Obs.: apesar do texto ter sido inserido na página de Catan, que é uma referência, um marco na virada dos clássicos aos modernos, não pretendo falar especificamente dele, mas dos modernos em geral.
Introdução
Os jogos de tabuleiro modernos não possuem uma fórmula fixa e podem representar desde jogos de destreza, como os de empilhar cartas, até jogos estratégicos e demorados de guerra. A possibilidade de chamá-los de modernos parte de alguns elementos mais ou menos comuns, presentes mais intensamente em alguns jogos, menos em outros, mas que nos permitem diferenciá-los, especialmente, em relação aos jogos de tabuleiro predecessores, reunidos na categoria dos clássicos.
Como não encontramos nenhum outro texto que tentasse falar unicamente sobre essas diferenças e/ou particularidades, o presente escrito surgiu como um esforço de sistematização em relação aos jogos modernos, muito embora, apenas como um esboço, preliminar, sem nenhuma intenção de esgotar a matéria. Em verdade, desponta como um início na conversa, contando com discussão para amadurecimento.
A intenção do texto, portanto, não é histórica, de remontar a história dos jogos de tabuleiro modernos, mas apenas de elencar, sugerir alguns dos seus elementos, princípios e/ou traços essenciais comuns, sem nenhuma intenção de encerrar o rico debate. Portanto, os pontos elencados a seguir não são exaustivos e, muito menos, ordenados.
O seu objetivo é o de apenas elencar alguns desses elementos encontrados e que podem permitir, com maior ou menor segurança, a identificação dos jogos de tabuleiro modernos. Inclusive, temos bem sólida a noção de que os jogos modernos se originam e se desenvolvem a partir dos jogos clássicos e que é possível identificar até mesmo uma fase de transição entre eles, ainda que não seja a intenção aprofundar-nos nesse sentido.
Temática
Os primeiros elementos que poderíamos mencionar são os que se concentram em torno da temática. Os jogos de tabuleiro modernos têm os adultos como público alvo, em sua maioria. Por esse motivo, apresentam uma crescente complexidade nos temas abordados, incluindo: arte, literatura, história, cultura, etc.
Embora existam jogos de tabuleiro e editoras dedicados ao mercado infantil, também é verdade que outros fazem questão de destacar, na própria caixa, inclusive, que não são brinquedos, mas itens de colecionador. Catan, por exemplo, muitas vezes lembrando dentre os primeiros modernos, não possui apelo infantil, seja no tema ou nas regras.
Nesse sentido, no último censo da Ludopedia, realizado no ano de 2020, constatou-se que 75% dos jogadores possuem ensino superior completo ou graduação superior, 85% trabalham e 67% possuem mais de 26 anos, dados estes que indicam um perfil sociológico não só de consumidores, mas de jogadores e colecionadores adultos (1):
Enquanto os jogos clássicos, geralmente, apresentam poucos elementos temáticos, quase sempre abstratos, os modernos passaram a oferecer, progressivamente, uma forte imersão na temática proposta. Os jogos O Nome da Rosa e Futuropia, por exemplo, falam, respectivamente, sobre um romance histórico e da gestão do tempo livre em uma utopia futurista em que as pessoas não precisam mais trabalhar, em razão do avanço tecnológico.
Além disso, os jogos de tabuleiro modernos têm amplificado o aspecto imersivo. Desse modo, temos um número crescente de jogos legacy disponíveis, que acrescentam elementos modificáveis e campanhas, e que propõem aos jogadores o desenrolar de uma história completa, como nos exemplos mais óbvios e bem sucedidos de Gloomhaven e Pandemic Legacy, e não mais apenas a ambientação em torno de determinado tema.
Por outro lado, se ainda temos jogos abstratos dentre os modernos mais comercialmente procurados, tais como Azul e Sagrada, também é verdade que estes retratam temáticas bastante particulares, ambos falando sobre arquitetura. Enquanto Azul retrata os azulejos portugueses do século XVI, Sagrada aborda a construção dos vitrais da Sagrada Família.
