A arqueologia clássica atinge o seu apogeu no século XX, com as grandes descobertas no Egito, na Grécia, Mesopotâmia, Índia, Oriente Médio, África, Ásia e nas Américas. Dos anos 1920 aos fins da década de 1950 não são poucos os avanços obtidos, bem como os tesouros. É, aliás, nesse período que vários livros de divulgação científica são publicados e alçam a arqueologia ao patamar de ciência capaz de despertar o gosto e o fascínio de um grupo maior de pessoas, que devoram com avidez páginas e páginas que descrevem as aventuras de arqueólogos e caçadores de tesouros, em meio às ruínas de civilizações antigas. Uma das obras mais populares foi, sem dúvida, “Deuses, túmulos e sábios”, de C. W. Ceram, publicada em 1949 na Alemanha, onde chegou a vender 300 mil exemplares, e foi traduzida em inúmeros países. No Brasil, a primeira edição é de 1953 e chegou, pelo menos, a 19 edições, talvez mais.
Paralelamente às missões científicas, capitaneadas por arqueólogos sérios, havia aquelas para as quais o mais importante era coletar tesouros. Ou seja, a arqueologia foi responsável também por uma espécie de corrida do ouro. Tudo era válido para se conseguir os preciosos mimos dos povos desaparecidos. Em geral, os colecionadores, já ricos, financiavam estas expedições espúrias e, com as descobertas, ficavam ainda mais ricos. Outra parte do que era coletado ia para os autônomos caçadores de tesouros, que a repassavam em troca de dinheiro àqueles mesmos colecionadores ou a outros, menos privilegiados.
Tikal, 2018, Conclave
É na interseção destas tendências que o jogo Tikal (1999), da dupla Kiesling e Kramer, se insere. Tikal é um daqueles jogos em que tudo faz sentido. Qualquer jogador inteligente, e que privilegie jogos que promovam raciocínio e exijam planejamento estratégico, vai se fascinar por Tikal. É, aliás, por isso que se tornou um clássico moderno, ao lado de outros jogos célebres, como Carcassonne (2000), Catan (1995), El Grande (1995) Power Grid (2004) e Ticket to Ride (2004).
Já deixei claro em textos anteriores que as mecânicas são para mim um simples meio para o jogo funcionar; jamais um fim em si. A melhor mecânica é aquela que desparece no fluxo do jogo, que se molda a ele, harmonizados ambos a tal ponto, que o jogador não tem mais consciência de que opera um mecanismo que o leva para adiante, no terreno do tabuleiro e na pontuação. Tikal é assim.

Começamos num acampamento coletivo, do qual partimos com nossa expedição. O objetivo: entranhar-se na selva em busca das ruínas e relíquias da misteriosa cidade de Tikal, custe o que custar. Encontrada uma pirâmide, ela é escavada e, talvez, conquistada, gerando pontos de vitória. Também artefatos valiosos são achados e coletados, os quais igualmente oferecem pontos de vitória, mas podem, através de uma ação de troca, mas que poderia muito bem ser chamada de “furto”, ir parar nas mãos dos membros de uma expedição adversária – o que é totalmente coerente com o assunto do jogo, já que entre os caçadores de tesouros (e talvez até mesmo entre alguns arqueólogos pouco honestos) não havia ética, nenhum respeito ao que o outro conquistara; valia a cobiça, o lucro que se podia obter. Obviamente que, no jogo, para que este “roubo” se concretize há regras, as quais julgo desnecessário comentar.
Os tesouros
Durante a jornada, às vezes, em lugar de ruínas e relíquias, os exploradores podem se deparar com vulcões, que interrompem o jogo e disparam a rodada de pontuação. Na realidade representada por Tikal, é aquele momento em que, diante de certa dificuldade, a expedição cessa suas ações e, sem alternativa a seguir, promove entre os membros a sessão de conferência do quanto já se tinha obtido. No âmbito da funcionalidade, é o momento em que cada jogador, na sua vez, tenta aperfeiçoar sua pontuação, o que é particularmente interessante, pois uma mesma pirâmide pode servir a vários jogadores.
O tile de vulcão
Alguns aspectos se destacam e são, neste jogo, diamantes entre pedras:
1) o fato de que, até que se tome posse da pirâmide, ela está livre, sendo usada por qualquer jogador que ali estabeleça a sua expedição;
2) a pirâmide, porém, pode ser conquistada, em qualquer estágio de sua escavação, basta que o jogador com maioria de membros suba ao topo da mesma, invalidando-a automaticamente para os demais exploradores;
3) o ideal é que essa conquista ocorra quando a escavação chegou aos níveis mais altos, cujo ápice é o nível 10;
4) por conseguinte, não é incomum que numa partida acirrada, mais cedo ou mais tarde, algum jogador afirme, orgulhoso: “Perco, mas chego ao ponto mais alto da pirâmide e a conquisto”; é como vencer sem vencer, um paradoxo sem dúvida, mas ainda assim consagrador, um bálsamo contra as incontornáveis feridas das derrotas.
