AVISO: Texto NÃO CONTÉM SPOILERS. Todos exemplos utilizados são generalistas da minha cabeça para passar a impressão do jogo.
No final do ano passado eu me encontrei em um dilema de boardgames enquanto passava minhas férias de fim de ano em Santiago do Chile. Lá, na Entre Juegos, achei o Betrayal Legacy em ingles. E se por um lado eu sou Maria Campanha, por outro, eu não gosto do jogo base (Betrayal at the House of Hill) do qual o jogo se baseou. Foi então que, mais uma vez, o canal Man vs Meeple influenciou a minha decisão. Eu já havia colocado na cabeça que nessa campanha eu não iria me comprometer com 14 partidas de um jogo que não gosto. Mas aí, veio o MvsM e disse que Betrayal Legacy foi, não somente o melhor jogo do ano de 2018, mas também, uma das melhores experiências de Boardgame que eles já tiveram na vida. E por mais vendido que seja o canal, eu não imaginei que uma declaração tão forte como essa teria vindo apenas pelo patrocínio.
Seis meses depois, com alguns entraves pessoais no meio, eu terminei ontem minha campanha. E só posso dizer que é um daqueles jogos que você termina a partida querendo falar sobre ele, contar sobre ele para as pessoas e fazer com que elas joguem também. É para falar de jogos como esse que eu criei esse canal.
Betrayal Legacy é um jogo que vai além da sua mecânica. Eu diria até que a mecânica é o que menos importa nele. Ele é um jogo que conta uma história. Não em uma partida, como
eu falei em Nemesis, mas em uma campanha. Não vou dizer que é o melhor jogo de 2018 (ainda fico entre Brass e Detective nessa disputa), mas com certeza para mim, estaria ali no Top 5 do ano.
A ideia do Legacy, mecanicamente falando, é exatamente a mesma mecânica do Betrayal normal. Você tem uma casa, onde você anda por ela descobrindo cômodos onde acontecem eventos, coletando itens e encontrando presságios. Quando um número de presságios é atingidos, começa a Caçada. Em geral, um dos jogadores enlouquece e passa a perseguir os demais que precisam derrotá-lo. O jogo começa cooperativo e vira 1 contra muitos em algum momento. Nessa hora, em geral, o jogador que enlouqueceu vira o Traidor e vai para outro cômodo ler sua condição de vitória naquela aventura. Enquanto isso, os demais sobreviventes lêem, em outro livro (O diário dos sobreviventes), o que eles precisam fazer para vencer aquela partida. O que me faria não querer jogar 1 partida sequer de Betrayal at the House of Hill mas ter adorado jogar 13 + 1 prólogo de Betrayal Legacy? A resposta é simples: a história.
O jogo conta a história da casa. Você não é 1 personagem que vai evoluindo durante o jogo. Você é uma família, que durante quase 400 anos vai interagindo com aquela casa de alguma forma por inúmeras gerações e descobrindo coisas que vão além da sua capacidade de assimilar. O jogo começa em 1666 e vai até 2004 ano em que o jogo Betrayal é lançado e você é apresentado a esta casa mal assombrada por um grupo que tem o carro estourado e entra nela para pedir ajuda. Tudo o que acontece entre em 1666 e 2004 é o que vai dar à Casa, a forma que ela tem hoje. Mas vamos então ao que interessa: o que faz desse jogo especial.
Betrayal Legacy, cria uma narrativa como nenhum outro Legacy ou Campanha que eu já joguei: e olha que eu já joguei muitos. Durante muito tempo eu ouvi falar da narrativa que conduzia e fazia especial o Pandemic Legacy. Quando joguei, achei ela muito aquém do esperado. Minha sensação era de estar jogando o mesmo Pandemic sempre, mas com mini expansões que mudavam em quase nada a mecânica de uma partida para outra. Acho que o grande mérito do jogo foi ter feito isso primeiro, e de forma marcante. Quando tudo isso era mato, ele surpreendeu por fazer algo que as pessoas não esperavam e isso as marcou como experiência. Mas quando eu analiso aquilo HOJE, me parece uma narrativa um tanto quanto rasa.
No caso do Betrayal, talvez por ter saído 3 anos depois, quando o mercado de campanhas legacies já havia se desenvolvido, ou talvez pelo jogo original apresentar mais possibilidades pelo tema de terror e casa mal assombrada, a história é muito mais completa. O jogo dá uma impressão de estar vendo uma série mesmo, uma narrativa, do bem contra o mal. De pessoas que, por gerações e gerações tentaram impedir que um mal maior e definitivo surgisse ali. E você passa o jogo inteiro recebendo pequenas pílulas da história que vai se completando com o andar da campanha. Tudo o que acontece, acontece por causa da história. A mecânica é somente o meio de entregar isso.
Talvez por isso o jogo funcione tão bem. Cada partida pode ser de fato diferente uma da outra, e te fazer sentir diferente, mesmo você estando jogando o mesmo mecanismo todas as vezes. Se nessa geração você encontra um livro de rituais que abrem a porta para outro mundo, você tem que se juntar para fechá-la. Se em outra história você tem uma pessoa tomando uma poção preparada por uma bruxa, você tem de se juntar para matar essa pessoa antes que ela te mate. E se você está numa casa cheia de loucos ou cultistas querendo fazer rituais contra vocês, talvez você tenha de derrotar todas elas e ser o único sobrevivente para poder fugir. Isso faz com que você saia da visão comum de 1 contra muitos no Betrayal e passe a ter uma variedade de opções que melhor encaixe naquela narrativa específica. O jogo pode ser todos contra todos agora, ser todos contra o jogo amanhã, 1 contra muitos hoje e muitos contra 1 logo em seguida. Tudo se adapta muito bem a história que ele quer contar.
