Em Carcassonne (2000), à primeira vista, tudo é intrigante. Se você é novo no métier, você se pergunta como um jogo pode, em meio a tantos lançamentos diários, se manter por quase vinte anos na ativa, jogado diariamente pelo mundo afora, inclusive em campeonatos mundiais, honra que bem poucos jogos possuem, sendo o mais célebre de todos o Xadrez, realmente o mais estratégico de todos os jogos – o Maior. Se você está no meio dos jogos de tabuleiro há muito tempo, pergunta-se: como Carcassonne consegue continuar? Primeiro, é um jogo que divide opiniões. Mérito inquestionável. Desconfiemos de tudo que esteja encasacado de unanimidade. Claro que não estamos nos referindo ao que quer que seja que, de imediato, demonstra ausência de qualidade ou arte e evidencia mau gosto. Coisas assim, não importa o meio de onde provêm, não merecem nossa atenção, seja o que for: livro, filme, um quadro, uma música, um gibi. Não é o caso, nem de longe, de Carcassonne. Este jogo é um marco. Mudou, como Catan (1995) e alguns poucos jogos, o universo dos board games.

Dividir opiniões é reunir, no centro da polêmica, gregos e troianos. Em qualquer evento ou site de jogos de tabuleiro, sempre nos depararemos com um grande entusiasta de Carcassonne e, em igual medida, com um seu detrator. De um lado e outro as falas serão veementes. E méritos e defeitos serão apontados e comentados à exaustão. E ainda há os jogadores de meio termo, que, munidos de poréns e ressalvas, dirão que jogam sim Carcassonne.
Outro aspecto de sua qualidade superior é como o jogo se nos apresenta já desde o manual. Não há este novato que, passando a vista por suas regras do início ao fim, não comece minutos depois a jogar Carcassonne. Diferente de muitos outros jogos, que precisam de vídeo de apoio – feitos às vezes por pessoas que nem dominam o jogo a contento – ou da filmagem de uma partida inteira, jogada com todas as contingências naturais de uma mesa de ação lúdica, Carcassonne se basta por si mesmo, com seus tiles, meeples, trilha de pontuação, manual e ausência de tabuleiro – sem contar que não precisa de sleeves! Joga-se em qualquer lugar, até na esteira, na praia, à sombra do sombreiro, com a brisa a fustigar…
Sua mecânica, simples e refinada, expressa como Catan a ideia de expansão, o progresso natural das sociedades, especialmente em sentido horizontal. Não estaríamos aqui se as cidades não tivessem crescido – em volta de si mesmas e para cima –, nem as estradas se esticado, atravessando montanhas, rios, desertos, planaltos e chegando à beira-mar, para o último grande salto primitivo de expansionismo: as navegações. Se em sua grande maioria os jogos antes eram de guerra, de ganhar dinheiro ou perseguir facínoras, Carcassonne espelha a própria vida, seu fluxo contínuo de ir para adiante e não voltar. E isso é tão evidente que o jogo só termina porque os tiles acabam. Se houvesse mais, muito mais, continuaríamos a jogar indefinidamente, talvez infinitamente. Neste sentido, o ato de colocar o último tile é similar ao último suspiro, em face da morte. Mas, como a existência é um eterno retorno – sempre! –, uma nova partida de Carcassonne em algum lugar estará começando, enquanto outra chega ao fim.
De maneira precisa e econômica, a antiga sociedade europeia está metaforizada em Carcassonne. A realeza, a religião, a política, a casta plebeia, os agricultores, os ladrões. Estes meios impulsionaram os estados ou os fizeram decair. Talvez a única ausência, como também em Catan, seja a guerra. Não há esta região do mundo antigo que não tenha passado ao menos por uma grande guerra. A guerra é uma contingência natural tanto das desavenças quanto da ordem das sociedades. Com ela, algo começa e algo termina. A inclusão de um incidente desta natureza talvez fizesse de Carcassonne um jogo perfeito, um espelho exato do que foram as sociedades passadas. O máximo que o jogo base oferece de semelhante a um conflito bélico é a possibilidade de um jogador tentar tomar o território (cidade, estrada ou campo) que o outro está construindo, mediante uma disputa de alocação de meeples. Mas não será esta regra uma alusão à guerra? Então Carcassonne é perfeito!

Muito se alega que o ato de pegar um tile para acrescentá-lo ao fluxo do jogo deixa-o muito dependente da sorte. Eu diria que isso só ocorre se não avaliarmos detidamente as possibilidades de inserção do mesmo no “mundo” que temos diante dos nossos olhos. Estrategicamente, não podemos colocá-lo na primeira opção que se nos descortina. Carcassonne não é dominó. A sagacidade e experiência do jogador devem instruí-lo a procurar o ponto mais eficaz para as suas pretensões de expansão e vitória, a não ser que ele esteja jogando casualmente, como se montasse um quebra-cabeças. Neste caso, não é mais um jogo estratégico, é só diversão, passatempo. Ganhar está aquém de qualquer outro sentimento.
Recentemente tive uma compreensão inesperada de Carcassonne, a partir de sua caixa (edição da Devir, 2014). A ilustração principal, da tampa, jamais me chamara a atenção, exceto negativamente, por causa da torre de contos de fadas e todo aquele aspecto de Idade Média que desde jovem nunca me agradou. No entanto, há um detalhe na ilustração de Chris Quilliams que bem expressa a essência do jogo e da vida em sociedade: o homem aponta lá embaixo alguém que está para fugir da torre por uma corda feita de panos; alheia à cena e com um sorriso de cumplicidade no belo rosto, a mulher ao seu lado olha para trás, e sabemos pela sombra no muro quem é o objeto do seu olhar – um homem, possivelmente um amante, um pretendente. Impossível não ver na cena o mito de Capitu, do nosso incomparável Machado de Assis. Através das traições mundos se ergueram, outros ruíram, e a vida se segue: “se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. Não é diferente nas sociedades, nos estados de outrora, nos países. A traição é como o éter dos antigos, está em tudo, é a mola mestra da vida, por mais que a condenemos. A inclusão desta cena, na capa, remete ao contexto sócio-político e econômico do qual Carcassonne é uma alegoria. Um mundo que se expande conforme os conflitos se multiplicam.

A escritora francesa Marguerite Duras disse certa vez que só o fato de o livro ocupar na existência um espaço que antes era vazio já é o bastante para justificá-lo. Creio que esta reflexão se aplica perfeitamente a certos jogos de tabuleiro e em especial a Carcassonne. Se decidirmos jogá-lo, não importa o número de jogadores, nada haverá inicialmente sobre a mesa, exceto o tampo vazio, mas, pouco a pouco, peça a peça, um mundo vai se formando, como o alvorecer da própria sociedade humana. Ao fim, terminada a disputa, lá está o desenho, colorido, vistoso e sutil. Ninguém, ao vê-lo, deixará de se admirar com a sua imponência. Está aí uma das mágicas de Carcassonne: não ter existido e passar a existir!
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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