No topo da pirâmide de nível 10
Quando o último hexágono de terreno é posto no tabuleiro, disparando a derradeira rodada de pontos, consequentemente o final do jogo, está então terminada a aventura. Tikal foi conquistada e limpa de tudo o que de mais valioso possuía. Se uma expedição desta natureza jamais chega a um fim, tantas são as camadas de História existentes em quaisquer sítios arqueológicos, em Tikal chega. E é isso que o transforma num jogo em tudo excepcional: vivemos uma aventura arqueológica do início ao fim, com resultados, o que nem sempre ocorre no mundo real da arqueologia, em que tudo é curso, processo, e dificilmente se chega a um termo, pois antes de qualquer coisa a arqueologia é uma ciência, e o que se descobre hoje é só um acréscimo ao que já existe, bem como um nicho que se abre para as descobertas futuras. Ou seja, um novo conhecimento obtido em arqueologia será sempre um trecho mais ou menos relevante de uma reta contínua.
Além disso, um dos elementos que fazem deste jogo um espécime raro é o que ele oferece aos jogadores com um mínimo de regras e componentes. Deveria ser um exemplo para muitos criadores, que se enganam – e a nós, jogadores – com a ideia de que muitos componentes e muitas regras promovem jogos complexos, profundos e desafiadores. No geral, criam jogos cansativos e maçantes – com algumas exceções, é claro, pois há jogos que, não obstante seus excessos, são grandiosos. O que em Tikal se destaca como um eloquente diferencial é a profusão de ações estratégicas que as poucas regras proporcionam. A bem da verdade, essa é uma característica dos clássicos, e já seria o bastante para que sentenciássemos que Tikal é um jogo notável, verdadeiramente luminoso.

O fato de ter sido criado em fins da década de 1990 impôs aos seus criadores um respeito à tradição então em voga e que demarcava o êxito comercial dos jogos de tabuleiro: originalidade temática, regras enxutas, de fácil memorização, e comedida quantidade de componentes. Tais características comparecem a jogos importantes da mesma época e de um pouco antes, como Can’t Stop (1980), Survive (1982), Catan (1995), El Grande (1995), Manhattan (1994), Kahuna (1998), Medici (1995), Canyon (1997) etc. A diversão se dá concomitantemente a um sentido de elegância e contenção. Nisso, Tikal é um dos exemplos mais consolidados e, de certa forma, seu lançamento instaura uma linha de transição, a partir da qual, ao lado de jogos mais enxutos, coexistirão jogos abarrotados de regras e componentes, os quais nos impõem um tempo excessivo tanto para prepará-los quanto para jogá-los. E então me pergunto (e isso é de cunho pessoal, jamais um juízo de valor):
1) Para onde vai o propósito de diversão, quando o jogo exige de mim, sentado a uma mesa, um esforço hercúleo? Prefiro correr 10km.
2) Como me divertir com um jogo cujo manual exige de mim uma fatigante exegese? Melhor ler “Os Lusíadas”, não?
3) O que devo fazer, enquanto a preparação de um jogo me consome quase uma hora, da separação dos componentes ao posicionamento dos mesmos no tabuleiro e em volta dele? Na verdade, já nem estou mais ali, penso em outros jogos…
A primeira edição, de 1999
O tabuleiro e os componentes da primeira edição
É contra tais evasões mentais que, no meu caso, Tikal se ergue e me fascina, como uma imponente pirâmide que, paradoxalmente, consumia muitas décadas e vidas, até ser terminada.
Se você nunca jogou Tikal, não perca a oportunidade. É um dos poucos jogos que eu (que não joguei “todos”, nem pretendo fazê-lo) credito como imprescindível. E, se isso não é o bastante, que seja a afirmação de que, na junção de mecânica e tema, é um dos poucos que nos respondem favoravelmente, com uma aventura que é, em tudo, uma representação perfeita de uma realidade só possível a bem poucas pessoas, uma vez que a profissão de arqueólogo não é acessível a qualquer indivíduo; mas em Tikal ela o é, pois, com a sua irretocável simplicidade, capaz de produzir ondas regulares de pensamento e raciocínio, tornamo-nos todos exploradores de um mundo misterioso e cheio de incidentes, no qual, bem ou mal, vamos totalizar os nossos propósitos. O fato de chegarmos à vitória é só um detalhe: sempre terá valido a pena o processo, que é, afinal, o sentido de tudo. Começar e terminar qualquer coisa seria bem enfadonho, não fosse o meio tão empolgante. Aliás, assim é a vida: nascimento e morte são somente uma certidão e uma lápide; o crucial é a linha que vai de uma ponta a outra. Pois bem, Tikal é essa linha, esse meio – o que não invalida a ideia de que, no-fundo-no-fundo, o que importa mesmo, para a maioria, é vencer.
Para o Fabrício Ferreira, que colocou Tikal no seu Top 3.
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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