Ultimamente venho notando que eu sou um apreciador de coisas nichadas em diversos graus, como por exemplo provar todos os sorvetes de coco pelos quais eu passo e rankeá-los mentalmente, planilhas de excel otimizadas e organizadas no nível do pixel e carros franceses (que agora podem ser chamados de italianos, talvez?). Entre esses gostos peculiares, um deles eu já comentei aqui diversas vezes, que são os jogos 18XX outro é o death metal técnico (clássico e moderno). Bandas como Inferi e Spawn of Possession (agora Retromorphosis!) são tudo que eu preciso para encarar qualquer adversidade na rotina de trabalho ou no trânsito. Sobre 18XX, já relatei aqui o motivo de eu gostar tanto.
Para introduzir rapidamente os dois temas: 18XX é um sistema de jogos de trens e você pode ler mais sobre isso (e o porquê de eu gostar tanto) nesse tópico aqui. Death metal técnico é um subgênero do death metal, que por sua vez é um subgênero extremo do heavy metal. O assim chamado techdeath surgiu nos anos 90 com bandas como Death, Cynic e Nocturnus, além de ter forte influência do thrash metal progressivo de bandas como Coroner e Voivoid, incorporando sons, técnicas e instrumentos bastante exigentes em termos de perícia (daí o nome technical), além de velocidades frenéticas. Consolidou-se lá pela década de 2000 com algumas das bandas que serão citadas nesse tópico mas também com outras como Beyond Creation e Psycroptic.
Apesar de eu gostar tanto desses dois, é normal que eles sejam rechaçados (e já tá aí o primeiro ponto em comum): 18XX porque parece trabalho: demora, é feio, tem que fazer muita conta e usar planilha. Metal extremo porque é feio, fala coisa feia (às vezes), soa feio, os caras gritam feio. Porém, para as 2 ou menos unidades de pessoa que se interessam por coisas similares a essas e ao mesmo, vou deixar aqui uma brincadeira rápida que passou pela minha cabeça nesta noite ociosa de sábado. Deixarei indicações de jogos para os fãs de metal e e bandas de metal para os fãs de jogos pesado, de forma que o jogo tenha um parelo com o artista e vice-versa. Vai que você se interessa por algo novo.
Atheist e 1846: a porta de entrada ideal
Como não podia deixar de ser, é bom começar pelo começo. O mais óbvio seria listar Death e 1830, então deixo esta menção honrosa aqui, mas não vou abordar dessa forma primeiro porque não sou muito fã de 1830 - embora seja do Death -, mas principalmente porque ambos são muito
vanilla e conhecidos. O Atheist é uma das bandas seminais do death metal técnico, que só não estourou porque, segundo um metaleiro aleatório que ouvi falando no intervalo de um show recentemente, não tinham um manager decente como o Death teve. Bom, não é o caso do 1846 – aqui na Ludopédia mesmo ele é o mais adicionado às coleções. Mas o ponto de comparação aqui é que acho os dois uma ótima porta de entrada para seus respectivos domínios. 1846 tem a capacidade de atrair todo tipo de jogador interessado em algo mais pesado, até mesmo o eurogamer mais chato, com todos aqueles seus poderzinhos, bônus de conexões e foco operacional. O Atheist é também uma banda bastante acessível principalmente porque o vocal lembra bastante uma versão apodrecida do James Hetfield – o que é excelente. Mas além de tudo, o Atheist tem uma influência muito forte do jazz, o que pode fazer até com que não-ouvintes de metal acabem se interessando pela banda. A minha recomendação
WATER, que mistura diversos ritmos familiares (de jazz até sons latinos) porém sem abrir mão da complexidade e até mesmo da agressividade do metal.
Necrophagist e 1882: Assiniboia: o começo, no meio

Por que eu fui inventar de escrever esse post? Está tudo ficando muito louco. Vamos ver o que dá para fazer: Necrophagist é a banda que define o techdeath moderno e é aquela com a qual todas as outras são comparadas, mas não foi a primeira. 1830 define o gênero 18XX (mas novamente eu não quero falar dele e já estou falando pela segunda vez), é aquele como o qual todos são comparados mas também não foi o primeiro. Então escolhi o 1882 porque é o “1830-like” que eu mais gosto. Joga rápido e pode ser brutal, assim como os riffs do Christian Münzner e do Muhammad Suicmez no segundo e emblemático disco Epitaph do Necrophagist. Aqui tem uma curiosidade maluca: o líder/dono do Necrophagist lançou 2 pedradas de discos lendários, gravou o terceiro, meteu num HD numa gaveta que nunca vai ver a luz do dia e se aposentou do metal para trabalhar como engenheiro na BMW. E o que isso tem a ver com 1882? Nada. Eu disse que estava ficando tudo muito louco. Mas se você tá lendo isso aqui é porque eu consegui escrever sobre 5 jogos/bandas e acabei postando. Ouça
STABWOUND, essa música é a definição de techdeath. Se você não se interessar, dificilmente alguma outra coisa do techdeath vai te chamar atenção. O mesmo dá para dizer do 1882, talvez? Ele sintetiza muito bem e de forma rápida o que é um 18XX, e já utilizei inclusive como porta de entrada com mais de um grupo (e deu super certo).
Gorguts e 18India: iconoclastas

