Nessa semana, o Covil dos Jogos fez uma live com o tema "Board Games e IA? Estamos Perdendo a Alma dos Jogos", onde o Paulo fez um painel sobre o assunto juntando o Leandro Zombie, o Gustavo do Gambiarra e o Chris Borges, que é alguém que está no olho do furacão da discussão, pois é um ilustrador e já trabalhou em diversos jogos de cartas e de tabuleiro.
A live foi bem longa e tocou em muitos pontos, trazendo uma boa contribuição ao tema, mas eu senti falta de alguns argumentos e por isso decidi escrever esse artigo.
Eu já falei um pouco sobre IA no texto que comentei sobre o Go e o uso de engines para resolver jogos de tabuleiro tradicionais. Naquele texto eu discuto sobre como a atividade que faço aqui (a de escrever sobre jogos) estaria em risco e até a possibilidade de que jogos venham a ser inteiramente criados e desenvolvidos por IA.
Ainda estamos bem longe desse ponto. O aspecto que vem mais mexendo com as discussões é o uso desse tipo de ferramenta para gerar a arte e o design gráfico dos jogos sem a necessidade de contratar especialistas para isso. É a discussão da obsolescência tecnológica atingindo atividades que até bem pouco tempo, tinham status de atividades intelectuais ou artísticas.
O assunto é muito complexo e por isso eu vou balizar meus comentários em alguns conceitos: o primeiro é que eu estou olhando mais para os resultados do que para os processos. O segundo é que vou fazer paralelos com base no que conheço da história da arte (mais notadamente, da história da pintura). Embora não seja um especialista, sou um estudante da história da arte, já fiz alguns cursos, presenciais e online e, sem me achar o dono da verdade, me sinto capaz de argumentar sobre isso com alguma propriedade.
Eu não vou discutir que dados e imagens podem ou não ser usados para treinar as IAs. Eu assumo que se está na internet ou em um museu para ser visto por um olho humano, pode ser processado por um computador. Os limites legais disso podem aumentar ou diminuir o poder das engines, mas não mudam o argumento.
Os meus pontos são: a) de quem é a responsabilidade pelo que se gera com as ferramentas de IA? b) quanto do valor está na concepção e na criação? c) Precisamos de rótulos para reconhecer o que é feito com a IA? Isso precisa ser regulado? d) onde chegaremos com isso?
A culpa é do computador?
Por melhor que a IA venha a se desenvolver, pelo menos a princípio, não se espera que ela tenha vontade própria. Ela não tem caprichos, necessidade de se expressar ou de comunicar algo aos demais seres humanos. É apenas um algoritmo, um autômato treinado para responder pedidos. A IA nunca vai acordar um dia e sair com uma ideia de fazer um jogo sobre a vida de Tiradentes. Quem pode ter epifanias somos nós, humanos (o exemplo que citei foi porque eu tive um dia a ideia de um jogo baseado na inconfidência mineira).
Qualquer produto no final das contas é responsabilidade dos seres humanos que os estão colocando no mercado, ainda que seja 100% realizado com ajuda de computadores.
Então, para mim, isso resolve muitas das questões que foram discutidas na live. Não interessa como a IA produz as imagens que lhe são pedidas. O que interessa é o resultado. Qualquer discussão sobre plágio tem que ser discutida a partir do produto final e não pela forma como ele é obtido. As regras de plágio ou propriedade intelectual tem que ser usadas da mesma forma que com um produto feito sem ajuda de IA.
Se você usa uma engine qualquer e ela produz conteúdo que pode ser entendido como racista (como no exemplo dado pelo Leandro ao comentar a produção das cartas do seu jogo sobre o processo penal em 1:38:00 aproximadamente), é você que tem que perceber e filtrar isso.
É a mesma coisa se você contratasse um artista para produzir a imagem. A palavra final é sua, pois é você que vai dar uso a mesma. O artista ou a engine podem até ser corresponsáveis, você pode até ser pego na ignorância, mas não há como se eximir.
E, pensando no resultado, serão bem sucedidos aqueles artistas que aprenderem a usar a ferramenta para produzir melhores resultados no menor tempo possível. O processo de criar imagens vai mudar, isso é inexorável.
