O Prazer de Criar (II de III)
“O Mestre Criativo”
Olá, oficineiros!
Eu aqui de novo! Dessa vez, trazendo o segundo texto sobre o livro “Criatividade: o flow e a psicologia das descobertas e das invenções”, do autor Mihaly Csikszentmihalyi. Caso perdeu o texto anterior e uma pequenina introdução sobre a ideia destes textos, confira aqui:
https://ludopedia.com.br/topico/80186/o-prazer-de-criar-i-as-3-forcas. Acho importante ler os textos anteriores para que o todo faça mais sentido.
O texto de hoje visa trazer, segundo a visão de Mihaly, como tende a ser o perfil das pessoas criativas. Lembrando que por ‘pessoa criativa’, estamos considerando qualquer um que busca modificar de alguma forma seu meio, sua cultura. São as pessoas que geram as novidades.
(crédito da imagem @unic_art_work + um toquezinho meu adicionando ali o Cathala, o Feld e o Knizia)
Não podemos levar tudo ao pé da letra, como uma verdade inerrante e única (como tudo na vida, aliás), logo acreditar que uma pessoa é uma peça isolada em um sistema é um grande equívoco. Mihaly exemplifica isso ao comparar uma pessoa criativa com um acidente de carro: “existem algumas características que aumenta a probabilidade de alguém sofrer um acidente – ser jovem e homem, por exemplo -, mas geralmente não podemos explicar os acidentes com base apenas na descrição do motorista. Há muitas outras variáveis envolvidas, a condição da estrada, o outro motorista, o trânsito, o tempo e assim por diante” (p.52). O que Mihaly quer dizer com isso, é que existe um amplo sistema que irá culminar neste resultado final.
Como parte do sistema que envolve a capacidade criativa da pessoa temos a educação formal, componentes emocionais e cognitivos inerentes do indivíduo, o meio social que convive, a forma que contribui e internaliza o campo e o domínio que está inserida, assim como ter um bocado de sorte (estar inserido no meio social adequado, no momento certo e com pessoas do campo que sejam facilitadoras é importante para que todo o resto seja percebido e reconhecido). Com isso, acabamos por nos dar conta que não basta ter um perfil específico perfeito sozinho, é preciso de outros elementos. Apesar dessa revelação, que pode ser um tanto decepcionante, existem algumas características e traços que foram observadas por Mihaly ao longo de seu trabalho.
No livro utilizado como referência, fruto de anos de trabalho, foram entrevistadas 91 pessoas das mais diversas áreas (música, artes visuais, arquitetura, literatura, história, física, biologia, psicologia, negócios, política, entre outras), inclusive vencedores do prêmio Nobel, utilizando um protocolo com 29 perguntas abertas (e algumas bem extensas). Através dessas entrevistas foi possível observar um fator predominante: as pessoas criativas tendem a lidar com a dualidade paradoxal do mundo de forma eficiente, sendo organicamente dialéticos com algumas características específicas. Irei listar abaixo essas características.
Vigor Físico x Repouso: Pessoas criativas tendem a ter uma boa dose de energia, mesmo que seja estritamente mental - não um vigor físico em si -, mas ao mesmo tempo sabem a importância do descanso, do lazer. Sabem manter suas descargas de energia sob controle, equilibrando o ritmo entre ócio e trabalho.
Inteligência x Ingenuidade: Nem todo grande criativo é necessariamente um gênio, no teor popular da expressão, mas muito provavelmente estão dentro de um espectro médio para elevado de inteligência, o que a psicologia chama de fator g. Por outro lado, possuem uma abertura para o mundo, para as novidades, tal qual crianças, o que pode fazer com que seja uma ingenuidade meio acidental, porém, na verdade, isso contribui para o aspecto divergente de sua inteligência, capaz de gerar um grande fluxo na quantidade de ideias e uma flexibilidade de perspectivas, livre de pré-julgamentos que atrapalhariam os processos de associações.
Ludicidade x Disciplina: Este traço paradoxal se refere à habilidade dos criativos em gerir um senso de irresponsabilidade e responsabilidade. As pessoas com tendências criativas são aquelas que conseguem ver diversão onde, geralmente, as outras pessoas veem obrigação. É o humaninho que se diverte fazendo cálculos complexos ou lendo textos extensos. Assim como o lúdico depende de uma liberdade de obrigação, criativos conseguem conviver com essa liberdade mesmo sob a possibilidade concreta de um trabalho árduo ter sido em vão, mas respeitam o processo mais do que almejam o resultado.
Fantasia x Senso de Realidade: A criatividade depende que sejam rompidos laços com o presente, sem que seja esquecido o passado. Este fator está relacionado com a imprevisibilidade da atividade criativa, seja ela qual for. É preciso entender demandas, compreender símbolos e cumprir prazos, ao mesmo tempo, é necessário ir além do esperado e dar saltos de imaginação além da obviedade.
