Existe uma expressão em inglês chamada "guilty pleasure"(prazer com culpa). Ela é usada para denominar aquela coisa que você tem consciência que é ruim mas que adora assim mesmo sabe? É tipo adorar aquele pastelão do Adam Sandler no cinema, ouvir Funk/Sertanejo escondido, ou não perder um episódio de Dawson's Creek na TV. Mas é tão bom! Bem, eu não gosto de Adam Sandler, Dawson, Funk ou Sertanejo, mas Batman: Gotham City Chronicles virou o meu mais recente guilty pleasure.
E aqui, vai mais um desafio, como resenhar um jogo que, tecnicamente é fraco, mas na prática, é divertido pra caramba? Como passar por cima dos erros e problemas do jogo, como se eles não existissem, ou melhor, não me incomodassem, e no final, continuar recomendando o jogo? É isso que vou tentar fazer hoje. Mas antes de chegar nos defeitos, e por que eu gostei tanto do jogo mesmo assim, vamos começar com um breve overview.

A ideia de Batman, é te colocar em um cenário onde os vilões estão fazendo algo e os heróis tentam impedi-los. Por exemplo, o Espantalho pode estar tentando roubar o banco de Gotham, hackeando o computador para abrir o cofre. Os vilões ganham se conseguir terminar o 7o round com 3 computadores hackeados. Os heróis vencem se destruírem os computadores ou se os vilões hackearem apenas 2 ou menos. E aí, o resto, é movimentação tática, combate com rolagem de dados e resolução de testes com rolagem de dados. Você anda, bate, pula, destrói e testa coisas. Acho que o grande legal do jogo, é o COMO você faz isso: usando uma mecânica de alocação de pontos de ação (tipo Méxica, Tikal) que foi desenhado para o Kickstarter do Conan.
Cada jogador tem um player board com cubos vermelhos que significam ações. Cada cubo alocado pode significar 1 ação (nos casos mais simples como 1 movimento, ou ativação simples) ou 1 dado no teste de combate ou ativações complexas. Por exemplo, ao alocar 1 cubo no soco, a Batgirl (imagem abaixo) vai rolar 1 dado amarelo no ataque de perto dela. Já no alvo, ela tem 2 cubos, o que significa que ela fará um ataque de longe com 2 dados.
Isso é bacana por 2 coisas. Primeiro, a distribuição dos pontos de ação faz com que você se sinta tomando decisões táticas e estratégicas. Segundo, por que, por mais que você esteja dependendo da sorte dos dados, você tem como escolher quantos dados quer rolar, trabalhando com as probabilidades de conseguir os sucessos necessários.

Outra coisa bem legal, é a maneira como você gerencia esses cubos de ação. Por exemplo, se você quer ser capaz de defender, você precisa deixar cubos sobrando para rolar durante o turno dos Vilões caso seja atacado. Além disso, você tem uma decisão de passar o turno ativo recuperando apenas 2 cubos ou ficar inativo, apenas descansando para recuperar mais. Por último, os danos também são dados utilizando os cubos. Toda vez que você toma um dano, você joga um cubo para área de recuperação, e fica sem poder utilizá-lo, reduzindo sua capacidade de fazer ações no futuro. E o do outro lado, um jogador joga de overlord. Ou seja, ele controla todos os vilões, com um board que é um pouco diferente, mas utiliza os mesmos conceitos.
Todo esse mecanismo, é muito bom para um jogo que tem, como principio, ser um jogo tático. Adiciona uma certa camada um pouco mais estratégica de decisão, ou pelo menos parece isso. Então por que o jogo foi criticado por basicamente TODOS os canais estrangeiros que fizeram review dele? Bem, vamos lá.