As pessoas se apegam às técnicas atuais, porque esse é o ganha pão delas, mas as técnicas sempre mudam. Humanos já faziam imagens antes de terem papel (vide a Caverna de Lascaux) e hoje fazem no computador. O computador fazer a imagem através de um enunciado recebido é apenas mais uma evolução.
Concepção x Execução
Uma discussão que apareceu muito foi a cópia de estilos específicos, como a do Studio Gibli (a 1:09:00 aproximadamente). O meu ponto é que se eu fizer algo copiando o estilo de alguém, não importa se eu contratei um desenhista ou se usei o computador para isso, eu estou cometendo plágio.
A história da arte está cheia de histórias de artistas que conseguiam copiar quadros antigos em tudo, até mesmo reproduzindo até mesmo os efeitos do envelhecimento da tinta a óleo através dos séculos (sugiro a leitura do livro "Eu fui Vermeer", de Franck Winne, lançado no Brasil pela Companhia das letras).
A questão não é o processo, é o resultado. Não é crime fazer um quadro no estilo do Vermeer. Crime é vendê-lo como se fosse um Vermeer.
Ok, com a IA fica muito fácil fazer plágio. Você arrumou um desenhista super rápido e preciso. Ainda assim, devemos tratar esse caso da mesma forma. Eu posso fazer meu retrato de graça com a engine que emula o Studio Gibli, mas se eu resolver usá-la para fazer um mangá comercial, provavelmente eu serei processado.
Porém, quando o que eu gero não tem um estilo claramente definido, é apenas uma reprodução tradicional de elementos da realidade, eu não vejo motivos para reclamar de cópia. Todo artista usa tudo o que já viu na vida como referências para produzir uma imagem. O computador faz a mesma coisa. A diferença é que ele não "vê" uma imagem. Ele a "processa". Essa é a forma dele obter informação.
O ponto é que o tipo de resultado obtido dessa forma, exatamente por ser a soma de um número enorme de referências, sempre será algo um tanto genérico. É a média do senso comum. Dificilmente será o suficiente para se gerar o que entendemos como uma obra de arte, mas como uma ilustração genérica, utilitária, de uma cena ou elemento corriqueiro, provavelmente é mais do que o suficiente.
Dando um exemplo, se eu preciso representar em uma carta uma mesa e a IA me gera a imagem de uma mesa genérica, não faz sentido tentar buscar propriedade intelectual nisso. Existe um conceito geral de mesa que todos podem reconhecer e que pode ser utilizado universalmente.
Por muito tempo, a pintura tinha, além do seu papel artístico, um papel de registro. Se você queria um retrato de sua mãe, ou de seus filhos, você pagava um retratista para fazê-lo. Os Reis da Espanha contratavam um cara como Velásquez (um dos maiores gênios da pintura de todos os tempos) para pintar sua filha (e que gerou a obra de arte acima, "As Meninas"), mas a maioria das pessoas não podia tanto. Quando muito, ia atrás de um artista local, na praça de sua cidade, para encomendar um retrato.
Por mais que esse artista local tivesse seus maneirismos e técnicas próprias, ele tinha uma função objetiva a cumprir. Retratar (normalmente, de modo benevolente), o tema encomendado. Ele seguia certas regras e as expectativas do cliente. Não se espera que ele seja criativo e sim que seja competente.
E esse é o ponto. A IA NUNCA vai substituir a visão de Velásquez. A IA nunca teria a ideia de retratar o pintor pintando o quadro enquanto os pais assistem (e nós só sabemos disso porque os vemos no reflexo do espelho), não colocaria o pajem provocando o cachorro, nunca representaria numa encomenda de um simples retrato a vida quotidiana de um palácio, com inúmeros detalhes e símbolos que até hoje são discutidos em escolas de arte. A IA poderia até produzir essa composição, se recebesse todos os detalhes de quem está escrevendo o prompt, mas um humano teria que dizer a ela exatamente o que quer. Provavelmente só Velásquez poderia fazê-lo, pois só ele sabia tudo que queria comunicar.
A IA não está substituindo o gênio. O que a IA pode conseguir, ainda que de uma forma imperfeita, é substituir o retratista da praça.
"Made in IA"?
Uma preocupação que aparece bastante é a questão da transparência. Pelo que vi na live e no chat, as pessoas parecem querer ter uma "declaração de procedência" dizendo se um determinado jogo teve uso de IA ou não (há vários pontos na live, mas cito o argumento do Paulo sobre o Ozob a 1:25:00 aproximadamente).
