Feita a apresentação inicial, vamos ao conteúdo suculento em si.
Você já se perguntou:
ONDE ESTÁ A CRIATIVIDADE?
...Pois bem, Mihaly já. Ele pesquisou sua vida inteira e chegou na conclusão que a ela está em todo lugar. A criatividade não está apenas agindo dentro da cabeça de uma ou outra pessoa mais propensa a isso, mas é um “fenômeno sistêmico, não individual” (p.29). Achar que a criatividade se reduz a um dom individual, um sentido extra que alguém possui, é ignorar que a cultura se constrói apenas em conjunto. Achar que o ato criativo é algo isolado é uma cilada. Segundo o autor:
“Para ter algum efeito, a [nova] ideia deve ser formulada em termos que sejam compreensíveis para os outros, deve ser aprovada pelos especialistas da área e, por fim, deve ser incluída no domínio cultural ao qual pertence” (p.33)
O que ele quer dizer com isso, é que o fenômeno criativo, uma nova ideia, se interrelaciona com três diferentes forças em ação: Domínio, Campo e Indivíduo. Vou escrever sobre eles abaixo.
Nota: Isso é válido para qualquer nova coisa existente (seja um objeto ou até um conceito), porém ao descrever cada uma dessas três forças, tentarei levar os exemplos para nosso domínio de jogos de tabuleiro modernos.
Força #1: O Domínio.
A primeira parte envolvida no processo criativo é o domínio. Por domínio, o autor considera todo o conjunto de regras e símbolos que compõe uma determinada área do saber. A matemática, por exemplo, é um domínio. Dentro dos jogos de tabuleiro modernos, puxando o assunto pro nosso lado, podemos ver o domínio como todas as concepções, ideias, termos, jogos e etc. já criados e aceitos. Em outras palavras, podemos considerar o domínio como o que chamamos também de contexto sociocultural.
É importante notar que domínios diferentes muitas vezes se interrelacionam. Sem o domínio da literatura, o melhor dos matemáticos não conseguiria transferir para o papel suas novas concepções sobre a álgebra para que outras pessoas a conheçam, por exemplo. Da mesma forma, sem conhecimentos em estatística ou um bom design gráfico, um jogo de tabuleiro provavelmente não teria muito sucesso no mercado.
Um outro exemplo prático, apesar de simples, que vemos bastante discussão em fóruns internet a fora se refere à ‘imersão nos jogos’. Podemos encarar que um jogo tem uma maior imersão quando diferentes domínios se fundem. Você é daqueles que quando coloca um jogo na mesa gosta de se sentir ‘dentro do tema’? Pois bem, provavelmente quanto maior a influência do domínio no qual o tema se inspira esteja presente, maior a sua sensação de ‘sentir-se imerso’ dentro do próprio jogo, que possui seu próprio domínio chamado ‘jogos de tabuleiro modernos’. Outro exemplo: a música é um domínio. O que faz mais sentido imersivo: ouvir uma música cuja letra não te representa nada ou uma música que retrate uma realidade que se identifique com você? É isso. A música (que é seu um domínio) se fundindo com a filosofia (que é um outro domínio). Por isso é importante quando alguém está criando um jogo dominar a temática que resolve abordar. Certamente, se eu, Raphael, fosse criar um jogo sobre criação de abelhas hoje, iria ficar na cara que não manjo nada de apicultura, e isso impactaria a qualidade do jogo.

