Pense num jogo feio. Ele precisa ter o tabuleiro feio, cartas feias, componentes feios e o dinheirinho de papel igualmente feio, parecido com aquela folha áspera e rosa de papel higiênico de rodoviária. Até aquele carinha desenhado na caixa, que deveria ser o galã do jogo, tem que ser tremendamente feio. Imaginou este jogo? Power Grid!
Calma, calma lá! Eu quero justamente explicar para vocês como é que um jogo conseguiu, de tão feio, dar choque (era este o seu objetivo)! Um choque de feiura para lá de real, como tentarei explicar no decorrer deste texto.
Em Power Grid, os jogadores figuram como empresários da indústria energética, participando de leilões de usinas, comprando os insumos necessários para a geração de energia, construindo suas redes de distribuição e obtendo os seus lucros proporcionais à quantidade de cidades que conseguirem iluminar. Parece simples, mas não é. Os leilões são disputadíssimos e gastar dinheiro demais nestes leilões pode te deixar sem recursos para comprar os insumos necessários à produção de energia ao fim de seu turno.

Estes insumos, que podem ser carvão, lixo, petróleo ou urânio, têm os seus valores de mercado constantemente alterados conforme a sua disponibilidade. Quanto mais o carvão fica escasso, mais caro ele fica. Logo, além de exigir um gerenciamento perspicaz de seus recursos e economias, uma análise constante da flutuação do mercado é fundamental. Conforme sua rede elétrica vai expandindo, você também precisará se desfazer de suas antigas usinas menos eficientes para investir em tecnologias que sustentem o avanço de sua rede, apelando, por exemplo, para usinas nucleares ou, quem sabe, buscando tecnologias limpas (geram energia sem necessidade de insumos).

Outra coisa extremamente genial em Power Grid é a disputa da ordem do turno. Ser o primeiro jogador é maravilhoso caso o seu interesse naquele momento seja fazer parte da vanguarda nos leilões, buscando comprar, antes de seus adversários, aquela mega usina dos sonhos que, finalmente, ficou disponível no mercado. Porém, a ordem de compra de insumos vai à revés da ordem de turno! Se você correu para ser o primeiro do turno e conseguiu adquirir, às mil felicidades, a usina dos seus sonhos, agora poderá chorar baixinho, pois verá todo o carvão necessário para o seu funcionamento ser comprado pelos seus coleguinhas antes de chegar sua vez!
Tem coleguinha que compra todos os insumos que você precisava só para te atrapalhar, sendo que talvez nem fosse a prioridade para a sua própria rede elétrica? Tem! Tem coleguinha que cria pontos de distribuição numa cidade qualquer só para te fazer pagar por quilômetros de linhas de transmissão para iluminar aquela cidadezinha de nome estranho quase esquecida no canto do tabuleiro? Tem! Tem de tudo, pois o jogo é de mercado, lucros, expansão de negócios, capitalismo selvagem. Aqui, a bondade é aquilo que jamais se espera!
No mundo dos negócios da eletricidade, outra coisa que não pode faltar é… feiura! Quem já teve a oportunidade de vivenciar a construção de qualquer empreendimento da indústria energética sabe do que estou falando. A feiura é sempre presente! No caso de uma hidrelétrica, por exemplo, o enorme rio que antes corria saudável, alimentando milhares de famílias ribeirinhas, proporcionava lazer, turismo e renda, passa a dar lugar a um ambiente morto, estéril, que às vezes chega a cheirar a morte, como o Lago Uatumã e as suas “cacaias” (um gigantesco cemitério de árvores inundadas), formado após a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas.

A paisagem, antes cativante ao cair da tarde, agora é agredida por um enorme paredão de concreto, tubulações coloridas, válvulas, turbinas, maquinários, barulho (muito barulho) e mais um monte de gente estranha e alóctone, como na caixa do Power Grid, zanzando de um lado para o outro nas proximidades. Hoje, a vida no Rio Uatumã é como a arte de Power Grid, e precisa ser criada em tanques artificiais para ser reintroduzida ao seu ambiente natural, para que o Uatumã continue respirando, ao menos “por aparelhos”.

As intermináveis filas de “cataventos” da energia eólica, tidas como “limpas”, também trazem um ar de feiura assustadora. As pequenas roças, de gente humilde e trabalhadora, que andava calmamente pelos lavrados trazendo comida à nossa mesa, desaparecem dando lugar a um deserto morto ocupado por gigantes torres que nunca saem do lugar (deixando conflitos fundiários e remoções forçadas, engrossando as fileiras de famintos nas cidades). Somem os muitos trabalhadores rurais e ficam um ou outro engenheiro de jaleco branco girando qualquer botão vermelho.
Às vezes, também tanto faz se aquela usina gera ou não gera energia suficiente para iluminar mais que uma pequeniníssima cidade. Se a sua compra der vantagens contra as concorrentes no mercado, independente da feiura gerada, da fome imposta, da esterilidade do ambiente e do risco de rompimento, o imperativo são os pontos de vitória. Vejamos a Usina de Pedra do Cavalo, no Recôncavo Baiano, local histórico por ter sido o berço econômico do Brasil. A usina deixou 20 mil famílias de pescadores e pescadoras artesanais passando fome, sem água doce, ao lado de uma barragem que abastece a capital, num estuário hoje morto, antes rico e abundante, alimentado pelo Rio Paraguaçu. De uma das pontes de ferro mais bonitas do Brasil, vemos um rio sem água e uma enorme muralha, como os muros de uma prisão. A sensação é nauseante, como encarar pela primeira vez o tabuleiro de Power Grid, principalmente por saber que à jusante da usina, padece de fome um caldeirão riquíssimo de cultura e comunidades tradicionais que têm em seus modos de vida a beleza e a leveza, ao contrário da feiura da indústria energética. Exemplos, temos aos milhões, de Itaipu, ao Sul, a Belo Monte, ao Norte do Brasil.

Por isto, não canso de dizer: Power Grid é feio, torturantemente feio, poluído de tubos, cidades amontoadas, redes caóticas de linhas de distribuição, lixo, carvão, petróleo, radioatividade, como não poderia deixar de ser…
Em Power Grid, a única coisa viva que se pode ver é o insosso engenheiro de sua capa, e nada mais! Em Power Grid, não se trabalha a descentralização da produção ou a pulverização de pequenas unidades de baixo impacto, estimulando pequenos negócios para a necessária produção energética. Em Power Grid, é a feiura dos grandes negócios, da voracidade do mercado e da concentração da grande produção em poucas usinas que dá a tônica do jogo. Milhões de reverências a Friedmann Friese que, sem querer ou não, nos deu um choque de realidade com tamanha feiura!
Em Power Grid, não fosse a sua feiura, alguma coisa errada teria com o tema. O jogo seria um esculachado embuste, uma infeliz impostura. Se Power Grid fosse lindo, não seria eletrizante, muito menos um dos melhores jogos que joguei na vida!
P.S.: Que venha o Feierabend (ou Finishing Time, como queira)!
Bruno Marchena é biólogo com atuação na área de ecologia de comunidades, apaixonado por pedagogia libertária e saberes de comunidades tradicionais. Fã de jogos infantis, jogos experts, de controle de área e alocação de trabalhadores.
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