Extroversão x Introversão: Nos casos mais comuns, as pessoas acabam por se enquadrar como uma coisa ou outra, já os criativos passeiam entre ambas, mesmo que à força. Por mais que um criativo prefira trabalhar sozinho, em seu quarto fechado, isolado com seus pensamentos, é imprescindível o contato humano. Ouvir, ver, conversar e conhecer outras pessoas faz parte do processo criativo. Sem este contato humano, até mesmo a problemática que o criativo se empenhará em combater não irá emergir com clareza em sua mente. No fim, não tem problema nenhum o criativo querer trabalhar isolado em seu quarto, talvez seu rendimento seja até melhor assim, contudo, os melhores costumam deixar sempre a porta aberta.

(
Ser ponderado é para poucos. Não à toa, o Yin Yang tem uma simbologia tão forte)
Humildade x Orgulho: O autor traz essa dualidade também como sendo ‘ambição e abnegação, ou competição e cooperação’ (p.76) e essa é particularmente difícil de gerir, principalmente vivendo na geração do ‘like, comenta e compartilha’. Pessoas criativas tendem a possuir uma autocritica muito enraizada, o que lhes coloca sob um palco em que eles mesmo, muitas vezes, acham que não teriam o direito de ocupar, contudo, ao mesmo tempo, quando alguma de suas inovações ganha destaque, é preciso que eles entendam seu impacto para o domínio que pertence. Sem o autorreconhecimento de sua importância, em um nível equilibrado, sua contribuição pode causar menos impacto, gerando uma mudança na cultura de forma mais branda. É como se ao mesmo tempo que o criativo entregasse ao mundo sua nova ideia, transmitisse a mensagem que ela não é tudo aquilo que o campo acha que é. Eis a importância do equilíbrio desse fator.
Masculinidade x Feminilidade: Faz parte da nossa cultura, por mais que isso seja algo prejudicial ou não (não entrarei nesse mérito), homens e mulheres terem papéis sociais rigidamente definidos. O impacto disso é que muita coisa acaba sendo reprimida, impedindo que uma pessoa alcance feitos em determinados domínios por um afastamento social, por preconceito mesmo, por assim dizer. Saber caminhar entre os aspectos do masculino e feminino, para o ser criativo, não está relacionado com uma androgenia em termos sexuais, mas está relacionado com a existência de um maior repertório de respostas a emoções, sentimentos e experiências que o mundo proporciona. Ter um maior repertório emocional, por sua vez, demonstrou propiciar comportamentos mais assertivos e mais autoconfiança.
Rebelde x Conservador: A pessoa criativa trafega entre o tradicionalismo, ao mesmo tempo que corre riscos ao quebrar barreiras. Para que qualquer coisa seja vista como inovação, antes é preciso existir um valor bem definido de algo, e é nessa linha que a pessoa criativa opera: ela possui conhecimento internalizado do domínio, entende como os símbolos clássicos operam e, com isso, reúnem coragem o suficiente para romper com os limites de segurança tradicionais, porém, sem os deturpar a ponto de que as novidades sejam vistas como avanços, não apenas uma perversão do domínio.
Paixão x Objetividade: O trabalho é uma grande paixão do criativo, porém a parcela de objetividade que concede credibilidade para o mesmo. A quantidade de energia depositada no trabalho, na busca por novas ideias, precisa considerar tanto a paixão por aquilo como o que se é gasto nos processos para tornar aquilo real. Essa alternância entre a euforia de quando a ideia está na mente do criativo e o trabalho árduo, por horas a fio, para colocar aquela ideia de uma forma que todos a entendam e usufruam dela é a chave para que o criativo tenha sucesso, para que uma ideia não seja apenas uma ideia e nada mais.
Sofrimento x Prazer: Criativos são pessoas sensíveis, nos mais diversos aspectos. Essas pessoas tendem a sofrer intensamente com angústias em decorrência de ansiedade, desprezo, insegurança. Por outro lado, sentem um prazer sublime quando chega a alguma conclusão, finaliza alguma etapa do processo ou soluciona algum empecilho do caminho. Com isso, é possível afirmar que os criativos possuem a capacidade de apreciar o processo por si só e com isso perseverar, com todas suas dificuldades, mas também alegrias.