Eu acho que isso é uma questão que vai passar, porque a situação é incipiente.
Hoje é relativamente fácil verificar quando a IA é usada sem retoques. Sempre fica alguma coisa estranha. Uma mão retorcida, um acabamento esquisito. Mas isso vai ser resolvido, é questão de tempo.
O que vai acontecer num futuro próximo é justamente o contrário, a grande maioria dos produtos será feita com arte genérica oriunda de IA e serão os jogos com arte tradicional que tentarão se diferenciar (e com isso justificar seu preço).
A indicação do uso de IA provavelmente será resolvida quando o uso das ferramentas se tornar mais profissional. Assim como nos videogames os jogos vem com propagandas das engines (provavelmente porque isso é imposto nos termos de uso), as plataformas de IA começarão a fazer o mesmo, seja para evitar a pirataria do seu uso, seja para evidenciar a capacidade de suas ferramentas.
Onde chegaremos?
Por praticamente 500 anos, a meta maior da pintura era a mimese, a reprodução da realidade. A maior parte dos grandes mestres buscavam representar, com o maior nível de detalhe possível, os objetos retratados.
Com o advento da fotografia, de uma hora para outra, isso se perdeu. Outros caminhos precisaram ser encontrados. Os artistas buscaram encontrar o que as fotografias não mostravam.
As fotos ainda eram em preto e branco, com grande dificuldade de tratar sombras e efeitos de luz. O tempo de exposição era alto, então as fotos tinham que ser todas posadas. Não por acaso, o impressionismo atacou exatamente esses pontos: seus temas eram a luz, as cores, o movimento das ferrovias. E a arte da pintura seguiu seu caminho, partindo da mimese para a abstração.
Pois bem, eu não sei exatamente o que acontecerá, mas teremos um salto na produção de jogos. Tecnicamente, a qualidade média das ilustrações melhorará. Mas serão artes genéricas, sem vida, como foi comentado na live. "Falta alguma coisa" como disse o Leandro a 2:49:00, aproximadamente.
Uma das coisas que falta é contexto. O quadro de Velásquez que discutimos anteriormente é vivo porque ele tem contexto. Tem "entrelinhas". Tem uma cena acontecendo ali, existem relações e símbolos, as figuras estão, de algum modo, “vivas”. A imagem comunica coisas diferentes em diversas camadas.
E é aí em que os artistas podem brilhar. E isso já vem acontecendo.
A arte mais realista vem dando espaço para uma arte mais de quadrinhos, como nos trabalhos do Mihajo Dimitrievski, o Mico, que produz a arte dos jogos da Garphill Games. Seu estilo nos lembra que aquilo é um jogo e não um problema de pesquisa operacional.
Podemos pensar no que vai acontecer com o trabalho de outro famoso designer gráfico, o Ian O'Toole. Sua arte parece feita para um escritório corporativo. Isso pode parecer deletério, mas não é. O seu grande mérito é criar simbologias para lembrar as regras do jogo sem palavras e ele faz isso para jogos complexos, com muitas regras. Não é fácil criar uma linguagem gráfica coerente.
Por esse tipo de coisa, acho que jogos pesados, que precisam comunicar muito coisa através de seu design gráfico, ou jogos temáticos, que dependem muito da imersão para funcionar, ainda demorarão muito a dispensar o uso de artistas de calibre, pois eles agregam muito valor. Imagine um jogo do Vital Lacerda com o design gráfico do Race for the Galaxy. Qual a chance de funcionar?
A perda maior acontecerá em jogos menores, de baixo investimento, onde a chance de conseguir uma qualidade minimamente boa com baixo custo será praticamente irresistível para as editoras menores.
O que eu prevejo então é que teremos um abismo de preço ainda maior entre os jogos leves e pesados. Talvez se torne mais fácil trazer gente para o hobby com os jogos menores, que será um mercado concorrido e com preços melhores.
Porem, o salto para os jogos maiores se tornará ainda mais difícil, pois essas produções vem ficando cada vez mais caras e, mesmo que usem IA para produzir a arte ou conteúdo gráfico, provavelmente essa margem ainda ficará com os artistas ou editoras.
Mas, como foi dito na live, a arte não vai acabar. Ela tem valor e tem gente que pague por ela. Mas talvez cada vez tenham menos gente pagando mais.
