Muito se fala sobre as novidades, o hype, os jogos do momento, que diga-se de passagem são cada vez mais numerosos a cada ano que passa. Por outro lado, de uns tempos para cá, eu até tenho visto uma postagem ou outra sobre consumo consciente, nadar na vertente contrária do consumismo desenfreado, que "menos é mais" etc., mas ainda sinto falta de alguns pontos que gostaria de elaborar neste texto. Vale ressaltar que o objetivo desta reflexão não é criticar aqueles que têm centenas de jogos ou estabelecer um modelo de conduta ideal. O importante é ser feliz, seja com muitos, com poucos, com novos, com velhos, jogando, comprando, não importa. O fato é que eu já estive dos dois lados da moeda, e hoje venho trazer alguns aprendizados que tive ao longo da minha trajetória no hobby, que podem ou não servir para você, e tudo bem : ).
Quanto menos você tem, mais você valoriza aquilo que tem.
Em determinado momento da minha jornada consumista, eu percebi que eu tinha tantos jogos, mas tantos jogos, que realisticamente eu nunca iria jogar todos eles, mesmo se eu quisesse. Primeiro porque eu não teria tempo, segundo porque eu não teria energia para aprender e estudar esses jogos ao ponto de poder ensiná-los para outras pessoas, mas principalmente porque eu não encontraria pessoas igualmente dispostas e dedicadas a aprender tantos jogos diferentes em tão pouco tempo, dado o meu ritmo de aquisição de novos jogos. Que atire o primeiro meeple (ou miniatura) aquele que nunca ouviu "ah, vamos jogar aquele que a gente já sabe jogar...".
Às vezes, você tem sorte de ter todos esses elementos em harmonia ao seu alcance: tempo, disposição e parceiros de jogo igualmente disponíveis e dispostos, mas infelizmente essa não era a minha realidade, então a ficha começou a cair de que eu tinha jogos demais para a minha capacidade. Eu tinha jogos demais do tipo "ah, mas eu queria TANTO jogar esse, esse jogo é tão perfeito, maravilhoso, melhor jogo da minha vida que eu nunca coloquei na mesa!". Será que era isso tudo mesmo? Às vezes, sim. Às vezes, eu estaria deixando de jogar o jogo que mudaria a minha vida, mas será que eu tô perdendo tanto assim em não jogá-lo? A ignorância é uma bênção, se eu não conheço, eu não tô perdendo nada, não tem FOMO para aquilo que eu não sei que existe. Eu já não tenho tantos outros jogos bons que eu já sei jogar, que me trazem prazer e que já foram aprovados pelo meu grupo de jogo? É difícil de admitir, mas jogos de tabuleiro são, em sua maioria, responsáveis por experiências sociais, e para isso precisamos de mais pessoas, salvo os jogos solo.
Quando você tem muitos jogos, a sua atenção fica dividida entre todos os títulos cada vez que surge uma oportunidade de colocar algum deles na mesa. Parece que você fica navegando pelo catálogo de séries e filmes da sua plataforma de streaming e no final das contas você não viu nada, só o catálogo mesmo. "Ah, vamos jogar esse aqui, que todo mundo gosta! Se bem que tem esse aqui que eu já estou para jogar há um tempo... e tem esse novo que eu tô doido para colocar na mesa!"...
Quando você tem poucos jogos, você não tem esse "problema". É como viajar de avião na classe econômica.
"Gostaria de jantar, senhor?"
"Quais são as opções?"
"Sim e não!"
Brincadeiras à parte, reforço que não tem nada de errado em ter uma estante (ou um quarto) repleta(o) de jogos. Às vezes, é exatamente daí que você deriva o seu prazer no hobby, você se orgulha da sua coleção. É como uma biblioteca, você não precisa ler todos os livros só porque eles estão ali, eles têm uma função em potencial "se um dia eu precisar consultar o tópico tal, esse livro estará à disposição". Com jogos talvez a dinâmica seja um pouco diferente, você não é obrigado a jogar só porque você comprou um jogo. Mas fica a reflexão, qual é o seu propósito com o hobby? Se for colecionar, tá tudo bem também, desde que você esteja consciente disso. Depois de uns anos, eu descobri que eu gosto mesmo é de jogar, e eu não estava jogando, ironicamente, porque eu tinha jogos demais, se é que isso faz sentido. O que nos leva ao próximo tópico...
