UMA NOVIDADE NÃO-JOGÁVEL NO CANAL (MAS MUITO BOA!)
Olá, oficineiros!
Aqui quem escreve é o Raphael Gurian e venho apresentar uma nova empreitada do canal: a partir deste momento (já contabilizando este texto como o primeirão), a Oficina de Variantes, além de suas atividades voltadas para a confecção e tradução de material, vai começar a postar alguns textos que se relacionam com a produção e criação de jogos, sejam visando refletir sobre aspectos mecânicos em geral, assuntos relacionados à criatividade, entre outras coisas que forem surgindo em nossas cabecinhas (e, importante, os textos serão postados sem muita pretensão de ficar preso a um calendário fixo). Estes textos serão escritos por mim e também pelo Rafael Arruda (Rimor), além de contribuições de quem mais participa do projeto.
Essa iniciativa de criação de textos visa criar um espaço de discussão saudável sobre assuntos específicos que algumas vezes acabam não sendo abordados ou acabam fazendo parte de uma postagem maior, não tendo muito destaque nesse mundo da internet. Esperamos que curtam, comentem e até mesmo sugiram assuntos. Lembrando que sempre estamos abertos para que novos colaboradores adentrem ao projeto como um todo (não só participando das postagens, mas ajudando a produzir coisas também).
Neste texto, além da excelente notícia acima [pequena pausa para os aplausos], quero deixar algumas reflexões, principalmente voltadas para as pessoas que estão começando a criar, seja o que for, na mídia que for e independente da finalidade (mas, claro, pensando principalmente naqueles que almejam criar jogos ou coisas relacionadas).
(IMPORTANTE: não vou falar desse jogo acima. Nem conheço, mas não queria deixar esse trecho sem imagem.
Lendo os próximos parágrafos, você vai entender.
Se ficou curioso: https://boardgamegeek.com/boardgame/40182/telepathy)
A primeira reflexão trata-se do que é, de fato, que você está criando.
É importante perceber qualquer criação, seja um jogo ou até mesmo um texto (Mestres de RPG que o digam, pois fazem ambas as coisas) transpassa o simples resultado físico. Um jogo não é apenas um amontoado de papelão e plástico, assim como um texto não é apenas uma sequência propositalmente ordenada de letras impressas em um papel. As obras são momentos de encontro da mente do criador com a mente do consumidor.
Stephen King, em seu livro “Sobre a Escrita” (2000) nos apresenta essa ideia ao escrever “o que é a escrita”:
“Telepatia, é claro.” (p.93)
...e complementa o pensamento explicando:
“Olha, aqui temos uma mesa coberta com um pano vermelho.
Nela está uma gaiola do tamanho de um aquário pequeno.
Na gaiola está um coelho branco de nariz e olhos rosados.
Nas patas de frente está um toco de cenoura que ele rói alegremente.
Nas costas, escrito em tinta azul, está o número 8. Nós vemos a mesma coisa? Precisaríamos nos reunir e conversar para ter certeza absoluta, mas acho que sim. Claro que haveria as variações necessárias: alguns receptores verão um pano vermelho-vivo, outros, vinho e outros verão tonalidades distintas.” (p. 95)
...e completa:
“Eu jamais abri minha boca, e você jamais abriu a sua.
Nós não estamos nem no mesmo ano, quanto mais na mesma sala... mas estamos juntos.
Estamos próximos. Estamos tendo um encontro de mentes. Mandei uma mesa com um pano vermelho, uma gaiola, um coelho e um número oito escrito em tinta azul. Você recebeu tudo. Estamos participando de um ato de telepatia. E não é enrolação mística; é telepatia de verdade.” (p. 95; 96)
A ideia que quero passar com o trecho acima é que um jogo (ou um texto) vai além do seu materialismo, mesmo quando o criador não tem nenhum tipo de intencionalidade proposital de passar essa ou aquela mensagem. É no encontro que se dará a experiência. Ao escrever esse texto de apresentação tenho uma intenção objetiva e se vou conseguir alcança-la ou não vai depender da forma que eu adoto. Nessa forma que estará residindo o meu ‘poder telepático’.
(As capas dos livros que utilizei como referência para este texto. Espero que tenham curtido, pois pretendo fazer com que eles voltem no futuro.)
O que nos leva para a segunda reflexão, que se relaciona com os cuidados que devem existir para que o encontro aconteça de forma autêntica. Se o leitor do trecho do King não souber o que é um coelho, uma mesa, um número oito e assim por diante, a ‘telepatia’ não acontece, não importa o quanto de esforço, inventividade ou conhecimento o criador tenha adicionado em sua receita.