Conclusão
Resumindo o que discutimos aplicando ao contexto dos board games:
O design gráfico e as ilustrações são partes complementares de um jogo. O principal é o seu conjunto de regras. Porem, as regras normalmente são algo muito abstrato e precisam sim de design gráfico, ilustrações, miniaturas, peças para dar vida ao jogo. Se o designer do jogo conseguir concebê-las com a ajuda de um computador, sem precisar contratar especialistas para tanto, uma grande barreira de entrada foi eliminada. Por outro lado, com o auxílio da mesma tecnologia, os especialistas que fazem design e arte do jogo hoje poderão fazê-lo de forma muito mais rápida e barata do que fazem hoje, ganhando na margem.
A IA nunca será capaz de criar a arte totalmente sozinha. Não acredito que chegaremos a um ponto onde você mande o manual de regras para a IA e ela, sozinha, gere todo o design gráfico e ilustrações. A concepção ainda será humana por muito tempo, pelo menos até que a IA atinja a "singularidade".
Dito isso, o uso de IA será tão disseminado que em algum momento, pelo menos para os casos mais corriqueiros, não saberemos discernir entre a arte tradicional e a arte gerada pelo computador. Todos os problemas que são conhecidos atualmente serão resolvidos ou por retoques humanos ou por novas rodadas de aprendizado das ferramentas. Os jogos mais simples ficarão mais baratos, mas os jogos de maior peso ou imersão ficarão mais caros, mesmo com o uso de IA pelos artistas, que continuarão imprescindíveis.
Eu acho um pouco engraçado o incômodo com o "capitalismo" quando só existe uma indústria de jogos de tabuleiros porque vivemos em uma sociedade capitalista. Só é possível viver de arte numa economia minimamente desenvolvida, onde exista gente que ganha mais que o suficiente para sobreviver e que possam realizar trocas voluntárias. O problema da obsolescência tecnológica existe, gera consequências sociais pesadas, é fato, mas é um dos preços do progresso. Infelizmente que eu saiba, não se encontrou uma solução ideal para isso.
Eu vejo também meus colegas muito preocupados em regulamentar, criar leis, achando que daí sairão coisas boas. Eu sou muito cético quanto a isso. Regulamentações fatalmente virão, afinal elas atendem a diversos lobbies e políticos adoram criar leis, mas dificilmente elas serão realmente úteis. Leis e regulamentações trarão burocracia, cartórios, impostos e levarão boa parte dos recursos que, de outra forma, iriam para quem está de fato criando os jogos.
Eu acredito muito mais na regulamentação feita pelo próprio mercado. Quando eu compro uma Graphic Novel, eu espero ver desenhos de qualidade. Quando compro um romance, eu quero apenas uma boa diagramação, a letra em um tamanho decente e uma fonte agradável de ler. Uma capa bonita no livro ajuda, mas não é o que faz o livro ser bom.
Para os jogos, é a mesma coisa. Um jogo como o Ozob com certeza não seria a mesma coisa sem uma arte elaborada. Só um humano criaria um palhaço maluco baseado no Bozo e que tem uma granada no nariz. Sem o contexto, aquele jogo não faz sentido nenhum, seria o mesmo que brincar com soldadinhos de chumbo.
Porem, quando eu jogo Xadrez, será que eu realmente preciso de uma arte muito elaborada para diferenciar as peças? Eu posso até ter isso, existem tabuleiros de luxo maravilhosos feitos por grandes artistas. Mas eu posso jogar com o tabuleiro da Xalingo, vendido a 40 reais na papelaria.
Nós queremos ou não que os jogos se popularizem e fiquem mais baratos, afinal de contas?
Depois de 4 anos escrevendo quase que mensalmente, fiquei praticamente 5 meses sem escrever, numa espécie de writer's block e agora, voltando de férias consegui preparar esse texto.
Além de questões profissionais que me deixaram sem cabeça para escrever, eu venho sentindo uma certa dificuldade em encontrar pautas onde eu consiga dizer algo que seja uma contribuição de fato ao Hobby.
Vou tentar voltar a rotina de colunas mensais. Queria agradecer ao Paulo pela compreensão sobre esse período de hiato que tive.
