamente no início de cada cenário, garantindo batalhas sempre diferentes.
My precious...
Em 2017, a editora Compass lançou Commands & Colors Tricorne: The American Revolution. Se eu tivesse que manter apenas um C&C seria esse – não porque ele seja melhor do que os demais, mas pelo tema, que retrata um período histórico que particularmente me interessa bastante. O papel dos líderes é bastante destacado no jogo (como era na Revolução Americana): se um líder é morto, as tropas se apavoram e fogem correndo pra retaguarda, deixando sua dignidade pelo caminho. Além do deck comum a ambos os jogadores, cada lado tem um deck particular de cartas de combate, com cartas diferentes, o que reforça a assimetria entre ingleses e ianques. O jogo tem uma reimplementação, lançada em 2020 no Kickstarter também pela Compass, chamada C&C Tricorne: Jacobite Rising, sobre as batalhas do levante jacobita entre 1689 e 1746.
A caixa é feia, mas juro que o jogo é bom
A GMT lançou em 2018 seu terceiro volume da série: C&C: Medieval. O jogo traz as interessantes Ações Inspiradas, que podem acontecer quando há líderes envolvidos no combate e às vezes trazem reviravoltas marcantes numa partida. O jogo retrata as batalhas enfrentados pelo império bizantino nos séculos VI e VII contra sassânidas, mouros e outros povos, nas quais os bizantinos muitas vezes se viram forçados a evoluir e se adaptar aos métodos de seus inimigos (por exemplo, ao dar mais ênfase à cavalaria blindada, ou catafractários -- tome uma palavra nova pra você).
Ao infinito e além
Finalmente, em 2019, Borg perpetrou o malucaço Red Alert: Space Fleet Warfare, mais uma vez via Kickstarter. Sim, é isso mesmo, C&C rompeu as fronteiras da estratosfera e invadiu o espaço sideral, transpôs as barreiras temporais e adentrou o futuro. Os mais tradicionalistas pularam da cadeira, gritando “Blasfêmia! Heresia! Catástrofe!”. Já eu pensei: “Por que não?”. O sistema é do cara, ele faz o que quiser com ele. E é um sistema tão genial e flexível que, de fato, dá pra encaixar qualquer coisa aqui. Não vai sair um COIN ambientado em Marte? A maioria de nós vai viver pra testemunhar o primeiro ser humano colocando a patinha no planeta vermelho. Esse tipo de tema vai virar lugar-comum logo, logo. O futuro chegou: é melhor nos acostumarmos.
Já tem um C&C favorito? Se não tem, já escolheu o seu? Como vimos, tem pra todos os gostos. O mais importante é que todos os jogos da série têm em comum essa mistura perfeita de sorte, nos combates por dados, e estratégia, na gestão das cartas de comando. Isso, aliado a regras simples e partidas rápidas, torna a série Commands & Colors a porta de entrada perfeita pra esse maravilhoso universo dos wargames.