Rollo May (um psicólogo norte americano que viveu entre 1909 e 1994), escreveu o seguinte em um de seus livros, A Coragem de Criar de 1975: “No esforço criativo, a imaginação opera em justaposição com a forma. Quando o esforço é bem-sucedido, é sinal de que a imaginação infundiu na forma a sua vitalidade” (p. 123). O que quero dizer com isso é que deve existir um empenho por parte do criador, ele se encare como um artista ou um cientista. Esse empenho deve ser tanto de cunho técnico, ou seja, o conhecimento da forma, assim como uma entrega ao momento de criação, uma troca genuína entre o mundo e o criador. Segundo o autor:
“O processo é comum na arte. A tinta e a tela são coisas objetivas que têm influência poderosa
e existencial na evocação das ideias e visões do artista. Na verdade, o artista relaciona-se dialeticamente,
não apenas com a tinta e a tela, mas com as formas que vê na natureza.” (p. 112)
Trago essas reflexões como uma fonte de inspiração para aqueles que estão começando e que buscam a coragem necessária para dar o pontapé inicial para aquele projeto que não sai do eterno ensaio, seja um jogo, um canal ou mesmo apenas só um texto avulso. Uma das armas contra a insegurança é nosso conhecimento. Aprenda sobre a forma e entregue-se à experiência do encontro que mais da metade do caminho está percorrido.
(Videozinho que resume e adianta um pouco do assunto geral na próxima parte. Roberto G. Bolaños: outra grande referência para mim.)
Sobra, ainda, a insegurança, o medo e a tensão que batem na gente quando vamos nos expor através de nossas criações. Aqui entra a terceira (e última) reflexão que trago hoje. Já começo afirmando que ficar ansioso é normal, inclusive, esperado (me preocupo é com quem nega ter tais sentimentos!).
Questões que nos atravessam como “Será que está bom o suficiente?”, “Será que isso aqui faz sentido?” ou até “Eu tô maluco???” fazem parte do processo. Rollo May (1975), nos provoca escrevendo:
“Sem dúvida, na nossa cultura a criatividade associa-se a sérios problemas psicológicos
– Van Gogh enlouqueceu, Gauguin era evidentemente esquizóide.
Poe era alcóolatra e Virgínia Woolf sofria de depressão grave.
Evidentemente, criatividade e originalidade associam-se a pessoas que não se adaptam
à cultura em que vivem. Mas isso não significa necessariamente que seja um produto da neurose¹.” (p. 37)
Contudo, May nos tranquiliza ao compartilhar:
“Na minha opinião, as pessoas criativas distinguem-se pelo fato de serem capazes
de viver com a ansiedade, embora paguem um alto preço por esse dom de ‘loucura divina’
– para usarmos a expressão adotada pelos gregos – em termos de segurança, sensibilidade e defesa.
Não fogem ao não-ser, lutam com ele e o obrigam a produzir o ser.
Batem à porta do silencio à espera da resposta musical;
perseguem a ausência de sentido e a obrigam a significar.” (p. 95)
Estou compartilhando tudo isso com vocês, pois somos iguais. Eu sinto essa insegurança ao escrever este texto (e ao revisá-lo cada uma das três vezes que o fiz) tanto quanto no momento em que escrevi (e postei) meu primeiro texto em fóruns de internet mais de quatro anos atrás (no canal Sociedade dos Boards). Quando eu não sinto ansiedade quer dizer que estou em um lugar comum para mim, estou apenas repetindo padrões e processos, dai a coisa fica sem graça nenhuma e se perde o sentido de produzir (no meu caso, escrever). Essa emoção é parte do processo. É nela que me sinto transferindo parte do meu ser para o mundo, para um ser alheio. Finaliza Rollo May:
“Entretanto, o que o artista ou o cientista sente não é ansiedade ou medo: é regozijo". (p. 43)
Quero, por fim, saber que cada jogo que coloco na mesa e que cada texto que leio surgiu desse encontro autêntico do autor com a experiência de criar a obra. Jogos de tabuleiro são artigos comerciais (também), mas são, acima disso, obras de arte e frutos da ciência. Quero poder ter acesso a obras que sejam produtos dessa corajosa ansiedade. Quero ver paixão na criação, para jogar ou ler algo com essa mesma intensidade.
...e ficamos por aqui, por enquanto, caros oficineiros. Comentem, curtem, compartilhem, joguem e criem muito!
¹ neurose, a grosso modo, se refere a quadros clínicos atípicos de cunho psicológico. Bibliografia: KING, Stephen. Sobre a Escrita. 1ª. ed. Rio de Janeiro. Objetiva. 2015. ROLLO, May. A Coragem de Criar. 10ª ed. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1982.
De cara, já adorei a novidade.
Fico extremamente feliz sempre que aparece material em texto por aqui, e ainda mais quando o assunto muito me interessa: CRIAÇÃO.
Na verdade, eu curti ainda mais porque eu já estou familiarizado com esse livro de Stephen King, que me orientou não apenas na criação geral de conteúdo (como os jogos), mas alimentou a minha mente durante os últimos anos no qual passei escrevendo conteúdo para o página de Facebook do O Bom do Videogame.
Aqui, uma citação muito importante desse livro:
"Às vezes é preciso perseverar, mesmo quando não se tem vontade, e às vezes você está fazendo um bom trabalho mesmo quando parece estar sentado escavando merda."