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
E jogo tem alma?!?!?!?!?! Alma de gente nem existe!!!!!! Esses caras do vídeo deveriam ir lá aprender sobre alma e espírito com o mestre Oswaldo do canal Tenda do Necromante, em vez de ficar de mi,mi,mi ou chorando em eventos públicos. Se a IA vem pra tirar artistas e designers da "jogada" e isso tornar os bgs mais populares e baratos (não sou criança, sei que isso não existe no capitalismo), então eu sou super a favor. Já não vou com a cara deles, tirando um ou outro como o incrível Igor Knopp e o elitista Vital Lacerda, que é o meu sonho de consumo. Minha inclinação política costuma ser à esquerda pra quase tudo, mas, em se tratando de board game, conhecendo bem o hobby odiento... VIVA O CAPITALISMO, VIVA O PROGRESSO E A CIÊNCIA, QUE VENHA A IA E O MONOPÓLIO, MAS COM FORÇA!!!!!!
"Imagine um jogo do Vital Lacerda com o design gráfico do Race for the Galaxy"
Eu só discordo de um único ponto aí:
A quantidade de efeitos diferentes no RftG já estava no nível do Vital. E, como designer gráfico, tenho uma opinião *BEM* diferente da maioria quanto à iconografia do RftG...
Eu acho o projeto de design gráfico dele datado pra hoje em dia, porém, eu acho a iconografia BEM boa. *BEM BOA MESMO.*
Explicando... o Race é um jogo que tem muitas cartas com efeitos diferentes. O "erro" dele foi transformar grande parte do texto, em símbolos. Você leva um tempo até aprender tudo, concordo que não é um jogo de fácil aprendizado.
*PORÉM*, a iconografia dele foi feita para que, o jogador experiente olhe o símbolo e entenda seu efeito. Ela *NÃO* foi feita pra facilitar o aprendizado (e honestamente, duvido que isso seja possível sem as cartas virarem um daqueles jogos que vc tem que adivinhar a palavra pelos desenhos).
Quando se estuda design, você aprende que simbologias podem ter vários usos: facilitar aprendizado, alertas, ignorar barreiras linguísticas, facilitar a vizualização rápida, etc. E a do Race cai perfeitamente no uso de "facilitar a visualização rápida". A prova disso é que, quando você aprende a interpretar os símbolos, dificilmente você vai se confundir... então eles conseguem condensar efeitos complexos com poucos símbolos, ao custo de terem uma barreira de aprendizado maior.
A IA é uma tecnologia que há tanto se especulava e que hoje vem se desenvolvendo em uma velocidade absurda. As diferenças entre algo produzido por IA hoje e algo feito anos atrás são muito significativas e não tenho dúvidas de que ainda virão muitos aprimoramentos. Dito isso, ela se desenvolve numa velocidade maior do que a gente consegue acompanhar em um quesito ético da nossa relação com ela, e por isso as discussões ainda são muito superficiais e vamos ter que falar muito mais ainda sobre IA pra chegar no nível de profundidade minimamente ideal para um uso pleno. Acho que deveríamos privilegiar a nossa visão da IA como uma ferramenta, algo do nosso uso e que por isso se ela é boa ou ruim vai depender do propósito que ela está servindo, e não como um agente com intencionalidade, com insights, imaginação e com uma reflexão sobre aquilo próprio que produz (a gente mesmo perde esse agenciamento e se assemelha à IA no modelo da alienação do trabalho, talvez por isso a gente acaba considerando-a uma inteligência - alienada - artificial, mas enfim). Quando você traz no seu tópico a parte da evolução da técnica na arte e que a IA é só mais uma etapa dessa evolução, eu discordo um pouco desse raciocínio. Em todo o processo que o homem passou das pinturas nas paredes das cavernas até a ilustração digital, o que mudou foram os meios e os instrumentos utilizados para, através da atividade humana, trabalhar sua imaginação e transformar sua ideia em algo visível. Com a IA, o homem pode até ter a ideia e usar um prompt, mas se consideramos como resultado final o produto da IA (e não como mais uma referência para se produzir e compor algo a partir dela, por exemplo), aí já deixou de ser um produto humano e o agenciamento passou a ser da máquina. Não foi mais a pessoa que usou de suas referências para criar a partir da ideia, mas a máquina que gerou tudo aquilo. Se antes era alguém que encomendava uma arte pedindo "preciso de um retrato com a minha esposa, nossos