Entendam como quiser, mas isso aqui é um misto de desbafo com auto-crítica. Não estou falando de nenhum dos reviewers nacionais ou gringos em particular, mas de um modus operandi que me cansa mais e mais a cada dia. Retornarei a ele abaixo.
Quando o Jamey Stegmaier começou a divulgar o Tapestry, seu mais recente lançamento, a internet imediatamente se eriçou. Mal foi divulgado seu nome e o BGG já tinha lá uma pá de notas zero e notas 10. Vieram as primeiras imagens e logo sugiram os comentários sobre as virtudes e problemas do seu design. Quando saiu o manual, percebeu-se claramente que o jogo era quebrado, mal balanceado. Só que a coisa pegou fogo mesmo quando o Jamey enviou cópias dos jogos para alguns reviewers e determinou um prazo entre eles receberem os mesmos e divulgarem suas opiniões nas mais diversas plataformas. O que ele queria era que os caras de fato jogassem um pouco o jogo antes de emitirem suas opiniões. Isso foi a gota d’água. Estava ali decretado que aquele era o melhor pior jogo do mundo da última semana. Sabem o que é mais curioso? A gente sabe muito pouco ou quase nada sobre o jogo.
E qual seria o tal modus operandi? A simples necessidade de opinar sobre um jogo sem sequer tê-lo explorado. A indústria da produção de reviews.
Atentem à palavra que usei: explorado. Nessa frase, ela assume conotação muito diferente de “jogado”. Você sentar numa mesa com seus amigos e mexer meia dúzia de cubinhos para cá e para lá, jogar umas cartas e rolar uns dados, é de fato jogar o jogo. Simples, divertido, descompromissado. Explorar o jogo é outro negócio, é uma atividade muito mais analítica e comprometida. Você tem que observar o manual, a clareza das regras, se há algum problema com o layout ou a tradução. Você precisa se atentar à qualidade dos componentes e de que forma eles se integram ao tema proposto. Você precisa efetivamente jogar o jogo, tentando caminhos diferentes, os diferentes poderes variáveis e por aí vai. Uma vez tendo feito isso, aí, sim, você explorou o jogo.
A meu ver é muito temerário fazer um review sem que você tenha se permitido isso. Qualquer coisa que não atente a esses paradigmas é, na melhor das hipóteses, um compilado de impressões iniciais.
“Ah, mas eu já joguei mais de 18 mil jogos diferentes!”. Tá bom, mas sobre esse jogo especificamente, em que isso te credencia a glorificar ou destruir? Trata-se de um trabalho criativo com uma multiplicidade absurda de variáveis a serem analisadas e pensadas em contextos extremamente variados – o tipo de jogador, o cenário em que ele será jogado, qual o objetivo do designer ou da empresa com aquele lançamento.
“Ah, mas o Jamey Stegmaier só lança caça-níquel, o jogo só é bonito, superfaturado e não justific o preço!”. Tá bom, mas você já pensou que uma produção impecável pode ser importante para muita gente? Você já pensou que, para o trabalho criativo desse designer especificamente, a produção pode ser uma coisa indissociável da mecânica? Você já pensou que ele também está tentando conduzir um negócio e quer colocar um produto bonito na sua prateleira? Você já pensou que pode não ser o público dele?
“O Tapestry é quebrado feito o Scythe! Não teve playtest suficiente!” Para mim esse é o melhor argumento de todos. O cara joga 2 ou 10 partidas e fala isso. A menos que o cara tenha um computador quântico no lugar do cérebro é impossível ele sequer cogitar essa possibilidade. No caso do Stegmaier em particular, ele sempre foi muito aberto sobre a metodologia de teste de seus jogos. Ele nunca deixou isso de lado. Conduz muitos playtests abertos e fechados antes de fazer finalizar o produto. Eu tive a oportunidade de testar a expansão do Euphoria e posso dizer que o negócio é muito sério e bem aferido por uma série de métricas bem mais complicadas do que o simples achismo nosso.
Jogos de tabuleiro são sobre diversão, sobre boas experiências. Não creio que nenhum designer está por aí caçando o jogo perfeito. Eles querem fazer jogos legais que podem durar algum tempo ou vários anos.
O mais importante de um review é justamente passar esse feeling, se o jogo é bacana de se jogar, que tipo de experiência ele traz e por aí vai. Hoje em dia, com a expansão do nosso hobby, há muitas luderias que nos permitem ver o jogo com nossos próprios olhos, experimentar ele na mesa e, a partir daí, sabermos se aquilo nos agrada ou não. Faça isso. Sua primeira impressão é mais importante do que a de qualquer reviewer, nota no BGG ou qualquer outra métrica. Quer saber o mais chocante? Essa primeira impressão talvez seja tão embasada quanto aquela de muita gente que tem vários likes, retweets, curtidas e seguidores.