Você joga melhor os jogos que tem.
Podemos dividir os jogadores em dois extremos: os especialistas e os experimentadores, e cada jogador se posiciona em uma zona cinza entre eles. O especialista é aquele que sabe tudo de um determinado jogo, ele vai te ensinar o jogo perfeitamente sem sequer recorrer ao manual, ele sabe todas as regras, as exceções, as estratégias, já jogou esse jogo dezenas, senão centenas de vezes. O experimentador é o contrário: abriu o jogo, aprendeu a jogar, jogou uma vez, fez sua avaliação e "Próximo! Semana que vem tem novidade!". Claro que estou ilustrando duas caricaturas, ainda que saibamos que essas pessoas muito provavelmente existem, e, novamente, não tem nada de errado com isso.
Pessoalmente, percebi que eu era um especialista em jogar os jogos que eu realmente gostava, mas um experimentador em potencial que nunca chegava a jogar o que comprava. Eu queria ser um experimentador, mas as circunstâncias já citadas e a minha vontade mais implícita não deixavam. Na realidade, eu queria mesmo era jogar aquilo que já me trazia alegria, um certo conforto e falar "nossa, jogo tal é bom mesmo, né?" ou então jogar um jogo novo só para falar "ah, mas não é tão bom quanto o jogo tal que eu gosto tanto". Eu já tinha visto tanta coisa nesse meio que dificilmente eu encontrava um jogo da categoria "é, esse é ainda melhor do que aquele jogo que ocupa o mesmo espaço mecanicamente!". É uma disputa desleal, o jogo que você já tem traz consigo uma bagagem emocional, de experiência, conforto. O jogo novo tem que quebrar essa barreira e provar o seu valor, e quanto mais você joga o velho, dado que ele é realmente bom, mais ele envelhece bem, como um bom vinho, e mais difícil será te surpreender naquela categoria de jogo.
Você não precisa ser um especialista nato. Jogo é para se divertir, não é para se pós-graduar no jogo. Mas convenhamos que é muito mais confortável para você e para os demais quando todos já sabemos as regras, já fazemos a preparação e não somente sabemos o que fazer como também já temos uma bagagem estratégica que nos permite elevar o nível da competição na partida. Alguns dizem que "jogo tal parece trabalho, não parece diversão", mas para mim, trabalho mesmo é ficar memorizando um monte de regras. Por isso...
Você não precisa consultar inúmeros manuais.
Eu gosto de jogar, eu gosto de aprender e descobrir novos jogos, mas eu não tenho memória fotográfica, e se tem uma coisa que eu não suporto é jogar o jogo com as regras erradas. Imagina você terminar a partida com aquela sensação de "tem algo de errado nesse jogo" ou "aquele efeito é muito quebrado" e só descobrir que jogou errado no final. Outra coisa que quebra a dinâmica da partida para mim é ter que parar para consultar o manual a cada jogada.
Eu sou um cara chato, quando eu vou ensinar um jogo novo, eu gosto de ter tudo esquematizado na minha mente. Feita a preparação, já tem toda uma narrativa de como eu vou ensinar, os exemplos que eu vou dar etc. Então eu leio o manual, simulo umas jogadas sozinho, assisto a vídeos para o jogo ficar ainda mais visual. Isso tudo dá muito trabalho e consome tempo e energia, que eu falei lá em cima que eu não tenho tanto. Não precisa ser dessa forma, mas eu prefiro isso a "espera aí que eu vou ver aqui no manual, um minutinho só...". Quando você domina o jogo, esses momentos se tornam mais raros, e a partida flui com mais naturalidade.
Mas agora vamos falar de um aspecto um pouco mais físico de uma coleção enxuta.
É mais fácil (e barato) de armazenar, conservar e transportar.
Menos jogos, menos espaço consumido na sua residência, o que resulta em uma estante menor, por exemplo. É mais fácil de limpar, os jogos veem mais mesa, você abre mais as caixas dos jogos para eles "respirarem", então as chances de mofo diminuem se você mora em uma região úmida.
