Com uma série de lançamentos de 2019 ainda pautando as discussões do universo dos board games e com as especulações de lançamentos para 2020, venho resenhar sobre um jogo de 2018 que merece uma atenção especial. Estou falando de Rising Sun, onde a honra e as imposturas caminham sempre juntas. Se você está acostumado com aquele estereótipo do Japão feudal com Samurais e Daimyos de honras inabaláveis, se você espera encarar os seus adversários sempre com retidão, respeito e lealdade, se você está certo de que uma guerra se vence muito mais com espadas do que com a lábia, acredito que esteja num universo um tanto diferente de Rising Sun.
Em Rising Sun você representa um clã do Japão Feudal. Na caixa base, há disponíveis os clãs: Lotus, Carpa, Tartaruga, Libélula e Bonsai, cada um com poderes específicos, trazendo um toque de assimetria muito interessante para o jogo. Os turnos são representados pelas estações do ano, o jogo começa na primavera e finaliza no inverno, quando há somente a contagem de pontos. Você pode então se perguntar: só há então três turnos (primavera, verão e outono) em toda a partida? Sim! Mas calma… cada turno é subdivido em Cerimônia do Chá, que inicia todas as estações, sete fases de mandado político, três fases de adoração aos kami (divindades japonesas) e a última fase, a fase da guerra!
Na Cerimônia do Chá, os jogadores discutem se farão ou não alianças. As alianças só podem ser realizadas aos pares e, quando há um número ímpar de jogadores, Rising Sun brilha ainda mais, pois sempre alguém ficará sozinho naquela estação do ano (com cinco jogadores é perfeito!). Pode parecer sacanagem, mas a guerra é cheia de injustiças. Quem fica sozinho tem uma série de desvantagens, mas também não fica preso à obrigação de manter a honra em suas ações, podendo obter diversas conveniências mediante traições, blefes e evocando seres perversos da mitologia nipônica. Ficar sem aliança requer astúcia e a adoção de uma estratégia muito diferente em relação a dos outros jogadores.
Mas, caso não queira seguir o caminho mais escuso da guerra (se é que exista algum que não o seja), pode-se optar por seguir o jogo mantendo a honra e as boas relações para conquistar, quem sabe, um aliado durante as negociações da próxima Cerimônia do Chá. Um ponto interessante também em Rising Sun é que estar em uma aliança não é sinônimo de viver mil maravilhas, pois seu atual aliado, que tanto se beneficia de suas ações, pode ser o seu maior rival a partir da próxima Cerimônia do Chá. Não é incomum perceber que os planos de conquistas das províncias que o seu aliado está desenhando, passo a passo, coincide muito com o seu. Ou seja, treta!
Feitas ou desfeitas as alianças, cada jogador em sua vez escolhe, então, um mandado político que deverá ser realizado também por todos os demais jogadores. Esta mecânica de ações simultâneas traz mais um toque de tensão ao jogo, pois não se pode escolher os caminhos do seu próprio clã sem saber se aquela decisão política favorecerá também os seus inimigos. Esta mecânica dá também muito mais dinâmica ao jogo, pois não se gasta horas e horas aguardando todos os demais jogadores realizarem as suas ações para que você possa interagir na partida. A cada mandado político de cada jogador, você também realizará ações! Em Rising Sun não há folga: um olho sempre nas movimentações entre as províncias e o outro nos adversários (mas não deixe de direcionar aquele canto de olho para seu próprio aliado)!
Dentre os mandados políticos, cada clã pode colher recursos de seus territórios, adquirir monstros, virtudes ou melhorias (possibilitando a compra de cartas da estação que te darão uma série de benefícios ou pontos de vitória), recrutar tropas, mover seus exércitos ou então trair os demais clãs (quando duas unidades de outros jogadores voltam-se para o seu clã). Em Rising Sun, o diálogo e a negociação são livres e as moedas podem correr soltas comprando a ajuda dos demais jogadores (mas ninguém garante que eles cumprirão com suas palavras).
Intercalada às sete fases de mandado político, há também três fases em que os jogadores podem optar por enviar os seus guerreiros espirituais, os Shinto, aos templos dos grandes Kami, buscando receber importantes graças para a guerra. Nestes templos ocorre também disputa por influência de área, pois quem tiver enviado o maior número de Shinto receberá os benefícios daquela divindade. Rising Sun vem com sete divindades distintas, mas há apenas quatro templos no tabuleiro e os deuses que acompanharão os rumos daquela partida devem ser sorteados durante o setup do jogo. Com a expansão Kami Unbound (a qual considero a mais importante de todas), cada Kami é representado também por uma miniatura. O clã que tiver mais influência daquela divindade, a evoca também para os campos de batalha. Caso outro clã ultrapasse o nível de influência naquele templo, passará agora a controlar a miniatura do Kami nos campos de batalha.
Passada a Cerimônia do Chá, os mandados políticos e as fases de adoração aos Kami, ocorre, por fim, a grande batalha da estação. A tensão a cada mandado político vai crescendo à medida que a batalha se aproxima e que cada jogador vai contabilizando suas economias e suas forças para a guerra. Não há uma sensação de que os resultados estão bem definidos até que a estação do ano realmente termine. A sequência dos territórios a serem disputados na guerra também traz mais tensão à partida, pois é preciso gerenciar os seus recursos para as disputas vindouras e priorizar aqueles territórios estrategicamente mais vantajosos.