cachorros e crianças brincando na frente da casa" e um artista fazia, ele tinha a intencionalidade e a criatividade de produzir algo a partir do "prompt". Hoje, dessa maneira, o artista passa a ser a IA, que já não é mais ferramenta e sim agente, pois passamos a atribuir a ela a intencionalidade de produzir a arte que pedimos (apesar de ela não possuir intencionalidade alguma, só que atribuímos isso a ela). A partir daí, perde-se a intencionalidade estética, a composição das entrelinhas e o apelo visual de algo que é vivo e belo, e abdicamos do nosso processo criativo para produzir uma arte rápida e que serve ao fim produtivo do capitalismo, de sempre gerar mais por menos custo. É importante ressaltar que não estou dizendo que não existam esses problemas atualmente, de uma arte feita apenas para um fim comercial (por artistas), empobrecida criativamente e que tem apenas um propósito funcional pra que um jogo de tabuleiro funcione, por exemplo. A questão é que a IA tem a capacidade de potencializar intensivamente esses problemas, dependendo da maneira que virá a ser utilizada e que possa a ser a norma. Caso as "artes" produzidas por IA virem a norma e não se trabalhe mais nelas para além de um retoque para deixá-las mais aceitáveis, abdicaremos de todo o agenciamento da criação de arte e reduziremos elas a produtos, sem intencionalidade alguma, sem Eros, aquele T de criar algo belo mesmo que tenha no fim o contexto comercial. Em busca de reduzir os custos, as grandes empresas utilizarão apenas artistas de IA em suas produções e o mercado dos artistas visuais de fato ficará sufocado, sendo possivelmente algo independente e gourmetizado, pois partirá daquele T de criar algo vivo. E dessa forma, diria que de fato o mercado se regularia. Enquanto não é essa a norma, não conseguimos ter clareza do que pode vir a ocorrer caso as artes de IA se difundam demais, mas penso que seria algo como a trend das fotos feitas no estilo de Studio Ghibili publicadas nas redes sociais em massa, algo que acaba por si mesma mostrando a sua falta de vida e caindo no esquecimento ou até mesmo no cansaço e aversão a essas imagens. Os produtos de IA ficarão saturados, engolidos e sufocados no meio da massa que eles mesmos produziram, e nesse momento, a arte verdadeira, criada por artistas, se fará necessária. Aquela com a intencionalidade, com Eros, com T, que virá contra essa maré e então terá seu devido destaque e resgatará as pessoas para a experiência de algo vivo. Afinal, a arte sempre teve esse aspecto insurgente, reinventivo e que representa o movimento dialético da história.
Dito tudo isso, na hora que vi o tópico pensei no jogo Jardim Encantado da Ludofun, sobre o qual virei a cara no momento em que vi a arte produzida por IA. Eu, no momento das jogatinas, sou uma pessoa bastante sensorial, preciso de uma imersão a partir da estética dos componentes e da história que o jogo conta, uma composição gestáltica que vai para além da soma das regras+componentes+arte. Acredito que as ilustrações produzidas por IA acabam por justamente arrancar o jogador da imersão, quando ele conhece algo que tem a vida produzida por um artista. Um medo meu é as pessoas se acostumarem tanto com esse jeito meio morto-vivo de ser e que acabam se esquecendo de como é experimentar algo vivo de fato. Algo assim me ocorreu com a literatura, que você também menciona no tópico. A arte da capa pode até ser por IA, mas quando o livro traz ilustrações genéricas e inconsistentes feitas por IA no meio dele também, perco todo meu T em ler aquilo. É a questão da imersão. A gente mergulha naquilo que vive.
"Imagine um jogo do Vital Lacerda com o design gráfico do Race for the Galaxy"
Eu só discordo de um único ponto aí:
A quantidade de efeitos diferentes no RftG já estava no nível do Vital. E, como designer gráfico, tenho uma opinião *BEM* diferente da maioria quanto à iconografia do RftG...
Eu acho o projeto de design gráfico dele datado pra hoje em dia, porém, eu acho a iconografia BEM boa. *BEM BOA MESMO.*
Explicando... o Race é um jogo que tem muitas cartas com efeitos diferentes. O "erro" dele foi transformar grande parte do texto, em símbolos. Você leva um tempo até aprender tudo, concordo que não é um jogo de fácil aprendizado.