Os jogos de tabuleiro modernos, portanto, tendencialmente, têm apresentado uma crescente presença e pluralidade temáticas, trazendo, muitas vezes, temas bem particulares, quando não inusitados, além de complexificação narrativa, com adição dos jogos legacy e das campanhas. Ainda, como os adultos formam grande parte do público-alvo, seja como jogadores casuais ou colecionadores, reforça-se o uso de temas diversos voltados a esse público.
Estrutura
Além dos elementos temáticos, os elementos que se concentrem em torno das estruturas dos jogos de tabuleiro modernos podem ser destacados. Ao contrário dos jogos clássicos (e talvez por isso mesmo sejam chamados de clássicos), os modernos passaram a incorporar uma cada vez maior capacidade de inovação e pluralidade de estruturas, tornando-os, cada um, geralmente, uma experiência de jogo diferente.
Mesmo nos jogos mais simples e rápidos, a questão da inovação, ou seja, a forma como o jogo se desenvolve e articula as suas mecânicas, é sempre avaliada e valorizada quando bem resolvida. Alguns jogos são até mesmo chamados de elegantes, como Concordia, por exemplo, dado o alto nível de fluidez dentre as diversas mecânicas que compõe a sua estrutura.
Nos jogos clássicos, as ações são geralmente simples, como mover peças numa grade predeterminada, porém, nos modernos, esses elementos são reimaginados para oferecer mais possibilidades de ações e, consequentemente, de decisões relevantes no desenvolvimento da partida ou mesmo de estratégias diversas para se vencer a disputa. Tikal, exemplificando, oferece diversas ações diferentes para cada jogador, ações estas que são preponderantes no desenrolar e resultado da partida.
Por conta justamente dessa pluralidade e riqueza em relação às estruturas presentes nos jogos de tabuleiro modernos, é árdua a tarefa de encontrar e reunir outras semelhanças entre os mesmos, nesse aspecto. Ainda assim, arriscamos afirmar que é possível sugerir mais alguns elementos que tendem a estar presentes na generalidade dos modernos, mesmo que não em todos.
Nos jogos de tabuleiro modernos, as regras tendem a ser balanceadas. Ainda que os jogos ofereçam modos de jogos diferentes, como competitivos e cooperativos, por exemplo, e possibilitem estratégias diversas na sua jogabilidade, além de inúmeras possibilidades aos jogadores, como representações, poderes e posições dispares, os jogos de tabuleiro modernos, em geral, tendem a apresentar regras balanceadas, com o objetivo de tornar as partidas mais lúdicas.
Pontuo que o que definimos, no presente texto, por balanceamento nas regras não é sinônimo de equilíbrio nas partidas. Como dito, os modernos se destacam por sua diversidade e uma das mais importantes é justamente a possibilidade de se romper com o equilíbrio nas partidas. Porém, essa quebra tende a ser sempre funcional, potencializando o engajamento, com decisões importantes a serem tomadas e que influenciam no resultado da partida.
Até mesmo o aparente desequilíbrio verificado nos jogos assimétricos é algo intencional e que só tem êxito, como defendemos, mantendo-se a harmonia em relação ao tema e à estrutura geral proposta e que, sendo o referido desequilíbrio funcional antecipadamente conhecido pelos jogadores, permite-se que sejam estabelecidas estratégias eficazes para cada partida, independentemente do lugar em que se ocupa de início.
O balanceamento nas regras também se expressa noutros elementos dos jogos de tabuleiro modernos que, se não estão presentes em todos os jogos, são, consensualmente, uma preocupação recorrente dos designers, tais como: a gestão do número de jogadores, da sorte e do tempo, sempre com o objetivo de se manter a experiência lúdica de todos, o máximo possível.
Nesse sentido, parte significativa dos jogos de tabuleiro modernos preocupa-se com a manutenção do número de jogadores, evitando-se a eliminação antes do final da partida. Esse fato é decorrente de uma tendência de se manter o interesse dos jogadores até o final das sessões, muito embora existam, obviamente, jogos fundados justamente na mecânica de eliminação, como o genial Coup.