É mais fácil até de selecionar os jogos que serão jogados. Certa vez, eu assisti a um vídeo em que atrás do influenciador dava para ver parte da estante dele. Devia haver uns 8 jogos empilhados. Eram jogos pequenos, mas mesmo assim pensei "imagina a pressão que os de cima não estão fazendo no jogo que ficou na base, a caixa vai ficar toda detonada..." e também "imagina sempre que eu quiser jogar algum jogo que esteja embaixo eu ter que tirar esse Tetris de jogos que ficaram em cima...".
Há dois meses atrás eu me mudei para um lugar menor. Minha coleção hoje não é tão grande, mas já foi. Eu sempre me lembro do trabalho que foi mover todas as caixas em segurança de uma casa para a outra quando a minha coleção era enorme, foi pesado, literalmente. E mesmo assim, por mais plástico bolha que eu colocasse, sempre aparece um jogo danificado no transporte.
E por último, mas não menos importante.
Você só joga jogo top.
Este último tópico retoma o primeiro, mas numa perspectiva diferente. No começo do hobby, eu adorava ver listas de "top 100" jogos. Para os 50 últimos, eu não dava muita bola, assistia somente pelo entretenimento da coisa, mas à medida que chegávamos ao cume, ao creme de la creme, o meu interesse subia proporcionalmente. "Qual será o top 1 de [insira o nome do seu influenciador favorito aqui]?". E eram justamente aqueles jogos que eu ia caçar em seguida.
E ali eu percebi duas coisas:
1. Eu estava assistindo a top 100's demais.
2. O top 10 dos outros não era nem o meu top 50.
Gosto é pessoal e intransferível.
A questão aqui é: "para que você vai manter na sua coleção um jogo que você não gosta, ou até mesmo um jogo 'mais ou menos'?".
Você jogou, deu aquele benefício da dúvida, jogou mais uma vez, o jogo ainda assim não convenceu. Vai deixá-lo ali ocupando espaço e acumulando poeira na estante pra quê? Lixo de um, ouro do outro, essa é a beleza do hobby. Venda esse jogo, doe para alguém que vai apreciá-lo mais do que você se não valer a pena o esforço de vender. Traga uma nova pessoa para o hobby.
Note que isso é diferente de manter um jogo que uma determinada pessoa não gosta, mas você gosta. Neste caso, você só está esperando uma oportunidade de jogá-lo em uma outra configuração de jogadores (mas se essa pessoa for a sua principal parceira de jogo, talvez você devesse dar um pouco mais de peso ao fato de ela não gostar desse jogo, principalmente se ela morar com você, afinal muito provavelmente você quase sempre vai jogar com ela).
Mas voltando à questão dos top 100's, por mais que jogar seja o trabalho do influenciador e ele realmente jogue e aprecie aquilo tudo (o que particularmente tenho minhas dúvidas), eu não deixava de pensar em outras duas coisas:
1. Para que que eu vou jogar o top 78 se eu posso jogar o top 1?
2. Será que se ele não tivesse jogado mais o top 93, ele não teria virado um top 5?
Quando eu era criança, eu até tinha uma quantidade razoável de jogos de tabuleiro: War, Jogo da Vida, Detetive, Banco Imobiliário, Combate e "Uno" (o meu era "Can-Can"). Eu jogava MUITO esses jogos. Mesmo hoje considerando-os jogos mecanicamente fracos ou insuficientes, eu ainda tenho um profundo carinho e respeito por eles, dados o seu contexto e a sua época. E aqueles formavam meu "top 5" infantil. Na realidade, eles eram indiscutivelmente o meu top 5, eu só conhecia aqueles 5 jogos de tabuleiro.
O fato é que eu não questionava se estava faltando mais variedade, eu jogava aquilo à exaustão e era feliz no simples. Mas uma coisa é certa: dentro daquele escopo, eu certamente só jogava o que era "top".
