O conhecimento sobre a vida e o mundo se dá, ordinariamente, através de dois sentidos: o vertical e o horizontal. O primeiro é livresco e temporal; quanto mais lemos e vivemos mais aprendemos sobre a existência, o universo à nossa volta, as pessoas. O segundo é empírico, adquirido através do deslocamento no espaço, e se realiza, primordialmente, através das viagens, não importa se de um bairro a outro ou se de um país a outro país.
Edgar Alan Poe escreveu contos ambientados em Paris sem jamais ter visitado a célebre capital francesa. E suas descrições são tão convincentes, tão vivas, que poucos não levantariam a hipótese de que o autor americano foi um parisiense de passagem. Mas, se de fato ele tivesse vivido em Paris por um tempo, seus contos teriam adquirido um quê a mais – dois ou três pormenores que, mesmo nos livros, não encontramos e que só a vida in loco oferece: nuances do dia a dia, certos sentimentos oriundos do contato direto com as pessoas, uma atmosfera e cor noturnas, um tom de fim de tarde que é comum a todas as cidades, mas que também é singular em cada uma...
É desses detalhes que se reveste o jogo Tokaido (2012), do designer francês Antoine Bauza, um dos mais originais que joguei e que, por seu exotismo, causa certa estranheza no princípio. Durante 40 a 60 minutos, vencemos o trecho que liga as cidades de Kyoto (ex-capital e imortalizada num belíssimo romance homônimo de Yasunari Kawabata, Nobel de Literatura) e Edo (a atual Tóquio), num Japão antigo e rural. Durante o percurso, os viajantes desfrutam da beleza da paisagem bucólica, encontram outros viajantes, com os quais se confraternizam, chegam às lojas e adquirem objetos de arte, banham-se nas águas termais, visitam templos, provam de exóticas iguarias. A pontuação que conduz à vitória no jogo vem dessas atividades comuns a todos os viajantes pelo mundo afora, mas com algumas diferenças, é claro. Não há ações mirabolantes, nem tomadas de território, tampouco qualquer espécie de enfrentamento bélico, nada a cultivar, colher e vender, nenhum dado a rolar... Tudo é muito calmo e direto, para adiante.

Os jogadores se sucedem nos espaços da estrada, conforme as escolhas que fazem, e é nessas escolhas, melhores ou piores, que reside a essência do jogo, toda a sua estratégia. As decisões nunca são fáceis, e um erro pequeno aqui ou ali pode pôr tudo a perder. Outro aspecto curioso é que, se em outros jogos, economizar as moedas pode render pontos no final, em Tokaido o dinheiro só tem um único propósito: servir aos viajantes. Permitir que comprem lembranças, comam o suficiente, ajudem a um templo etc. Não ficar com dinheiro ao fim da jornada sugere que uma verdadeira existência em comunhão com o Universo não implica que se acumule riquezas. Incurável viajante, o poeta Bashô, dispara: “Deixem-me caminhar/até que tropece e desapareça/ na neve”. Este haicai é uma metáfora da existência sem apego, permanência ou expectativas, uma existência de acordo com o que a natureza oferece, seus elementos brutais, sua mutabilidade incontornável. O homem se adapta, a vida passa, e é tudo.
Platão defendia a obtenção de conhecimento através do diálogo constante entre as pessoas, bem como entre as pessoas e as coisas do mundo. É dialogando, discutindo e observando a realidade em torno que adquirimos experiência, conhecimento e nos refinamos. Aristóteles, por sua vez, afirmava que nada na natureza é tão insignificante que não valha a pena ser estudado. Nosso objeto de pesquisa primordial é a substância de todas as coisas. Ora, numa viagem como a proposta por Tokaido está a representação de uma viagem real, com tudo aquilo com o qual nos depararíamos, se a realizássemos verdadeiramente. Estamos “dialogando” com um mundo cuja substância é a mesma que nos anima. Nesse aspecto, é um jogo espetacular. Consegue a proeza de ser tudo com muito pouco.
Muito da cultura japonesa se sobressai em Tokaido. Desde as paisagens evocadas até o hábito de levar um mimo para alguém a quem se visita. Não raro, sentimos fome (ou vontade de comer) quando pegamos aquelas cartas de refeição nas estalagens. O jogo é, portanto, muito mais que um simples passatempo: constitui um mergulho no que o Japão preservou (ou não) e que, doravante, pode vir a se tornar parte da nossa existência. Sempre me recordo de um personagem da série Mad Man, que dentro de uma agência de publicidade fez de seu escritório uma fração do Japão, e onde qualquer pessoa, se entrasse, teria de tirar os sapatos. Meio irônico isso, já que é uma regra da publicidade supor que todos nós somos iguais e desejamos as mesmas coisas. Como no coração daquela agência, Tokaido é um cadinho do Japão dentro de uma caixa. Se a abrimos, desvendamos não somente um jogo, mas uma nação, com suas particularidades, seus hábitos e costumes.
Tokaido é um jogo de desempenho assimétrico já no seu início. A cada partida podemos jogar com um personagem diferente e único. São dez a escolher, cada um com uma característica que se sobressai, tanto quanto uma fraqueza que exigirá do jogador uma estratégia específica, se quiser enfrentar a contento os seus adversários (sempre diferentes também) e almejar a vitória. Mas, qualquer que seja o resultado, o mais importante será o percurso percorrido – a parcela de caminho que se desfrutou, ao partir de um ponto e chegar a outro – e as lições aprendidas para a próxima partida. Já venci partidas com o que aprendi na anterior, ainda que necessariamente não a tivesse perdido. Todavia, é das derrotas em Tokaido que nascem as vitórias futuras, por mais que esta afirmação pareça uma frase-feita.

“Jogo ímpar”, “experiência profunda dos aspectos e pormenores de uma cultura que fascina”, “consciência essencial do mundo que nos rodeia”, “o nada que se liga ao lugar nenhum, com coisa alguma de entremeio”... Muitas são as definições que ampliam ou empalidecem o significado de Tokaido. Mas esqueça tudo isso e o jogue. Jogue com a alma limpa das influências vazias e disposto a se deixar levar em viagem, como se estivesse de fato em trânsito. E não estamos em trânsito? Não é uma viagem a vida, que começa na infância e terminará na velhice? Por que haveremos de nos surpreender tanto com um jogo que constitui uma simples viagem? “Desde o instante em que se nasce/ já se começa a morrer”. Os versos de Cassiano Ricardo englobam uma transição, como em Tokaido. A diferença é que do primeiro saímos esmagados, como depois de lermos um livro de Cioran, pois pesa-nos esta compreensão tão categórica e escassa do que seja a existência humana. Já de Tokaido saímos para a alegria, a satisfação, o prazer ou para o primeiro sushi da semana!
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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