A mecânica da guerra é realizada através de um sistema oculto de apostas de moedas, no qual cada jogador pode resolver sacrificar heroicamente os seus soldados cometendo o seppuku (conhecido também como Harakiri), capturar um refém adversário, contratar ronins (samurais sem clã) ou então contratar poetas imperiais para escrever épicas estórias sobre os mortos em combate. Cada uma das ações traz um efeito final à guerra, aos pontos de vitória ou à trilha de honra, esta última decisiva para vários momentos do jogo. Este sistema de apostas é também um momento clímax do jogo, pois até que todos mostrem as suas apostas não conseguimos prever quem realmente cumprirá com os acordos, quem está blefando ou quem está guardando uma virada de jogo com uma estratégia inesperada. É necessário também gerenciar bem os recursos, afinal as apostas são feitas com as moedas ganhas na estação e inúmeras são as províncias que serão disputadas na fase de guerra.
Não gostaria de delongar sobre regras e mecânicas de Rising Sun, pois já há inúmeros canais com gameplays ou apresentando as mecânicas do jogo (menções honrosas à bela apresentação do Jack Explicador), mas convenhamos… guerrear a partir de apostas é genial! Apesar das diversas roupagens que uma guerra pode ter, qualquer disputa entre senhores não é, nada mais nada menos, que um grande negócio no qual as moedas valem muito mais do que as vidas que se perdem em ambos os lados. É essa a inevitável e terrível face de uma guerra.
Outro aspecto importante em Rising Sun são as diversas as formas de pontuação que dão um leque variado de caminhos para se vencer a partida. Pode-se pontuar conquistando diferentes províncias durante a partida, pode-se pontuar simplesmente mantendo a honra ao cometer seppukus em batalhas que serão certamente perdidas, capturando reféns dos clãs adversários, adquirindo aprimoramentos, virtudes e melhorias invernais, conquistando benesses dos Kami, usando habilidades de monstros evocados, recebendo benefícios pela honra ou colhendo recursos de seus territórios, por exemplo. Já estive em partidas que o ganhador praticamente não participou das grandes batalhas do jogo, pois preferiu gerenciar os seus guerreiros do clã de modo a migrar para longe das províncias de maior tensão e gastar toda a sua massa cinzenta para planejar outros rumos arriscados de se pontuar.
O que mais me fascina em Rising Sun é que, por ser um jogo muito temático sobre guerras, experimentamos sentimentos muitas vezes contraditórios durante a partida. Assim como em qualquer lugar do mundo, no Japão feudal os horrores da guerra não foram diferentes. E Rising Sun, de forma espetacular, aniquila qualquer romantização sobre o que é a guerra, trazendo para a mesa a realidade crua e peculiar dos tempos de conflito: um longo período de tensão política, negociatas, traições, gestão de recursos e de tropas, muita geopolítica e, quando necessárias, muitas e muitas batalhas. Em Rising Sun somos levados a negociar de forma ofensiva, a desconfiar sempre de qualquer acordo, a nos humanizar e desumanizar em questões de minutos, a engolir a seco as frustrações de termos caído em um engodo ou a saborear o desespero de perceber que ao ganhar gloriosamente uma batalha estaremos descapitalizados e arruinados para as disputas das próximas províncias.
Mas há que se ter cuidado com os perfis dos jogadores… De fato, experimentar Rising Sun não é para qualquer grupo. É preciso estar aberto para praticar livremente o budô da treta, sem levar para o coração os azedumes de estar em guerra ou sem temer trair e provocar o conflito com os demais jogadores, ainda que sejam pessoas queridas. Por pior que seja uma guerra, o que há de pedagógico em Rising Sun é pôr-se na incômoda situação de representar ou sofrer com as cretinices das politicagens e traições. O jogo exige uma extrema habilidade de ler e deduzir as movimentações dos jogadores adversários (e o aliado também, sempre!), de negociar, convencer, subornar ou conquistar a confiança dos participantes.
Rising Sun é uma excelente experiência lúdica que nos demonstra que em qualquer guerra, em qualquer contexto de tensão política, há sempre grandes e inevitáveis perdas, pois os senhores tomarão as suas decisões, contarão as suas moedas e, no fim de tudo, escreverão as suas próprias histórias através de seus poetas imperiais, enquanto nós, invisíveis, nos entrematamos e perdemos o que há de mais importante: as nossas vidas e as nossas boas relações, independente de que lado da fronteira elas estejam.
Pois bem… se você gosta de controle e influência de área, apostas, metagame, traições e, sobretudo, se você aprecia e suporta o magnífico budô da treta, corra para jogar Rising Sun! Sem sombra de dúvidas está entre os 10 melhores board games de controle de área, juntamente com gigantes desta mecânica, como Tikal e El Grande.
Bruno Marchena é biólogo com atuação na área de ecologia de comunidades, apaixonado por pedagogia libertária e saberes de comunidades tradicionais. Fã de jogos infantis, jogos experts, de controle de área e alocação de trabalhadores.