Ter uma obra consolidada como um clássico absoluto prejudica seu autor, pois uma criação máxima ofusca todas as demais de sua rica produção. Aconteceu com Gabriel García Márquez e Dino Buzzatti na literatura, com Anton Dvórak e Felix Mendelssohn na música erudita e, ao que parece, com Klaus-Jürgen Wrede nos jogos de tabuleiro. O seu Carcassonne (2000) está sempre à venda nas lojas e é jogado por milhares de pessoas semanalmente, em todo o mundo. Na Ludopedia, é um dos board games mais jogados, mês a mês. Seus admiradores se espalham pelo mundo, de norte a sul, leste a oeste. Há campeonatos e torneios locais, nacionais e mundiais. Tal condição impôs certo esquecimento a todos os seus demais jogos, inevitavelmente. E o epíteto emerge de todas as bocas: Klaus-Jürgen Wrede, “o criador de Carcassonne”.
Pois bem, pesquisando a totalidade de sua obra, achei um jogo que muito me agradou e que, com certo assombro, descubro que não goza do prestígio que merece. Claro que estou julgando pelo público brasileiro, e isso talvez seja muito pouco, mas a verdade é que The Downfall of Pompeii (2004) está confinado ao esquecimento. E é um jogo excelente! Um dos seus maiores méritos é ajustar o assunto (a noite em que o Vesúvio sepultou milhares de cidadãos pompeianos com sua lava, em 24 de agosto de 79 d. C.) ao mecanismo de desenvolvimento do jogo (as etapas que conduzem àquele ápice).

O jogo se divide em três fases: 1) repovoamento de Pompeia, depois do terremoto de 62 d. C.; 2) presságios, quando os primeiros cidadãos tornam-se vitimas do vulcão e morrem; 3) a erupção, cujo derramamento de lava obriga os moradores de Pompeia a fugir ou os conduz à morte. Acredito que poucos eventos históricos foram tão bem representados num jogo. O ajuste é tão perfeito, que mal se percebe que existe uma mecânica. Ou seja, que há um método ou meio que permite que algo se estabeleça e evolua. E é como num filme: quando nos concentramos em admirar a atuação dos atores ou os efeitos especiais, isso quer dizer que o filme como narrativa (representação da vida) deixa a desejar… Neste caso, se percebemos e admiramos a mecânica, é porque o jogo, no seu desenvolvimento temático, de certa forma fracassou. Em The Downfall of Pompeii isso não acontece: o jogo é um todo coerente e coeso.

E é preciso frisar que um jogo não é bom somente se introduz uma nova mecânica ou explora, por um ângulo novo, outra já consagrada. Claro que isso é um mérito, mas o é também usar uma mecânica existente, de um modo tal que a mesma desapareça no fluxo narrativo do jogo. Seja somente uma estrutura, uma forma, um fundo, o titereiro operando as marionetes.
Obviamente que devemos julgar este jogo pelo que ele é. Um erro fatal pode se originar da comparação simples, que não é senão a expressão de um gosto pessoal. O jogador que busca queimar os neurônios em busca de uma estratégia que o faça suplantar seus oponentes e vencer não deve sequer jogar The Downfall of Pompeii. Não é um jogo para isso. E, sendo assim, não devemos compará-lo a jogos dessa natureza. A sua natureza é outra: é o tipo de jogo que, no curso de sua narrativa, coloca os jogadores diante de uma situação limite e que o faz num crescendo de ação, até o clímax, quando enfim o último tile de lava é posto no tabuleiro e fecha o desastre. Além do mais, sugestiona o jogador a participar de um evento que foi um dos mais terríveis da história antiga e que, até o século XVIII, não passava de um mito, transformado em realidade quando as primeiras ruínas de Pompeia foram descobertas. É, nesse sentido, um jogo que partilha de um privilégio de que só alguns poucos jogos, o cinema e a literatura desfrutam: oferece-nos uma “segunda experiência”, um sentimento de participação, uma compreensão, uma aventura, um prazer que advém da nossa inserção no tema do jogo, e num grau tamanho, que vencer é uma questão secundária.

Mas não existe estratégia? Sim, existe. Durante a fase de presságios, o jogador que compre determinada carta poderá pegar qualquer cidadão e arremessá-lo dentro do vulcão, como uma simulação da morte pela lava, e com isso abre espaço para colocar nos edifícios mais cidadãos seus e de tal forma que abra possibilidade de alocar também mais “parentes”, e assim ter uma comunidade mais numerosa e ampla na cidade, o que levaria a aumentar suas probabilidades de, com mais sobreviventes, vencer o jogo. Mas também isso é contingencial: a lava pode atingir a todos, salvo aqueles que consigam fugir. Há então uma estratégia de fuga, uma “arte da fuga”. Quem a exercitar melhor vencerá.

Chegou o momento de concluir, e o faço cogitando que, se Carcassonne é o que é ─ um clássico, ainda que não goze da unanimidade característica dos clássicos ─, The Downfall of Pompeii merecia um lugar mais cativo no panteão dos board games modernos e especialmente um lugar ao sol: a admiração fiel de um número maior de jogadores. Mas compreendo o porquê, como compreendo que é também em solidão, amado por poucos, que alguns jogos sobrevivem.
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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