(Luna Maris: um exemplo de jogo nacional que une dois domínios.
É um jogo de tabuleiro, no qual o designer, Ricardo Amaral, possui especialização em ensino de ciências e traz essa relação dentro do tema do jogo.)
Força #2: O Campo.
Campo, por sua vez, somos todos nós. Aqui estão inclusos os jogadores, as editoras, os criadores de conteúdo, os críticos, professores de gamedesign, colecionadores e até mesmo órgãos governamentais que acabam impactando o mercado. É o papel do campo agir como guardião do domínio. É o campo que decide quem, o que, como e quando algo é inserido no domínio.
Determinado jogo é importante o suficiente para ser mencionado por criadores de conteúdo? Determinado jogo é diferenciado o suficiente para merecer um espaço na estante de um jogador? Determinado jogo possui alguma nova ideia ou conceito que o destaque entre os que já existem? Então, todas as respostas para essas perguntas (e também as perguntas) são oriundas do campo. Ele é o filtro que vai dizer quem merece ser reconhecido, preservado e lembrado.
Contudo, como disse, certa feita, Tio Ben: “Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”. O que acontece é que o campo tem alguns probleminhas:
1. Ele pode ser influenciado: Galera que faz conteúdo por ter recebido grana de editora e não avisa é um problema. Motivo: ele pode induzir o resto do campo a um erro. A editora pode forçar uma determinada nova ideia (no caso, um jogo) a ter uma visibilidade e reconhecimento não condizentes com sua inovação em um primeiro momento, atrapalhando o campo de funcionar de forma mais autêntica.
2. Ele está limitado ao espaço e cultura que o rodeia: A atenção das pessoas, assim como a abrangência do mercado são limitados. Não tem como um grupo sozinho olhar tudo que é produzido para dar um juízo de valor inequívoco sobre alguma ideia nova. Mesmo o famoso canal The Dice Tower, não dá conta (e olha que tem vídeo com o Tom Vasel de 14 minutos no qual ele faz uma análise expressa de 50 jogos de uma só vez!). Dessa forma, pode ser que em uma pequena cidade da Hungria um cara teve uma ideia de uso de construção de baralho completamente inovadora, contudo, poucas pessoas saberão de sua existência devido a abrangência e atenção limitada que possuímos. O que não faltam são grandes artistas que morreram pobres e no anonimato, sendo descobertos pelo campo apenas muitos anos depois, seja pelo fato de alguém influente tê-los descoberto tardiamente ou até mesmo pela necessidade de uma adequação cultural que precisou vir a existir antes de entender e absorver as suas criações.
O que fazer em relação a esses problemas, já que nós somos o campo? Cuidar. Cuidar para que não ocorram influências subversivas com finalidade apenas capitalista e também cuidar para que o acesso, visibilidade e oportunidade se espalhem o máximo possível. Incentivar criadores de conteúdo, grupos de jogatina, ONGs, divulgadores, cursos acessíveis que auxiliem na produção de protótipos, sell sheets e assim por diante, e também não se prender a ideais e conceitos reacionários, são formas de combater nossa limitação espacial e cultural.

(Charge por Pablo Helguera)
Força #3: O Indivíduo.
Aqui entra o carinha que tá na fila do pão. É o indivíduo, que é responsável por usar os símbolos de um determinado domínio de uma nova forma, de ver um novo padrão. São os criativos, os gamedesigners, os ilustradores e até mesmo os colaboradores e editores (com ‘e’, não ‘a’! É a pessoa, não a empresa). O indivíduo criativo é a pessoa que foi capaz de absorver o domínio, mergulhar em suas singularidades, enxergar as necessidades, analisar as oportunidades e, com isso, criar e elaborar uma ideia nova.
Geralmente é no indivíduo que a maioria dos esforços se voltam quando pensamos na criatividade, uma vez que ele é algo mais concreto do que o domínio e o campo, que são um coletivo cultural. Além de atribuições específicas e particulares (que voltarei a abordar em textos futuros), o individuo precisa estar em sintonia com as outras duas forças. Ele precisa compreender o domínio e se relacionar positivamente com o campo.
Devido a interrelação das partes, é importante que um indivíduo permaneça sempre atualizado junto ao campo e domínio. É normal, infelizmente, vermos algumas pessoas com ideias que acham incríveis, geniais e únicas, contudo, elas já existem dentro do domínio (ou tão parecidas que essa nova ideia não é relevante). Tem gente que não se deu conta onde está na fila do pão. O domínio só pode ser alterado, com a inserção de alguma novidade, com o consentimento do campo. Uma criação de alguém, como um jogo, só será relevante se esse indivíduo conseguir divulgar esse jogo o suficiente e, principalmente, convencer as pessoas (que são o campo, lembra?) que sua ideia merece reconhecimento. Aqui entram os conhecimentos em outros domínios, como o marketing, relação interpessoal e assim por diante. O gamedesigner bom não é aquele que faz tudo sozinho, mas aquele que consegue observar em outros indivíduos características e conhecimento que neles faltam e sabe trabalhar em conjunto. De fato, existem alguns gênios incompreendidos pelo mundo, mas existem muitos mais pessoas que apenas se acham gênios incompreendidos.

(Se preparar é essencial. Nem sempre a sorte ajuda o suficiente.)
Aqui encerro esse primeiro texto, que pretendo que seja parte de uma trilogia. Espero que o conteúdo tenha ficado claro. Que a ideia de como uma ideia criativa (o que, em nosso contexto, podemos entender como um ‘novo jogo’) trafega dentro do tempo, espaço e cultura. Espero em breve trazer mais conteúdo complementar.
...e ficamos por aqui, por enquanto, caros oficineiros. Comentem, curtem, compartilhem, joguem e criem muito!
Até a próxima e abraços digitais!
Texto por Raphael Gurian
2024
Oficina de Variantes
¹Psicologia positiva é uma vertente da psicologia que se dedica a estudar efeitos da positividade no cotidiano, de tal forma que estes fenômenos auxiliem na mudança de perspectivas e comportamentos na vida das pessoas.
Referências:
Criatividade: o flow e a psicologia das descobertas e das invenções / Mihaly Csikszenmihalyi: tradução Roberta Clapp, Bruno Fiuza – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2023.