Por sua vez, a questão da gestão da sorte, que definimos enquanto a busca por um melhor aproveitamento da aleatoriedade ou mesmo a sua eliminação, por meio de regras balanceadas, também se dá num sentido de garantir o engajamento de todo o grupo de jogadores, afastando-se, sempre que possível, o sentimento de frustração exagerado ou, ao menos, mitigando-o.
Sobre a gestão do tempo, particularmente, acrescentamos que ela pode se expressar de duas maneiras: na gestão do tempo de partida e do tempo de efetiva participação dos jogadores. Como vimos nos elementos temáticos, os jogos de tabuleiro modernos têm nos adultos o maior público de consumidores e jogadores. Dentre trabalho, estudo e família, sabemos que tempo livre, infelizmente, é um recurso cada vez escasso na vida dos adultos.
Assim, não é exagero afirmar que uma parte relevante dos jogos modernos possuam duração entre 1 e 2 horas por partida, de modo a adequar-se à corriqueira falta de tempo para sessões mais longas. Mesmo dentre os mais pesados, jogos que propõem tempo de partida superior à 3 ou 4 horas de jogatina formam uma pequena parte dentre o universo de lançamentos.
Por outro lado, a questão do tempo também se demonstra importante na participação direta de cada jogador, de modo que se permita um sentimento de imersão na partida e que a mesma tenha um início, desenvolvimento e final satisfatórios, afastando a monotonia e a mera repetição de ações ou padrões pré-determinados. Ticket to Ride, nesse sentido, é uma preciosidade em criar partidas equilibradas, com turnos rápidos e tempo de partida em torno de 60 minutos.
Passadas tais generalizações, sem qualquer pretensão de esgotar o debate, como sublinhamos anteriormente, devido mesmo à própria dificuldade de se reunir características comuns às estruturas dos jogos de tabuleiro modernos, destacamos que tais estruturas se tornaram cada vez mais diversas, tanto nos jogos simples quanto nos complexos, e que a busca pela inovação no desenvolvimento e no uso das mecânicas se tornou uma marca registrada dos modernos.
Além da inovação e pluralidade, é possível perceber também, de modo geral, um esforço dos designers de construir jogos não apenas balanceados, mas que mantenham, também do ponto de vista estrutural, a experiência lúdica de todos os jogadores e durante toda a partida, lançando mão de técnicas variadas, dentre as quais, podemos destacar, como exemplos mais ou menos presentes, a gestão do tempo e da aleatoriedade.
Experiência
Como uma síntese entre a temática e a estrutura, temos a experiência que os jogos de tabuleiro modernos proporcionam aos jogadores. Uma experiência social, em primeiro lugar.
Apesar de termos bons jogos e modos de jogo solo, sentar-se à mesa com familiares e amigos para jogar jogos de tabuleiro, desfrutando de tempo livre, de qualidade e com ludicidade, é uma experiência milenar, gratificante, e arriscaríamos dizer que, diante dos desafios impostos pela vida no capitalismo flexível, onde impera o isolamento, o individualismo, a reclusão, o esgotamento emocional e a perda da qualidade dos vínculos afetivos, soa quase como um ato de afeto e resistência.
Noutra ponta, a experiência particular propiciada pelos jogos de tabuleiro modernos aos jogadores os elevou à verdadeiras obras de arte, objetos de desejo e de colecionismo, com tiragens limitadas, cuidadosamente produzidas, com preços e procura crescentes. Em oposição ao que se expressa no senso comum em relação aos jogos clássicos, os jogos modernos deixaram de ser vistos genericamente como meros passatempos e vieram a exercer um protagonismo a partir das experiências singulares que oferecem para as pessoas, tal como um bom filme, poema ou livro.
Enquanto os clássicos possuem, em sua maioria, autores perdidos no tempo e regras estabelecidas por domínio popular, os jogos de tabuleiro modernos são assinados por designers que desenvolvem, muitas vezes, estilo e características próprias que se expressam em cada um dos seus jogos lançados, tais como, dentre tantos exemplos possíveis, Uwe Rosemberg, Stefan Feld e Vital Lacerda. É possível perceber, dentre os modernos, até mesmo a formação de escolas de design e de identidades diversas dentre os jogadores, tais como: euro, war e amerigamers.