É importante conhecer o que "não é top" para você definir, por contraste, o que é top pra você. Algo só é gostoso porque você tem uma contrapartida desagradável ou insossa para estabelecer esse contraponto. Pode ser que se você hoje jogar o seu top 1 até enjoar, ele deixe de ser o top 1 e até desça vertiginosamente no seu conceito, ou não, afinal ele é o top, não é mesmo? É aquele jogo que você levaria para uma ilha deserta. Do mesmo jeito que às vezes o seu top 1 não é pau pra toda obra, é um jogo específico, restrito, pesado, demorado, que não vai atender a todos os públicos e de fato ele realmente não vá ver tanta mesa assim. Ele é o top do seu coração, da sua memória afetiva, mas não é o top da sua realidade.
Vou dar um contraexemplo aqui sem citar nomes. Lá no começo do hobby, quando eu conheci os jogos modernos, havia um jogo cheio de take that que meus parentes ADORAVAM jogar. O bichinho do hobby já tinha me pegado, eu estava sempre escavando novidades, procurando jogos mais complexos, estratégicos, inteligentes. Eu queria apresentar esses jogos a eles nas reuniões de família, mas eles só queriam jogar aquele jogo que tinha dedo no olho e era super previsível. De fato, ele foi legalzinho nas 3 primeiras partidas, mas envelheceu mal. Todos os meus parentes faziam sempre as mesmas jogadas, o jogo envolvia blefe, e eles se achavam o máximo por gerar aquela pulga atrás da orelha dos outros e saírem ilesos com um blefe bem-sucedido. Eu, por outro lado, já estava cansado daquilo. Eu não aguentava mais sempre a mesma coisa, as mesmas jogadas, o mesmo jogo. Eu levava 3~4 caixas para a casa deles, a gente só jogava aquilo. Era um relacionamento tóxico intermediado por aquele jogo.
Eu vendi o jogo.
Eles me odiaram por meses e não quiseram jogar os outros jogos em forma de protesto. O problema, no final das contas, estava na incompatibilidade da mesa. Aquela mesa não era pra mim, parentes parentes, parceiros de jogo parceiros de jogo.
Eu gosto muito de certas mecânicas: controle de área, leilão, construção de motores, alguns carteados, enfim. Claro que cada jogo é diferente, tem suas particularidades, nem todo jogo de alocação de trabalhadores é igual, nem todo leilão é igual, nem todo carteado é igual, eles têm os seus twists em particular, mas será que você precisa de 5 jogos diferentes que utilizam a mesma mecânica principal? Vai dizer que você nunca sentiu aquele déjà vu? Aquele "ah, é tipo jogo tal!". E fatalmente a comparação imediata vem à tona, "é, prefiro aquele lá, jogo tal é melhor". Às vezes, eu vejo pessoas reclamando de "nossa, eu adoro jogo tal, mas eu nunca jogo porque tô cheio de jogos novos que eu ainda não joguei...", você percebe a contradição?
Considerações finais
Repare que eu falei sobre ter uma coleção pequena e não sobre necessariamente jogar poucos títulos. Você pode conhecer inúmeros jogos sem necessariamente comprá-los. Você também não precisa ser aquele que vai ensinar o jogo aos demais. Você pode testar online, no Boardgame Arena ou no Yucata, por exemplo, além de outros sites menores. Não é a mesma coisa, mas essas plataformas de jogos ajudam a ter uma noção mais prática do que um simples review potencialmente enviesado. Você também pode visitar uma luderia ou simplesmente jogar os jogos dos seus colegas.
Ter uma coleção vasta tem suas vantagens, você tem à sua disposição um arsenal lúdico para qualquer ocasião, do solo heavy game até o jogo festivo para 99 pessoas. Não tem tempo ruim, se aparecer a ocasião, você tem na mão o jogo pronto para ela. Quem nunca chegou a uma noite de jogatina em que deveria haver 4 pessoas, mas alguém trouxe o(a) namorado/primo/amigo(a) sem avisar?
Este texto é meramente um exercício de autorreflexão. É uma parada em meio a esse frenesi de novidades para colocar a cabeça no lugar e avaliar se estamos no caminho "certo". Certo entre muitas aspas porque, spoiler: não existe gabarito, e isso vale tanto para tamanho quanto para qualidade da sua coleção.