A primeira pergunta que se deve fazer depois de jogar Condottiere talvez seja: este jogo é um board game que se opera através de cartas ou é um card game cujas ações se finalizam no tabuleiro? Claro que o jogador pode simplesmente jogar, se divertir (ganhando ou perdendo), e assunto encerrado. Mas o jogador atento e curioso, tanto quanto o mais experiente, que já jogou “todos” os jogos, mais cedo ou mais tarde, se se interessa pela forma e estrutura dos jogos, vai se propor esta questão e tentar respondê-la.
De minha parte, gosto de pensar que é um jogo de tabuleiro, mais que um jogo de cartas, e que estas são tão somente o meio pelo qual o jogo se opera, as táticas de uma estratégia de batalha, travada às margens do tabuleiro, onde estão os objetos de desejo: as cidades-estados da Itália renascentista. Digo isso, porque tenho certa predileção por board games pequenos, enxutos, leves – e pensar assim me é conveniente.

Vejamos qual é o assunto de Condottiere. Se devemos acreditar cegamente no que afirma o manual do jogo, Condottiere remonta, com tabuleiro, 110 cartas, 2 peões e 36 marcadores (em 6 cores diferentes), o conturbado período político do Renascimento italiano. Na época, a Itália era, na verdade, um acúmulo de cidades-estados. Independentes, convulsionadas de comportamento hostil ou inertes numa postura pacífica, fizeram surgir um tipo social ainda hoje presente em muitas nações e culturas: os temidos chefes de guerrilheiros mercenários. Na Itália eram chamados de “condottieri” (“condottiero”, no singular). Dois desses líderes, Francesco Sforza e Giovanni de Medici, estão entre os mais notáveis e criaram dinastias, pois, aproveitando-se de sua influência, e da fragilidade à sua volta, alçaram-se ao poder, o primeiro em Milão, o segundo em Florença.
Em Condottiere, os jogadores travam batalhas dirigidas por cartas, com o propósito de conquistar a maior quantidade possível de cidades-estados, como se fossem ambiciosos condottieri, unindo-as num estado único, amplo e poderoso. O jogo chega ao fim quando, com 4, 5 ou 6 jogadores, um oponente reúne 5 regiões dispersas ou 3 adjacentes. Com 2 ou 3 jogadores, são 6 regiões esparsas ou 4 interligadas. Isso tudo, obviamente, está no manual.
O que faz de Condottiere um jogo digno de uma resenha é a sua capacidade de, através de uma contenção de meios e poucos componentes, simular uma atmosfera de batalha e disputa de poder. Sentimo-nos como chefes de exércitos ou governantes ambiciosos que demarcam num mapa de guerra as regiões conquistadas. Esta imagem não é incomum em filmes e sofreu, especialmente durante o período da Guerra Fria, paródias inesquecíveis. A maior de todas, no entanto, é anterior e coube a Chaplin: em “O grande ditador”, um sujeito, de bigodinho e uniforme, num arroubo de empáfia, brinca de espetar não um mapa, mas de mover para lá e para cá, a seu bel-prazer, um globo terrestre. Hitler? Em parte sim, em parte todo mundo.
Condottiere, portanto, desperta em todos nós esse indefectível defeito humano: a soberba do poder. Quem nunca desejou ser o bambambã de sua rua ou o garoto mais respeitado do bairro? Num dos melhores textos breves de Henry Miller, o ensaio “O Décimo-Quarto Distrito”, ele confessa que “Os rapazes que você venerou quando desceu para a rua pela primeira vez continuam com você a vida inteira” (“Primavera negra”, 1995). E conclui que nenhuma figura histórica de relevo, de Napoleão a Jules Verne, foi maior que Eddie Carney, que o deixou de olho roxo, ou Lester Reardon, que só de descer a rua andando inspirava medo e admiração.
Este poder de intimidar ou seduzir, alguns já o trazem no sangue, outros o conquistam e desenvolvem. Mas são uma minoria. A nós, pessoas comuns confinadas ao seu cotidiano banal de trabalho de um lado e lazer de outro, só nos resta a representação de uma condição grandiosa e intimidadora através, por exemplo, do jogo de tabuleiro. E nisso – e de maneira contida, oferecendo muito com muito pouco – Condottiere é perfeito. Somos os líderes dos “condottieri” e, ao mesmo tempo, o simples soldado mercenário que trava as batalhas. Igualmente somos a Heroína – a personagem mais imponente do jogo, pois é imune aos efeitos de todas as demais cartas – ou o Percussionista, que aumenta o moral da tropa, ou mesmo o Bispo, que, com sua influência como porta-voz do Papa, enfraquece os exércitos e usa do poder de seu cargo para imunizar esta ou aquela região, à escolha do jogador que o controla.


A estas cartas se somam outras, importantes e criativas, bem de acordo com o cenário de uma suposta batalha: duas destas são as cartas de Inverno e Primavera. Além do fato de que uma anula o efeito da outra, como na natureza, ambas interferem, como evento natural, nas circunstâncias de cada batalha, consequentemente no jogo. Lá está o jogador com seu poderoso exército de cartas altas, e vem o oponente com a carta de Inverno, que reduz a força de todos os mercenários em jogo ao menor nível (1) e pelo menos iguala a disputa. Já a Primavera, além de banir para o descarte a carta de Inverno, ela acrescenta 3 pontos de força a todas as cartas de mercenário de maior força em jogo. E não é assim nas guerras? Não podemos dizer que são também generais dos exércitos as estações do ano? Na Primeira Guerra Mundial, o inverno confinava os soldados às trincheiras, que, embotados de frio e propensos à trégua, chegavam a se socializar com o inimigo. Isso é fato e gerou indignação entre os líderes das nações em luta, e mesmo a Igreja foi chamada a interceder: a reivindicar dos soldados a volta às batalhas! Aliás, Igreja e Governo sempre estreitaram laços em favor do derramamento de sangue. Condottiere expressa isso muito bem, quando o Papa, posto numa região específica, torna-a imune, ao passo que nas demais as batalhas grassam.

Em suma, um belo jogo! Fica aqui, nestas palavras de entusiasmo, um pouco da minha perplexidade com o fato de que, tendo vindo a público em 1995, Condottiere não tenha até hoje uma edição brasileira. A que se deve isso? Será que o motivo é a tendência a se publicar (e jogar) mais do mesmo? Quantos não são os jogos que se parecem uns com os outros?! Eu, que vivo em busca de jogos mais originais, vi em Condottiere uma proposta diferente, que, no entanto, talvez já tenha sido exaurida com tantos outros jogos que eu desconheço, e provavelmente mais complexos e pormenorizados do que este, o que, penso, incita mais a curiosidade e o prazer. De minha parte, gosto de simplicidade – a simplicidade física que faz dos jogos abstratos clássicos insuperáveis –, e nisso Condottiere é impecável, uma obra-prima!
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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