Como tudo na vida, o mundo dos board games também tem as suas contingências. O que leva um jogador ou grupo a gostar mais de um jogo que de outro? Predileções, escolhas, gosto pessoal… Talvez igualmente a sua formação, sua infância, seu meio familiar… Também o que se pretende com os jogos: fugir do cotidiano sufocante, descansar de um trabalho diário e exaustivo, reunir-se com amigos, simplesmente se divertir ou então julgar, avaliar meio que intelectualmente cada jogo por todos os seus ângulos de entrada.
Tudo isso conduz obviamente a julgamentos que superestimam ou subestimam alguns jogos, encerrando-os no limbo ou alçando-os ao Olimpo. E, como não se pode possuir nem jogar “todos” os jogos, é preciso, como primeira lição, escolher, separar, ignorar ou ser indiferente a este ou aquele jogo. Tenho, portanto, como todo mundo, as minhas predileções, das quais não me afasto, senão raramente.
De minha parte, aprecio jogos com o tema policial. Mas este tema, em grande parte, reduz os jogos basicamente a dois tipos: 1) investigação e dedução; 2) perseguição e cerco. O mais célebre entre os primeiros talvez seja Detetive (1949) e, entre os segundos, Interpol (1983). Há centenas de jogos que reproduzem, com variações, estes dois. Um jogo de acordo com esse tema e que escapa a estas duas correntes é O Albergue Sangrento (2015), do Nicolas Robert. Nele, somos criminosos: matamos e roubamos sistematicamente. A cada noite o albergue recebe vários viajantes, que os jogadores, na figura do estalajadeiro, vão subornar, matar, roubar e enterrar. Quem fizer isso com mais eficiência e obtiver mais dinheiro vence o jogo.

Posso estar enganado – como disse acima, é impossível conhecer e jogar todos os jogos –, mas esta é uma ótica nova. Na literatura, dialoga com os romances policiais de ação, nos quais o leitor segue o ponto de vista do assassino ou do ladrão, com a investigação em segundo plano ou mesmo em ausência. Um dos mais significativos exemplos literários desta vertente é provavelmente O assassino em mim (Planeta, 2005), de Jim Thompson. Um romance forte e perturbador.
Em O Albergue Sangrento, as ações macabras do estalajadeiro sofrem uma tênue investigação policial, com a presença dos militares, representados por catorze cartas (major, tenente, sargento e guarda). Se no encerramento da rodada, algum deles ainda estiver num dos quartos do albergue, e um jogador matou um hóspede e não o enterrou, o jogador sofrerá punição. No entanto, só é possível matar hóspedes de maneira eficaz e recorrente com o auxílio destas mesmas personagens. Sem elas, a ação do assassino fica bem mais difícil. Ou seja, de maneira irônica a polícia serve aos dois lados, como na vida. E nunca é demais lembrar que a origem da polícia urbana envolveu a suposta regeneração de bandidos que ameaçavam o bem-estar das sociedades modernas. Isso é fato, retratado e comentado em muitos livros.

O funcionamento do jogo é simples. Um tabuleiro representando o albergue, com seus quartos e seu bistrô, onde ocorrem as refeições. No centro do tabuleiro, como no coração corrompido do estabelecimento, está o marcador de pontos ou, se preferirem, de dinheiro roubado. Os hóspedes chegam através das cartas, abertas a cada rodada de um baralho posto numa das extremidades do tabuleiro, e ocupam os quartos, devidamente abertos com suas fichas de chaves. No bistrô servem oito aldeões, facilmente subornáveis. Com eles as ações horrendas começam e se multiplicam: subornar, matar, enterrar, roubar. As cartas jogadas vão para a pilha de descarte, exceto as dos aldeões, que voltam para o bistrô. É um jogo muito estratégico e tático, pois cada jogador só pode fazer duas ações por rodada. Um mau planejamento é evidência certa de fracasso. Ao fim, vence quem acumula o maior saque. Para isso, muito sangue vai rolar e muita cova será aberta. É a essência do jogo, e que assim seja!
O Albergue Sangrento é um dos meus jogos de tabuleiro favoritos. E isso, em grande parte, se deve ao fato de que é uma característica da condição humana querer viver novas experiências, quaisquer que sejam, para o bem ou para o mal. Por isso, vemos filmes, lemos livros, produzimos arte e nos debruçamos sobre os jogos de tabuleiro: para experimentarmos outras vidas, esboçarmos outras máscaras, ensaiarmos outras personalidades. Neste caso, por 40 ou 60 minutos, somos assassinos e ladrões sem que, assim, soframos as consequências inevitáveis que, na vida, uma ocupação desta natureza nos acarretaria, em face da justiça. Mas é bom ficarmos atentos e, por via das dúvidas, é melhor depois de uma partida acirrada de Albergue Sangrento pôr à mesa algo mais relaxante – Gardens, Carcassonne, Tokaido, Kingdomino… Nunca se sabe até que ponto O Albergue Sangrento é inspirador.
Mayrant Gallo é professor, escritor e boardgamer. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas e gestão de mão.
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