(Dualismo. Ser equilibrado é muito difícil, não importa se você é um criativo ou não)
Eu batizei o texto como ‘O Mestre Criativo’, mas é certo que nem todo mundo é um mestre da criatividade, mas ainda assim, todos possuem a capacidade de ser uma pessoa criativa. O que acontece é que o desenvolvimento da criatividade é um processo. Nenhum grande criativo teve uma ideia mirabolante que mudou os paradigmas do mundo de primeira. Por isso, trago um texto complementar presente em um outro livro (chamado Educação no Século XXI, dos organizadores Ricardo Primi, Tatiana de Cassia Nakano, Kevin McGrew e Joel Schneider). Em 2009, Kaufman e Beghetto apresentaram um modelo que propôs a existência de uma trajetória nos feitos de uma pessoa criativa. Este modelo, chamado de
Four C Model (tradução: Modelo dos 4 C) consiste no seguinte:

Segundo os autores, existe uma trajetória para a pessoa criativa, que vai desde seu cotidiano mais simples até o momento em que cria algo de reconhecimento suficientemente relevante a ponto de mudar a cultura. Essa trajetória foi dividida em quatro etapas:
1. Mini-C: Aqui a criatividade se manifesta nas pequenas coisas, no dia-a-dia, como a forma que a pessoa decora sua casa, quando troca algum ingrediente de uma receita culinária para o jantar e assim por diante. É o grau onde a pessoa entende como solucionar desafios menores, cujo valor está intimamente ligado com sua própria aprovação e subsistência. Trazendo para o hobby, são aquelas pessoas que são criticas com algumas coisas nos jogos, criam regras da casa, customizações e algumas coisinhas aqui e outras ali para seu próprio divertimento.
2. Little-C: É o momento em que o sujeito busca ter um maior conhecimento do que Mihaly chamou de domínio. A busca por técnicas especializadas em direção a soluções criativas mais fundamentadas, mesmo que ainda ocorram em prol de um benefício individual ou de pequenos grupos que o rodeiam. Dentro do hobby, é aquela pessoa que, além de criar algumas coisas, começa a se preocupar com a qualidade do que está criando. Começa a ler textos, ver vídeos e estudar, de alguma forma, o domínio de jogos de tabuleiro.
3. Pro-C: São os criadores profissionais, aqueles que conseguiram aliar a detecção de algum problema às técnicas do domínio. São os gamedesigners, ilustradores e afins que começam a despontar no mercado com algum produto que começa a ter um certo reconhecimento, mesmo que regional, em seu grupo de amigos, pequenas campanhas de financiamento e etc.
4. Big-C: É o momento do reconhecimento, onde o campo (leia: a galera) de uma forma geral percebeu não apenas interesse na ideia, mas a viu como proeminentemente inovadora, a ponto de ser reconhecido além das fronteiras que o rodeia. Para os tabuleiristas, é o momento que o designer ganha fama. É o ponto em que ele tem um reconhecimento, ao menos, nacional, geralmente com mais de um jogo, e as pessoas começam a percebe-lo como uma potência, não apenas alguém que fez um bom produto e parou por aí.
Podemos dizer, como é visto na figura, que o Mini-C e o Little-C estão no que podemos chamar de ‘potencial criativo’, que é o momento que precede o reconhecimento, enquanto o Pro-C e o Big-C são os momentos de reconhecimento em si, que surge com o passar do tempo e a quantidade de visibilidade e aceitação do campo, quem está nessas esferas é o que costumamos de ver como ‘competentes’. Uma forma de observar que alguém chegou no Pro-C e no Big-C é através, por exemplo, de premiações.
Para o mundo da ciência, por exemplo, Galileu ou Albert Einstein são Big-Cs. Dentro do universo de jogos de tabuleiro poderíamos encarar Reiner Knizia, Richard Garfield ou Stefan Feld, entre outros, são Big-Cs. O que é importante é perceber que esses níveis de distinção não são claros, dependendo também da questão cultural de cada campo. Knizia é um Big-C nos jogos de tabuleiro, mas isso não o coloca necessariamente dentro dos Big-Cs da matemática (apesar de sua formação). Um último esclarecimento deve ser feito: nem todo mundo vai chegar em níveis acima do Mini-C e, ainda, nem todo mundo almeja isso. Esse ‘Modelo dos 4 C’ não é necessariamente uma escalada, caso a pessoa não desejar. É apenas uma forma de compreender o processo criativo de um indivíduo ao longo da jornada.
Espero, como sempre, que alguma coisa de positiva, você, leitor, conseguiu absorver do texto.
...e fico por aqui, por enquanto, caros oficineiros.
Comentem, curtem, compartilhem, joguem e criem muito!
té a próxima e abraços digitais!
Texto por Raphael Gurian
2024
Oficina de Variantes
Bibliografia:
Criatividade: o flow e a psicologia das descobertas e das invenções / Mihaly Csikszenmihalyi: tradução Roberta Clapp, Bruno Fiuza – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2023.
Educação no século XXI: inteligência, pensamento crítico e criatividade / organização Ricardo Primi [et al.] – 1ª ed. – São Paulo: Hogrefe; Instituto Ayrton Senna, 2024.