INFANTILIDADE
Não importa o tempo em que uma pessoa possa estar inserida nesse passatempo de jogos de tabuleiro, ou mesmo sem estar inserida, se ao menos participou de alguma mesa, evento, ainda que como espectador, com certeza deve ter escutado algum transeunte com ar alienado e raso, fazer o seguinte questionamento: “Jogos de tabuleiro? Mas isso é coisa para criança!”, numa clara tentativa de reduzir uma atividade lúdica, cultural, artística, educacional e, não há como negar, legítima da sociedade humana.
Enquanto jogadores, sabemos que esta afirmação é bastante equivocada, entretanto, na maior parte do tempo, somos incapazes de sustentar uma argumentação dos motivos que nos levam a jogar, da importância que os jogos de tabuleiro e cartas desenrolam na vida cotidiana, e mais, quando encontramos as razões, em sua maioria, são tão equivocadas e enviesadas quanto o ponto inicial da discussão, uma vez que convergem no mesmo discurso de uma sociedade do rendimento, da eficiência e da divisão de atividades, que nos separaram em grupos sem que possamos perceber que estamos na mesma situação de influência.
E aqui, precisamos entender de onde vem esse pensamento e como ele nos influencia dentro desse hobby, pois, como foi dito, apesar de vir de um debate de dois lados antagônicos, a origem da afirmação e o modo como lidamos com os jogos de tabuleiro tem uma mesma origem. O dito bom trabalhador, esforçado, produtivo e útil a todo o sistema não deve se distrair com nada que não tenha função dentro de sua finalidade econômica e, em nossa realidade, social. A divisão das fases da vida tem origem na Revolução Industrial, e apesar de parecer um ganho no entendimento de humanidade, temos que entender que, ao capitalismo, a infância vem somente como um preparo à vida adulta e, portanto, ao trabalho. Uma vez que o trabalho exerça sua função ativa na população, não há razão para que se continue a exercer as atividades de preparo, e qualquer tempo perdido em uma função que não seja econômica é rapidamente descartado pelo cidadão.
Obviamente, serão permitidas atividades lúdicas ao ser adulto, mas somente as permitidas pela divisão das fases, para que não tenhamos uma ideia clara de como essa divisão nos afetaria, assim como, que sejam atividades que proporcionem pouca ou nenhuma reflexão esclarecedora sobre os problemas que nos cercam. É permitido sair para beber, assistir filmes com os mesmo roteiros de anos atrás e tomar um sorvete no shopping enquanto vê vitrines de produtos que você não precisa comprar, qualquer coisa fora desse padrão é prontamente agredido pelo sistema. E aqui, importante citar, deixo claro que talvez devamos deixar de lado o ataque ao mensageiro, uma vez que ele é apenas uma pequena engrenagem, e entender que a máquina o quer funcionando assim. Também não poderíamos encerrar sem citar o caso feminino, que é excluído até mesmo das atividades ditas permitidas, mas para esse assunto, talvez caiba outro texto mais profundo.
Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, filósofos e sociólogos alemães, expressam muito bem essa ideia: “Tudo o que não se ajustou inteiramente ou que fira os interditos em que se sedimentou o progresso secular tem um efeito irritante e provoca uma repugnância compulsiva.” (Dialética do Esclarecimento, 1947), inferindo como esse comportamento se torna característico em diversos meios de nossa sociedade, e aqui, na ação de jogar, se direciona aos jogadores que se reúnem e se divertem em algo não direcionado ao valor econômico, ou que não deveria.

E então entramos em estado quase paradoxal, pois o jogador, numa ação que em sua razão deveria livre do entendimento de mercado, que brinca para divertimento e distração, passa a tratar seu passatempo com o mesmo pensamento que citamos anteriormente, já que precisa dar sentido ao seu consumo e tempo gastos, que não podem ser também inúteis a si mesmo enquanto participante do sistema. “Tudo deve ser 'experiência' e 'diversão', mas uma diversão que ainda serve à produtividade." (Byung-Chul Han, Sociedade do Cansaço, 2010), fazendo com que o indivíduo passe então a desempenhar o papel que se espera dele, colocando formas de produtividade e organização no que deveria fluir em seu oposto.
No receio da infantilidade, de não estarmos inseridos no que é determinante ao adulto funcional da sociedade, que não pode brincar se pertence ao sistema, criamos planilhas para organizar jogas durante a semana, sabendo quais jogos devem ir para a mesa sem que se deixem muitos meses parado, afinal, jogo parado é dinheiro perdido. Ou se colocamos o mesmo boardgame várias vezes na mesa, nos preocupamos com uma performance, a pontuação deve ser melhor que a anterior, é inaceitável perdermos uma partida se ganhamos as anteriores, a competição e o sentimento de rendimento tomam conta da atividade. Transformamos lazer em trabalho, agimos de maneira tão alienante ao todo quanto nossos acusadores.
Aos que leram o primeiro texto deste blog que se iniciou na semana passada, sabem que a intenção não é aprofundarmos questões no texto, mas trazermos à superfície o debate para que juntos possamos nos entender enquanto indivíduos e grupo. Para além de trazer uma solução pronta ao problema levantado, o convite é discutir outros motivos e trazer lucidez na compreensão do comportamento e suas diversas causas.
Portanto, sinta-se a vontade a comentar e enriquecer as ideias aqui levantadas. Siga também nossa página @pontocapitalbg no Instagram, onde poderemos estender o debate e lembre-se: O mundo começa a fazer sentido quando entendemos que a vida é um jogo cooperativo!
Meeples do mundo, uni-vos!