Ao longo do jogo, as coisas que vão acontecendo, vão ficando marcadas na casa. Se alguém morrer em um quarto, você marca isso ali para que haja interações futuras com os fantasmas daquele quarto. Se você tem uma missão de evitar um ritual com uma criança, e não consegue, agora, cartas de evento de uma criança que anda rindo pela casa passa a fazer parte do baralho de eventos e ela pode vir a te enlouquecer 250 anos depois em uma partida lá na frente. A cada partida, os fatos que aconteceram na sua história, são adicionados ao deck de cartas do jogos e viram, de alguma forma, eventos no futuro que vão lhe relembrar o que aconteceu na casa. Você está, de fato, construindo a história da Casa no Alto da Colina. Você passa a entender o que fez ela ficar mal assombrada.
Por ser um jogo que foca na história, ele não preocupa em lhe ensinar condições individuais de vitória ou derrota. Você anota a história da sua família em um livro, dizendo se aquele membro morreu, sobreviveu, qual foi o destino dele ou se ele foi o traidor ou não. Em grande parte do jogo eu desconfiava do que poderia acontecer mas eu não tinha certeza nenhuma de como, de fato, alguém ganharia o jogo. Eu sequer tinha certeza SE alguém ganharia o jogo. E nada disso me pareceu importante. Como o jogo é direcionado pela narrativa, assim que algum mal acontecia, os sãos se uniam para tentar vencer. Se eu tinha a arma sagrada que nos daria a vitória mas meu amigo tinha uma habilidade superior para utiliza-la nos dando mais chance de vencer, sem hesitar eu passava aquela arma para que ele selasse nosso destino. Afinal, era o que me parecia fazer mais sentido na história, e não necessariamente na mecânica, embora, a maior parte das vezes, essas decisões eram tomadas sem todas essas reflexões de história x mecânica. A diversão então se faz pela naturalidade com que você toma essas decisões.

Betrayal é então um jogo para quem quer imergir na história e se divertir. Ele não é perfeito do início ao fim. Ele tem alguns momentos que começa a parecer repetitivo, mas logo logo ele adiciona algo diferente que te conquista novamente na aventura seguinte. O jogo tem surpresas, mudanças, novas mecânicas e sensação de estar traçando um caminho único e cheio de escolhas, ainda que talvez, no final, te leve ao mesmo lugar.
Ele também é extremamente dependente de idiomas. Não apenas nas inúmeras cartas com texto e livro exclusivo da história do legacy, mas também nos livros de Traidor e Sobrevivente que cada um tem de ler separadamente para saber suas ações e condições de vitória naquela partida, após a Caçada começar. O jogo também tem, é claro, a barreira da importação, pois é uma caixa grande, pesada e com isso com valor elevado para trazer lá de fora. Mas se nada disso lhe é problema, aconselho demais embarcar nessa jornada.
E para aqueles que tem dificuldade de rasgar cartas, marcar objetos e fazer coisas que irão danificar o jogo para sempre, Betrayal Legacy é o jogo que melhor funciona como jogo stand alone após a campanha dentre todos que eu conheço. Se por um lado, eu nunca jogaria ele após 14 partidas da campanha, afinal, eu não curto o Betrayal sem a história, por outro, ele tem, praticamente, as mesmas mecânicas e possibilidades do jogo base em uma partida única, fora das campanhas. E com a vantagem de que os eventos que ali são disparados, fizeram parte da sua história com a casa, e vai lhe trazer lembranças de situações memoráveis que você vivenciou nas suas partidas.
Betrayal é então para aqueles jogadores que entram de cabeça na história e se divertem com ela. O jogo é ameritrash até a alma. Eventos aleatórios, resolução de testes por dados, conflito direto e imersão narrativa. Mas o que me cativou aqui, deferente de outros jogos do tipo, é que a história e a narrativa fazem com que o resto não seja tão importante. Do mesmo jeito que eu não assisto Bates Motel no Netflix querendo ganhar de alguém, mas sim por que quero saber o que acontece na história, eu joguei Betrayal querendo saber o que iria acontecer com a narrativa, com a diferença de que, aqui, eu participei da narrativa através de um jogo. Como se eu fosse um personagem do Bates Motel e vivenciasse tudo aquilo ao invés de apenas assistir. E talvez, por isso, ele tenha funcionado tão bem para mim.
E se você curtiu a ideia e quer informações mais detalhadas sobre o jogo, o Podcast Meeples & Nipples do @
Leandro Zombie tem um
episódio dedicado ao jogo aqui mesmo na Ludopedia. Aconselho muito a ouvir, e eles fazem uma parte inteira sem Spoilers e avisam, bem depois de uns 40 minutos, antes de começar a falar os Spoilers da Série.
Photos by Shut up and Sit Down
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Plot Twist para quem leu meu último texto sobre o 7th Continent (link abaixo). Depois de muito pensar sobre o jogo, eu pensei melhor e resolvi recomprá-lo e dar uma segunda chance. Tudo o que falei no texto é válido, mas talvez, jogando já com essa expectativa, o andar da minha partida e minha sensação em jogá-lo será diferente.