Para o enriquecimento da experiência, os jogos de tabuleiro modernos, progressivamente, aproveitando a facilidade comercial e tecnológica que marca o capitalismo flexível e mundializado, passaram a ter produção internacional e incluir uma gama variada de componentes, como as miniaturas em 3D impressas em plástico, por exemplo, e incorporar elementos de arte e de desenvolvimento gráfico, cada vez com mais qualidade, deixando as partidas, muitas vezes, tão agradáveis quanto imersivas.
Além das formas contemporâneas de produção e circulação de mercadorias, a internet também influenciou na experiência proporcionada pelos jogos de tabuleiro: possibilitou que os jogos de tabuleiro modernos fossem jogados em formatos digital e multiplayer e favoreceu a sua divulgação em locais antes sem grande tradição, além de trazer outras facilidades, como o uso de aplicativos para auxílio ou controle das partidas e permitir que print and plays (PNP) chegassem a públicos diversos, dentre outros.
Assim, como uma síntese entre temática e estrutura, é a experiência proporcionada pelos jogos de tabuleiro modernos o seu grande diferencial. A experiência social, especialmente, propicia que familiares e amigos se reúnam para desfrutar de tempo livre e de qualidade. Além disso, passaram a oferecer, cada um, uma experiência singular, enquanto obras autorais. Por outro lado, os modernos utilizam-se, cada vez mais, dos recursos tecnológicos e de comunicação para entregar experiências cada vez mais imersivas, tanto na produção, quanto na circulação, ampliando o acesso ao universo dos jogos de tabuleiro.
Conclusão
Obviamente, esse texto não é e nem pretende ser exaustivo, a sua intenção foi apenas a de refletir sobre os jogos de tabuleiro modernos, em sua generalidade, e os elementos que os constituem, com maior ou menor presença, ainda que seja esta uma tarefa árdua, levando-se em consideração a riqueza e pluralidade naturais de temáticas e estruturas presentes no universo de jogos que temos atualmente, sempre com incontáveis lançamentos a cada mês.
Foram identificados três elementos principais nos jogos de tabuleiro modernos: temática, estrutura e experiência. Em relação à temática, destacamos que, levando-se em consideração que os adultos formam grande parte do público-alvo dos modernos, verifica-se, tendencialmente, o uso de temas diversos voltados a esse público, além da incorporação de narrativas complexas em alguns modernos, com a chegada de jogos legacy e com campanhas.
Quanto à estrutura, levando-se em consideração que os elementos centrais dos modernos se desenvolveram ao longo de toda a história dos jogos de tabuleiro, tendo nos clássicos a sua origem, bebendo nessa fonte até os dias atuais, identificamos que as mesmas se tornaram cada vez mais diversas e que a busca pela inovação no desenvolvimento e no uso das mecânicas se tornou algo bastante valorizado.
Ademais, que é possível perceber, de modo geral, um esforço dos designers de construir jogos não apenas balanceados, mas que sejam, também do ponto de vista estrutural, lúdicos e interessantes para todos os jogadores e durante toda a partida, por meio do uso de técnicas variadas.
Enfim, em relação à experiência, enquanto síntese entre temática e estrutura, destacamos a importância da experiência social proporcionada pelos jogos de tabuleiro modernos e o fato de que, tendencialmente, os mesmos passaram a serem considerados até mesmo como peças de arte, assinadas por designers especializados, que imprimem, cada vez mais, estilos pessoais em seus lançamentos. Além disso, essa experiência é expandida rapidamente por meio do uso de tecnologias atuais, de diversas formas, tais como: na produção, circulação, divulgação, discussão e acesso aos jogos, favorecendo uma imersão cada vez maior.
Por: Linauro. Apaixonado por literatura, música e jogos, desde sempre. Descobriu nos jogos de tabuleiro uma desculpa perfeita para passar mais tempo com amigos e pessoas amadas.
Imagens: acervo pessoal.
Efusivos agradecimentos à Bruno Marchena, Mayrant Gallo, Paolo Bruno, Lidi Nunes, Gilson e ao Podcast Invasion BG, cujos papos deram origem ao presente texto.