*PORÉM*, a iconografia dele foi feita para que, o jogador experiente olhe o símbolo e entenda seu efeito. Ela *NÃO* foi feita pra facilitar o aprendizado (e honestamente, duvido que isso seja possível sem as cartas virarem um daqueles jogos que vc tem que adivinhar a palavra pelos desenhos).
Quando se estuda design, você aprende que simbologias podem ter vários usos: facilitar aprendizado, alertas, ignorar barreiras linguísticas, facilitar a vizualização rápida, etc. E a do Race cai perfeitamente no uso de "facilitar a visualização rápida". A prova disso é que, quando você aprende a interpretar os símbolos, dificilmente você vai se confundir... então eles conseguem condensar efeitos complexos com poucos símbolos, ao custo de terem uma barreira de aprendizado maior.
Concordo, você me convenceu. De fato eu já me acostumei com a simbologia do RFTG e realmente ela funciona, depois que você a entende.
Retirei da resposta a sua mensagem porque ela é muito grande. Acho que você foi bastante profundo e não sei se tenho resposta pra tudo, não mesmo até onde concordo ou discordo. Vou tentar esclarecer o que penso.
Acho que concordamos que a IA produz uma “arte inodora”. Isso é, sem intenção, totalmente utilitária. É uma resposta a um prompt.
Eu concordo contigo que um humano dificilmente seria tão neutro a atender a um briefing quanto a IA, pelo menos em tese, deveria ser.
Por mais que a arte esteja em boa parte na concepção, sim, existe criação durante o processo de execução e com a IA isso se perde.
Por outro lado, o que acontece quando um artista humano atende a uma encomenda de longe, de alguem que ele conhece pouco, ou de um tema que não lhe é necessariamente caro?
O meu ponto é que muito da arte utilitária/decorativa usada em jogos cai nisso, e por isso ela se tornou tão vulnerável ao “ataque” da IA.
Obrigado por sua contribuição, muito boa para o debate. Realmente o assunto ainda é novo e não temos condição de ver todos os seus matizes!
Sou dentista, mas me formei em história por paixão. Então lá vão meus dois pitacos. o desenrolar, evolução (odeio essa palavra) ou processo histórico, chame-se como quiser, mostra uma coisa ao longo dos milênios que é permanente: a mudança. E ainda assim, o bicho gente sempre pensa que os últimos cinco anos é a totalidade da história. Por que alguns ganham sua vida fabricando máquinas de escrever, máquinas fotográficas digitais, sendo datilógrafo, ferreiro ou desenhista para capas de livros e board games, não significa que isso sempre será assim. E, infelizmente (ou não) o andar da história não se importa muito com nós, atores e vítimas de tudo. Já vimos muitas profissões desaparecerem porque máquinas às substituíram, ou porque o povo simplesmente não queria mais aquilo que o indivíduo fazia. Da mesma forma surgiram muitas profissões que nunca se imaginou que seriam necessárias.
E não tem lei, Estado, ou sindicato que consiga impedir o rolo compressor histórico, que a tudo e todos arrasta, muda e faz desaparecer.
Se a preocupação é tentar manter as coisas como estão, então pode parar de usar smartphone e assistir streaming, porque uma hora esses trens acabam, substituidos sem dó por outras coisas, como eles fizeram com a TV a cabo e a telefonia fixa.
Eu tô vendo, dentro dos meus 30 anos de profissão como dentista, ver a porcaria da odontologia virar um puxadinho do grande monstro que é o setor de estética. Me recuso a aplicar botox em madames fútil. E os dentistas que ganharam muito com implantes vão ver esse trabalho sumir, não esquecendo que a área de implantodontia se popularizou no Brasil tem uns parcos 20 anos. Se alguém duvida, basta olhar para as bocas de trinta e poucos anos e vão ver que são poucos dentes perdidos. Na molecada, com seus 15 a 25, é mais raro ainda. Vou assinar um abaixo-assinado para defender os direitos do implantodontistas em continuar fazendo implantes, mesmo que daqui a alguns anos não existam mais pacientes que precisem deles? Não ô nem aí. Até porque vejo gente me criticar por não querer me "modernizar" entrar pesado no marketing digital, ficar metade do meu tempo livre no instagram para arrumar paciente. Não sou eu, não é pra mim, eu que me emende, já dizia Raul Seixas.
Após a vergorragia típica deste que vos escreve deixo meus mais sinceros desejos: Boas jogatinas e mais um dia a todos.