Esse aqui já não é maluquice da minha cabeça não. Esses dois foram feitos um para o outro. Embora eles não compartilhem uma semelhança temporal em seus domínios (18India surgiu bem tarde na vida do gênero 18XX, e Gorguts é pioneiro naquilo que se chama de death metal dissonante), ambos olham para tudo o que foi construído e estabelecido como padrão em seus gêneros e jogam na lata do lixo. Aqui vou deixar um juízo pessoal: 18India faz isso muito mal, especialmente ao mexer drasticamente na dinâmica de compra e venda de ações no mercado. 18India é um título 18XX que só joguei uma vez e não pretendo repetir. Eu respeito o que foi feito ali, porque requer coragem e admiro iconoclastia. Porém ele vai muito longe ao ponto de não parecer mais um 18XX, sinceramente. Nesse sentido, há muita semelhanaç com o Gorguts, especificamente com relação ao seu álbum mais emblemático, o Obscura (que deu nome a uma das bandas mais importantes do gênero, mas que não será citada aqui além deste breve momento porque seu líder se mostrou um babaca recentemente e não merece o apreço de ninguém). Esse álbum vai tão longe que ele deixa de soar como metal em diversos momentos. Obscura trouxe em 1998 o conceito de dissonância ao protagonismo do death metal, algo que havia sido apresentado apenas de forma coadjuvante pelo Immolation, principalmente em seu segundo disco Here In After. O disco é incômodo de se ouvir às primeiras vezes, porque a música popular, aquela à qual somos expostos desde crianças, usa muito pouco ou apenas não lança mão do conceito musical de dissonância. Diferente de 18India, eu não só respeito Gorguts como admiro muito. Ouça
OBSCURA e fique incomodado com a dissonância. Se você não ficar e der um jeito de se deliciar com blast beats fora de hora, riffs de guitarra dos mais esquisitos possíveis e um vocal brutal - que soa como um aldeão mediveal lutando pela sua vida quando um nobre babaca resolve tomar sua terra - um mundo novo de música se abrirá e bandas como Ingurgitating Oblivion, Pyrrhon e Gigan certamente entrarão na sua rotação periódica.
Ulcerate e 1862: o caos controlado

Ulcerate é, assim como o Gorguts acima, uma banda essencialmente de death metal dissonante. Nasceu assim, é assim e provavelmente será assim para sempre. É muito difícil pegar Ulcerate para ouvir sem ter tido um contexto prévio de como a trajetória do metal chegou a esse ponto. Se você der Ulcerate para sua mãe ouvir, ela provavelmente dirá que é só barulho e gritaria e vai perguntar o que ela fez de errado na sua criação. Entretanto, para quem já está acostumado com dissonância, os mais diversos tipos de vocais guturais, riffs que alternam entre agudos e graves deliberadamente, ausência de melodia e harmonia, polirritmia e produção moderna de música extrema, Ulcerate soa como um caos extremamente ordenado. 1862 incorpora temas mecânicos similares a esses: dificilmente o jogo fará algum sentido para um eurogamer que nunca jogou 1846 e 1830, por exemplo, até mesmo porque o manual não ajuda. O ideal é jogar com alguém que já jogou o jogo e matou as dúvidas pelo menos uma vez. 1862 traz diversas novidades com relação a o que se espera de um jogo 18XX padrão, mais especificamente nos seus três tipos de trem – cada um gerando renda de uma forma específica – e em alguns outros detalhes como na forma de abrir e fundir empresas, e aquele mercado esquisito em zig-zag que na verdade não é zig-zag. A verdade é que 1862, depois que passa a fazer sentido, é um dos jogos 18XX mais gostosos de se jogar. É bastante fluido e muito recompensador – a sensação é não só de progressão ao longo do jogo, mas também de já começar muito bem porque há vários lugares que pagam bem já de começo. Ulcerate também é assim: quando faz sentido, faz muito sentido. E aí poucos sons são tão sublimes quanto quando é cantado o título de
STARE INTO DEATH AND BE STILL.
1817 e First Fragment: o ápice
First Fragment foi a banda que me fez entender o techdeath como meu gênero de música favorito. Quando eu conheci 1817 eu já gostava bastante de 18XX, mas ele rapidamente se consolidou como meu
jogo favorito, então tá aí o paralelo. O que é curioso, porque First Fragment certamente não é minha banda favorita (eu não sei dizer qual é – Opeth? Allegaeon? Fallujah?), mas ambos marcam duas coisas que sintetizam meus principais gostos em entretenimento atualmente: 18XX e death metal. Mas é claro que há mais em comum entre os dois: ambos são densos,
bastante densos. Nenhum dos dois é inacessível – pode não ser o ideal mas dá para começar com 1817 direto dos euros, assim como pode não ser o ideal mas dá para ir ao First Fragment direto do Iron Maiden. É claro que um pouco de contexto facilita bastante a digestão nos dois casos, mas nenhum dos dois é extremamente complexo a ponto de se tornar ininteligível como 1862 ou Gorguts. E dessa densidade vem, obviamente, a recompensa: são experiências grandiosas e incomparáveis. De um lado o 18XX mais aberto, envolvente e imprevisível. Do outro, uma banda para a qual pode-se utilizar os mesmos adjetivos: sons de flamenco como em
LA VEUVE ET LE MARTYR e infinitos solos de baixo fretless numa banda de death metal? Por favor, me vê dois. Mas uma coisa é certa, ambos são exaustivos. Sair de uma partida de 10 horas de 1817 tem o mesmo efeito que ouvir a discografia do First Fragment. É incrível, mas cobra seu preço até fisicamente.
Este texto foi escrito ao som do que é, para mim, o
magnum opus do Gorguts, seu álbum de 2013 Colored Sands.
Joguem 18XX, ouçam techdeath. E parem de comprar jogos.