A principal crítica do jogo está no seu manual. Ele é, de fato, horroroso. Ele é horroroso por vários motivos. Primeiro, ele é mal organizado. As coisas não seguem uma sequência lógica bem definida. Tem coisa que está apenas na regra do cenário, mesmo sendo uma regra meio que geral. Segundo, por que o jogo trabalha com uma iconografia que simplesmente não é óbvia nem tem explicação direito. Olha pro tabuleiro da Batgirl acima. Você consegue ver vários simbolos na parte interna perto das ações? Uma botinha com asa, um computador, uma caveira com um corte. O que faz cada uma dessas coisas? Não sei e vai dar um trabalho do cão para achar tudo o tempo todo, pois são 166 vilões e heróis, cada um deles com um set de habilidades único e diferente entre si. Por sorte, a galera do BGG já fez cartas de consulta para você imprimir, mas você está ligado que vai ter de fazer print-and-play de 166 cartas de consulta, frente e verso, para jogar esse jogo? O pior é que é essencial para jogar, pois sem isso, vai ser mais tempo consultando o péssimo manual do que de fato jogando.
Outro problema, ainda ligado a regras, é que, cada cenário tem regras e condições diferentes entre si. Essas condições, podem mudar ainda, se você estiver utilizando elemento das expansões. E são 32 cenários diferentes apenas no jogo base.
Na minha última partida, por exemplo, como estávamos jogando com jogadores experientes, alguns na sua 9a partida, resolvemos incluir a expansão da Mansão Wayne, com a Batcaverna e bem, já que estávamos na chuva, incluímos o Batmóvel. Durante o jogo tivemos de parar para reler as regras do cenários mais de 10x e até agora tem coisa que eu não entendi direito como funcionava. O Batmóvel? A gente ignorou e jogou como se ele não tivesse ali. Era simplesmente muita coisa para digerir, mesmo para os jogadores experientes, ainda mais com um manual que não ajudava a tirar nossas dúvidas. No meio da partida a gente lia o manual do cenário da Mansão Wayne, depois ia no Aprenda a Jogar para ver as regras daquela ação, e depois no Guia de Referências para entender os detalhes e exceção de 1 ação. Eram 3 manuais, todos com umas 30 páginas e nenhum índice. E não era incomum que, depois disso, ainda não tínhamos a resposta e tivéssemos de procurar na internet, as vezes, ainda sem sucesso. Foi um inferno.
Outro defeito, é a certa simplicidade do jogo. Ele é, bem simples. Parece que vai ser um jogo com tática avançada, como um wargame, mas na prática é um Dungeon Crawler de andar, das porrada e fazer teste. Parece que tem 8 ações para escolher, mas 2 são para testes e 2 para porrada, só muda o tipo de teste ou se a porrada é de perto ou longe. Do outro lado, você anda, se defende e gasta cubo para re-rolar dados. O jogo então, e vai ser forte o que eu vou dizer, é quase nível Zombiecide de complexidade. É um pouco mais, mas não muito. Até mesmo o Overlord, que adiciona uma inteligência por trás dos vilões, na prática, quase sempre se beneficia mais utilizando a estratégia do Swarn (enxame) onde ele junta vários capangas do mesmo estilo em cima de um vilão para detoná-lo.
E para por a cerejinha no bolo, existe o tempo de Setup. O jogo tem 166 heróis e vilões. Tem até um Dinossauro e uma Bat-Vaca. Cada partida vai usar meia dúvida de vilões e 3 heróis. Aí você tem que separar tudo, devolver o resto pra caixa e colocar cada um no seu lugar no cenário. O tempo de partida demora pouco mais de 1 hora. E o setup, pelo menos uns 20 minutos. A proporção não é das melhores. Como então eu posso, depois de tudo isso, dizer que ADOREI o jogo? Pois é né!

Bem, pra mim, metade desses defeitos podem ser contornados e os outros foram superados por algumas qualidades do jogo. Por exemplo, com relação ao manual, dá trabalho mas você aprende. Vai ter de imprimir as cartas de referência e ver uns vídeos de FAQ na internet, mas as regras básicas são bem simples. Dá pra explicar o jogo para alguém em coisa de 10 minutos. O importante aqui é que, antes de jogar o jogo, pelo menos uma pessoa estude os cenários que vocês vão jogar. Leia, tire as dúvidas e tudo, ANTES da partida. Assim, você não vai ficar de saco cheio de gastar mais tempo no manual ou BGG do que no jogo. Feito isso, o jogo roda super bem. Eu, por exemplo, tive a sorte de jogar com alguém que já estava na 7a partida. Foi mais fácil para mim pois ele já tinha passado pela maior parte das dúvidas. Outra coisa, é você marcar de jogar pelo menos uns 2 cenários por vez. Como eles são curtinhos, coisa de 1 hora, você aproveita que o setup demorado e já emenda 2 ou até 3 partidas sem problema. E tendo resolvido os problemas e as chatisses, vou dizer agora o que eu de fato GOSTEI no jogo.
