Ano que vem Catan, o jogo (1995), de Klaus Teuber, completará 25 anos. Raros jogos de tabuleiro, que não os abstratos tradicionais (Xadrez, Trilha, Resta um, Damas, Dominó etc.) e os velhos conhecidos de nossa infância, como Banco Imobiliário, Combate, Batalha Naval ou War têm ou tiveram tamanha longevidade. E ainda mais gozando de popularidade, constantemente em catálogo pelo mundo afora e fascinando a velhos e novos jogadores, que começam com Catan e chegam a outros jogos, e outros e outros… Num grupo com o qual me encontro esporadicamente Catan é O Jogo! Dos adultos às crianças, é muito raro que alguém não o queira jogar. Quando pergunto “Que jogo devo levar?”, a resposta invariavelmente é: “Traga o que quiser, mas traga Catan!”
Então, a pergunta que me faço é: “Onde está o segredo deste sucesso, qual a magia?” Tematicamente, encontrei a resposta neste trecho de Terra dos homens, do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, em magistral tradução de Rubem Braga: “Assim nós caminhávamos ao longo de estradas sinuosas. Elas evitam as terras estéreis, os rochedos, os areais; seguem as necessidades do homem e vão de uma fonte a outra fonte. Conduzem os camponeses de suas granjas às plantações de trigo, recebem na porteira dos currais o gado ainda adormecido e o levam, pela manhãzinha, até o capinzal farto. Unem esta aldeia a esta outra aldeia porque de uma para outra as pessoas se casam. E mesmo se uma delas se aventura a cortar o deserto, ei-la que faz mil voltas para regozijar-se com os oásis”.
Ou seja, Catan é uma representação do expansionismo humano. Nascida no interior, uma comunidade tende a se expandir, andar, vencer desertos, colinas e montanhas, unindo aldeias a aldeias, estas se transformando, crescendo, virando cidades, sofrendo-se com os ladrões, e assim chega-se ao litoral. Como disse Saint-Exupéry: “Unem esta aldeia a esta outra aldeia porque de uma para outra as pessoas se casam”.
Este princípio está claramente “mecanizado” em Catan. Começamos com duas aldeias e duas estradas; no curso do jogo, as estradas crescem, colocamos outras aldeias, estas evoluem, se transformam em cidades e, enfim, chegamos ao litoral, que nos facilita a continuar a evoluir: a partir daí poderemos trocar dois ou três recursos (trigo, madeira, tijolo, pedra ou ovelha) que temos em abundância por um de outro que nos falta. Pouco depois talvez alguém vença o jogo ou nós mesmos, mas o sentimento que ficou foi o de missão cumprida sobre a face da Terra. Por uma hora e meia pelo menos, batalhamos com suor e lágrimas para irmos adiante, sofremos com os ladrões, rimos com a boa sorte. E é por isso que em algumas partidas, quando estagnamos à mercê do acaso dos dados, desanimamos, nos encolhemos, quando não nos aborrecemos… É o sentimento natural, como se a própria vida nos negasse participação.
Eis, portanto, a magia de Catan. Trouxe para a superfície do tabuleiro, com poucos detalhes e através de uma mecânica quase abstrata, uma representação perfeita da existência humana, na sua inevitável sede de expansão e progresso. Unamos a isso o fato de que a cada rodada todos podem ganhar ou perder recursos (porque os dados podem dar ou tirar, a seu bel-prazer, mesmo que não os joguemos), e está arredondada a magia, uma vez que é assim também na vida: nem sempre ganhamos do que fazemos, tanto quanto perdemos do que não nos responsabilizamos.
Vejo assim Catan como um jogo bem especial, uma espécie de divisor de águas. Não são poucos os jogos que surgiram, depois, meio que disfarçando na sua mecânica (ou não) a forte influência de Catan. Há até jogos que o homenageiam, jogos que o citam, jogos que o usam. Pode não ser o seu jogo favorito, nem talvez o meu, mas é inegavelmente uma brilhante obra-prima. Inclusive quanto a nos deixar contrariados ou deprimidos, se tudo dá errado. Ora, se só houvesse vencedores na vida, qual seria a graça? Quando Boris Spassky perde o jogo de número 6 para Bob Fischer no Campeonato Mundial de Xadrez de 1972, ambos voltam a sorrir. Cada um por um motivo diferente: um porque venceu, o outro porque afinal as derrotas ensinam. Tenho aprendido com Catan que vencer depende de muitos fatores e que, às vezes, precisamos nos resignar com um mau desempenho, mesmo porque toda partida, de qualquer jogo, é só um cadinho da vida.
Mayrant Gallo é professor, escritor, boardgamer e sócio da Invasion BG. Já publicou mais de 15 livros. Entusiasta por jogos de tabuleiro, tem predileção por jogos para 2 pessoas e solo. Tematicamente, aprecia jogos de construção de cidades e sobre a Guerra Fria. Entre as mecânicas de que mais gosta estão: colocação de peças, construção a partir de um modelo, seleção de cartas, controle de área e gestão de mão.
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