Sempre desconfie de um review que diz que um jogo é perfeito ou que ele deve ser queimado. Faça perguntas difíceis ao seu reviewer. Onde você conseguiu a cópia do jogo que usou para o review – foi enviada pela editora ou você comprou? Quantas vezes você jogou o jogo? Quais foram suas pontuações com a facção A, com a B e com a C? Você chegou a priorizar a estratégia de ir mais para cá do que para lá? Com quantos jogadores você jogou? E a leitura do manual, como foi? A tradução está boa em relação ao inglês? Há erros de português? Chegou a jogar com jogadores mais experientes e novatos?
Tem muita gente boa e séria fazendo review, muita gente que conhece jogo de mesa e tem boas opiniões, mas absorvam com cuidado esse mar de informações que tenta nos afogar todos os dias.
EDIT - 29/09/19 às 8:25
Muita gente ponderou aqui na postagem a respeito da questão do número de partidas para se fazer um review e as opiniões, no geral, foram de que não é necessário que se jogue várias vezes o mesmo jogo para se fazer isso. Jogadores experientes podem conseguir perceber mais do jogo com menos partidas e, portanto, estarem aptos a opinarem.
Confio num review de poucas partidas do
Victor? Sim. Confio num review de poucas partidas do
Rodrigo Neves? Sim. Confio num review de poucas partidas do
tiagovip? Sim. Confio num review de poucas partidas do
andrekohn? Sim. Por que? Basta que vocês leiam. São pessoas que tem muita propriedade para opinar sobre o jogo e que, apesar de poucas partidas, são capazes de enxergar muito de sua estrutura e virtudes. O review deve ser enxergado como o que de fato é, uma opinião pessoal e não mais do que isso.
OK, entendo o argumento e concordo, mas realmente tenho ficado preocupado com reviews feitos a toque de caixa por pessoas que os produzem em série para acompanhar a velocidade de lançamento das editoras. Como disse o
RaphaelGuri, a gente precisa de tempo. Estamos tentando dar a um produto analógico, uma escala digital, o que não é possível.
Reitero que esse tópico não é crítica a ninguém em específico, mas a um alerta a todos que consomem esse tipo de mídia.
Gostaria, ainda, de ressaltar a oportuna colocação do
Rodrigo Alves sobre o deserto de textos no espaço da estratégia. São raros os momentos em que esses aspectos dos nossos jogos são de fato debatidos. Está aqui uma ótima oportunidade para quem quiser produzir conteúdo de qualidade.
EDIT - 29/09/19 às 16:10
Sugestão do
Rodrigo Neves para a classificação dos reviews/análises:
Eu penso o seguinte... uma opinião minha, que com certeza muitos não concordarão. Existem tipos diferentes de conteúdo, produzidos com objetivos e para públicos diferentes. E cada um exige um nível de conhecimento próprios, mas todos tem a sua importância como conteúdo. Por exemplo:
Unboxing: Para quem deseja ver o tamanho da caixa, qualidade da produção ou conferir alguns componentes. Não necessita saber nada, só ter uma copia.
Gameplay ou Regras: Para quem deseja conhecer os principais mecanismos, como fica na mesa ou apenas ter uma visão geral do funcionamento. É preciso apenas saber as regras ou ter lido o manual.
Review ou Resenha: Apresentação geral do jogo, com detalhes de regras ou não (dependendo de quem escreveu), apontando impressões sobre a jogabilidade, duração, pontos positivos ou negativos, o que gostou ou não. É necessário jogar pelo menos uma ou mais vezes. Quanto mais experiência tem o resenhista ou número de partidas naquele jogo, mais relevantes ficam as impressões. Isto é inegável.
Análise: Estudo embasado da jogabilidade, comparando com outros jogos, avaliando rejogabilidade, utilidade de expansões, balanceamento ou estratégias. Para quem deseja uma opinião mais definitiva se ele vale ou não a pena, se é bom ou não ao seu perfil. Aqui sim, é muito importante ter jogado várias vezes o jogo, ter plena propriedade do que se afirma.
EDIT - 30/09/19 às 20:30
Ótimo comentário do
tiagovip:
"Usualmente quem dedica-se bastante a um jogo, costumeiramente não tem a mesma abrangência daqueles que jogam uma maior variedade de títulos, porém, menos vezes. Nisso perde-se capacidade de efetuar comparações, sugestões, e outros elementos muito relevantes aos quais as resenhas prestam-se. Profundidade não é igual qualidade - nem amplitude, que fique claro; porém, em minha experiência, tal amplitude sim permite captar pontos variados que apenas a profundidade pode ignorar."