A primeira coisa que para mim fez toda diferença, foi a questão do Overlord. Você está jogando contra uma PESSOA e não contra uma inteligência artificial faz muita diferença. Faz diferença na rivalidade, na imprevisibilidade e principalmente na tensão da partida. Você pensa em algo mas alguém pode achar uma falha na sua estratégia e explorar, coisa que, um adversário programado padrão, dificilmente faria. Já disse que, em geral, as estratégias não são tão variadas assim, mas o como e a ordem, pode até ser. Pode ser que, no final, o Overlord acabe jogando mais ou menos de formas parecidas, mas as pequenas variações que ocorrem, para mim, já ajudam muito.
Outra coisa que eu adorei no jogo, foram as questões dos diferentes cenários. Lembro até hoje, quando joguei Batalha dos Cinco Exércitos, que adorei o jogo a principio. Aquela batalha tática entre a Sociedade contra as Forças do Mal me conquistou. Mas depois de 3 partidas jogando com o lado das Forças do Mal, eu simplesmente me vi fazendo mais ou menos a mesma coisa sempre. O que mudava no jogo eram as rolagens de dado e variedade das cartas que saiam para mim. Eu me adaptava com o que vinha, mas a movimentação geral do cenário, era sempre igual. Aqui, para mim, está a melhor qualidade do Batman. Ao te apresentar 4 tabuleiros, com 32 cenários diferentes, apenas no jogo base, ele te dá a chance de jogar inúmeros jogos diferentes. No mínimo, 32. Você ainda pode jogar do lado do vilão ou do herói. Com isso, o jogo apresenta variedade nas partidas, ainda que, no mote geral, elas são de fazer mais ou menos as mesmas coisas: andar, dar porrada e resolver teste. Só de ter mapas e configurações diferentes, já mudam o desenrolar da história. E como o jogo já tem uma caralhada de expansão, você pode jogar ele para sempre.
Sem contar que, o cenário apresenta variação de terreno, de altura, linha de visão, etc, que vai lembrar a movimentação tática de um Imperial Assalt da vida. Sabe aquilo que eu reclamei do Jornada na Terra-Media? Então, aqui não acontece. O mapa pode até ser confuso as vezes, mas com 2 partidas você meio que já pegou. E pelo menos nisso, o manual tira as dúvidas bem de cada cenário.
Batman, é, então, um jogo que premia quem consegue jogá-lo várias vezes. Se você tem um grupo com 800 jogos que se encontra 2x por semana e joga 2 partidas, eu diria que não é um jogo para você, principalmente se considerar o elevado preço dele. Agora, se você tem menos jogos, ou grupos fixos dispostos a jogá-lo várias vezes, tipo, pelo menos 1x por mês, pegar um dia para jogar umas 3 partidas de Batman, aí, ele pode ser uma excelente opção. Hoje, todas as partidas de Batman que eu terminei, estava com vontade de jogar outra em seguida. E olha que eu nem sou fã de Batman. Metade dos heróis ou vilões que estão ali, eu nem conheço.
Batman então não é um jogo para jogadores de euro, que querem ações determinísticas, estratégias controladas e de longo prazo. Ele é um jogo para quem quer sentir a tensão de uma rolagem de dados, a emoção de vencer o adversário em uma ação inesperada ou de perder em um detalhe que não percebeu. É um ótimo jogo para se jogar em baixa ou alta contagem. Há inclusive expansões para um 5o jogador e para o modo Versus, que adiciona, aos heróis, um playerboard com mecanismo um pouco diferente, igual ao dos vilões.
Agora, se você é um grupo que curte Dungeon Crawler não complexos, se curte Zombiecide(eu não curto tá?), Imperial Assalt, e outros Dungeon Crawlers simples ou até mais complexos e quer um jogo que vai ser O jogo que você vai passar o próximo ano jogando todas as tarde de sábado, talvez essa seja uma opção que seu grupo deveria considerar.
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