RaphaelGuri::Sobre a necessidade de um jogo assim existir, trago uma reflexão:
Nós somos frutos de uma cultura que aceita a violência e a trata, muitas vezes, como um método catártico de sublimação, ou seja, é através de uma violência forjada, falsa, que suprimo, e até compreendo, o meu eu inerentemente violento. Em outras palavras, ver um filme de terror ou do Rambo ou do 007 são formas de coexistir com uma cultura violenta de forma mais saudável. Não por isso, contudo, que compartilhamos destes mesmos valores. Uma pessoa pode assistir A Cor Púrpura e chorar, mas jogar Puerto Rico e sequer notar o contexto. Séries de serial killers sempre fazem muito sucesso. Tudo vai depender da forma com que a obra é consumida. Vamos colocar um determinado jogo na mesa, notando o fundo histórico ou vamos ignorar por completo? Esse é o ponto principal, afinal sem uma régua ligeiramente flexível, não apenas teriamos apenas Tindaya ou Spirit Island, como não conseguiriamos aprender a suportar o peso que é simplesmente viver.
Logo, a existência do jogo se faz necessária, mesmo que presa em um espaço-tempo específico, pois sem ele, não teriamos espaço para essa discussão e não teriamos como modificar nossa cultura a ponto de dizer: "essa coisa não faz mais sentido".
Por fim, alguns vão achar "mimimi", mas talvez isso se deva por estarem apenas em um tempo diferente do nosso. Devemos ainda tomar cuidado e não exagerar nessa "dose de realidade", pois se formos nos fechar à nossa natureza, acreditando que uma ruptura drástica resolverá alguma coisa, estaremos só nos fechando ao mundo e as possibilidades.
Caro
RaphaelGuri
Eu acho que você foi direto ao cerne da questão.
Veja bem, como eu disse antes, que não se trata aqui de defender o "banimento" do Puerto Rico, ou de deixar de jogá-lo. Torno a dizer que continuo jogando e continuo apreciando esse jogo, porque acho ele muito bom, e acho que as demais pessoas também não devem deixar de jogá-lo. Além disso, se nós formos radicalizar, literalmente não vai sobrar jogo de tabuleiro nenhum, porque analisando microscopicamente, em todo e qualquer jogo sempre vai aparecer uma ou outra questão, por menor que seja, que incomode alguém de alguma forma, mesmo que não seja, obviamente, com a mesma gravidade de questões tão importantes como racismo e escravidão.
E se formos radicalizar mais ainda, num estilo "at absurdum", não era nem para estarmos jogando board game algum, porque eles são praticamente todos feitos na China, que é um país conhecido por ter leis trabalhistas (muito similares ao Brasil) que são solene e repetidamente ignoradas pelos empregadores, especialmente no caso de mão-de-obra não especializada, e o governo chinês pouco faz para coibir ou sequer fiscalizar esses abusos. Assim, desse ponto de vista radical ao extremo, mesmo jogos abstratos como o Azul, não estariam livres, de um eventual banimento, ou reprovação social. Só que mais uma vez, aí entra a diferença no nível de degradação humana decorrente de um trabalho que explora o trabalhador, mesmo que isso também mereça o nosso repúdio, para o nível de degradação humana decorrente do trabalho escravo, e isso para não falar na objetificação de seres humanos, em pesados castigos físicos por qualquer razão, bem como o direito de vida e morte. Nao dá nem para começar a comparar essas duas situações em termos de reprovação ética e social.
É por isso, que apesar da triste realidade que o jogo representa eu ainda defendo que se jogue o Puerto Rico. No entanto, na minha humilde opinião é imprescindível uma real e profunda consciência histórica daquilo que os jogadores representam nesse jogo. Nesse sentido, eu acredito profundamente, ou pelo menos prefiro acreditar que qualquer pessoa que desenvolva esse tipo de consciência histórica que eu acho tão importante, dificilmente essa pessoa vai se sentir confortável em desempenhar o papel de um "senhor de escravos". Isso torna ainda mais relevantes as mudanças implementadas com a versão Puerto Rico 1897, em que ao invés de africanos e indígenas escravizados, o que se tem são trabalhadores assalariados. Isso inclusive se reflete na caixa dessa nova versão. Evidentemente, como a versão Puerto Rico 1897 ainda não está ao alcance do público boardgamer brasileiro em geral, a solução que eu proponho é que pelo menos se modifique a postura e o entendimento do papel que os jogadores desempenham nesse jogo. Nesse aspecto dá até para continuar usando os disquinhos marrons, desde que se veja neles trabalhadores (mesmo que explorados) e não seres humanos escravizados. Isso já faz uma grande diferença, pelo menos para mim.
Por outro lado, isso que eu descrevi acima é a minha regra ética e moral, que por óbvio, se aplica apenas a minha própria pessoa e a mais ninguém. Desse modo, se a pessoa consegue jogar Puerto Rico exatamente com a conotação extremamente negativa com que o jogo foi concebido, o que é que se pode fazer?!?!
Outro fator, que se deve levar em conta é que muita gente joga board games, quase que unicamente por conta das mecânicas, sem dar a menor bola, para cenário, contexto histórico, ambientação, ou qualquer outro elemento que gere alguma imersão por menor que ela seja. Nesse caso, é possível que algumas pessoas simplesmente não se importem em nada se aquela peça representa um escravizado, como também não se importaria se a referida peça representasse um judeu a caminho da câmara de gás, ou uma criança de 8 anos prestes a ser violentada. Do mesmo modo, também pode existir pessoas que não se importem em nada com o cenário quando estão jogando, mas apenas nas mecânicas, e apesar disso também não se sintam confortáveis em fazer o papel de um escravagista, de um nazista ou de um pedófilo.
Por fim, o que eu aprendi na minha vida é que simplesmente não há limite para a maldade, a perversão e a crueldade que um indivíduo pode desejar e praticar contra outro ser humano, da mesma forma como não existem limites para o altruísmo e a bondade humana. Da minha parte, eu me alinho mais com esses últimos do que como os primeiros.
Um forte abraço e boas jogatinas natalinas!
Iuri Buscácio