Pois mostra que mesmo os reis tem suas dúvidas, ansiedades, incertezas sobre a qualidade de seu trabalho.
Estar em dúvida sobre o conteúdo criado não é exclusividade minha, ou sua, pois está na raiz de todo artista, que costuma ter o sensor crítico interno mais aguçado que os demais.
perfeito, não contavam com a tua astúcia em trazer um personagem que só é visto dentro do escopo cômico para algo mais filosofal.
Eu pretendo propor alguns pontos em desdobramento em próximos textos...
1-Será que criar/materializar um jogo pode ser fácil enquanto processo de criação, e o difícil é produzir ou passar uma mensagem diferenciada? O que é novo e o que é saturado? (uma variante do costumeiro "nada de cria tudo se copia?" Somos uma OFICINA DE VARIANTES afinal )
2-Expectativas não atendidas... Uma questão do seu particular ou "culpa" (aspas capciosas) da obra, do jogo?
Nada necessariamente aprofundado, mas propondo um bom debate... creio que sai coisa boa, vem coisa boa daí!
Continua temático no cerne do canal hehe Vamos variar os raciocínios!!!
Estou no processo de escrita de um livro de empreendedorismo nas ciencias do mar, sou oceanografo de formacao, e estou escrevendo um capitulo sobre ferramentas ligadas a gameficacao, jogos de tabuleiro no ensino e serious games.. estava meio travado e ler o texto deu um help para destravar!
Estou no processo de escrita de um livro de empreendedorismo nas ciencias do mar, sou oceanografo de formacao, e estou escrevendo um capitulo sobre ferramentas ligadas a gameficacao, jogos de tabuleiro no ensino e serious games.. estava meio travado e ler o texto deu um help para destravar!
Parabens!
Nossa, fico super feliz em saber que o texto ajudou em algo! Obrigadoo
Tava com tempo que não lia um texto seu. Parabéns pelas colocações e pelo conteúdo.
Na Psicologia, minha identificação maior é com Existencialismo/Fenomenologia, cujo foco é na experiência da pessoa.
O Rollo May é um autor famoso, mas não tenho muito conhecimento sobre suas contribuições. O que você trouxe me agradou bastante.
Já o Stephen King é um monstro!!! (Equivalente ao Knizia no mundo dos livros)
A experiência criativa é imbuída de uma multiplicidade de sensações e valores, e é um assunto inesgotável! Existem, inclusive quest~es conflitantes como: euforia, ansiedade, frustração...
Certa vez, vi uma entrevista do Lenine uma citação dele falando sobre o processo de criação de música (nada científica, mas totalmente verdadeira) falando sobre a inspiração como uma espécie de "Musa Sedutora". Ela aparece pra gente, nos dá um vislumbre de sua potência, nos seduz, e VAI EMBORA! E nessa hora, cabe a gente ir buscá-la. Essa busca é onde está o nosso trabalho. Se a gente não for atrás dela, além de não produzirmos nada, existe o risco dela aparecer pra outra pessoa, que pode vir a conseguir alcançá-la (e a gente se surpreende quando alguém consegue realizar uma idéia que tivemos "primeiro"...).
Valeu pela contribuição RaphaelGuri, seu texto é provocante!
Ronaut::Tava com tempo que não lia um texto seu. Parabéns pelas colocações e pelo conteúdo.
Na Psicologia, minha identificação maior é com Existencialismo/Fenomenologia, cujo foco é na experiência da pessoa.
O Rollo May é um autor famoso, mas não tenho muito conhecimento sobre suas contribuições. O que você trouxe me agradou bastante.
Já o Stephen King é um monstro!!! (Equivalente ao Knizia no mundo dos livros)
A experiência criativa é imbuída de uma multiplicidade de sensações e valores, e é um assunto inesgotável! Existem, inclusive quest~es conflitantes como: euforia, ansiedade, frustração...
Certa vez, vi uma entrevista do Lenine uma citação dele falando sobre o processo de criação de música (nada científica, mas totalmente verdadeira) falando sobre a inspiração como uma espécie de "Musa Sedutora". Ela aparece pra gente, nos dá um vislumbre de sua potência, nos seduz, e VAI EMBORA! E nessa hora, cabe a gente ir buscá-la. Essa busca é onde está o nosso trabalho. Se a gente não for atrás dela, além de não produzirmos nada, existe o risco dela aparecer pra outra pessoa, que pode vir a conseguir alcançá-la (e a gente se surpreende quando alguém consegue realizar uma idéia que tivemos "primeiro"...).
Valeu pela contribuição RaphaelGuri, seu texto é provocante!
Olá, Ronaut! Realmente fazia um tempo que eu não postava, culpa minha! hehe
Estou me formando em psicologia e a Fenomenologia se tornou para mim a forma de ver o mundo, estamos juntos nessa.
Ótimo texto!! É bom colocar a gente pra pensar um pouquinho de vez em quando, em como o bel prazer de jogar ou criar algo a partir dessa interação com os jogos, nos faz cada vez mais intensamente ligados com o universo que nos permeia.
)
