Pax Pamir - lealdade momentânea e influência ideológica
Jan Prosper Witkiewicz foi uma figura com uma vida um tanto singular na história. Nascido na Lituânia, ele ajudou a criar uma espécie de sociedade secreta com ideais revolucionários que tinha por incitar o movimento contra a ocupação Russa na região, distribuindo manifestos, poemas, textos de cunho patriótico e livros proibidos aos diretores e estudantes da Universidade. Em 1824, o movimento foi descoberto e parte do grupo foi sentenciado à morte, e o restante deveria ser flagelado e exilado da região. Witkiewicz sobreviveu, servindo no exército. Era carismático e fluente em Francês, Alemão, Inglês, Polonês e Russo, fato que o destacava dos demais, sendo habilidoso em colher informações por onde passava, passando de soldado a sargento e depois a cargos relacionados à inteligência e diplomacia, o que hoje chamamos de espião. Espião a serviço da nação contra a qual lutou na juventude.
Josiah Harlan era um americano que, depois da morte da mãe, tornou-se particularmente interessado na biografia de Plutarco, em literatura médica, em textos religiosos e que tinha como ídolo Alexandre o Grande. Em 1820, tornou-se maçon, viajando pela Àsia e depois, mesmo sem treinamento médico, cirurgião na John Company (ela mesma), depois subindo de posto na hierarquia da Companhia. Era adepto da disciplina, mas com frequência tinha dificuldades de subordinar-se aos superiores. Chegando ao Afeganistão, procurou cargos de poder, aliando-se aos Afegãos. Só descansou quando conseguiu tornar-se príncipe.
Se as histórias desses dois indivíduos levantam dúvidas sobre os posicionamentos e interesses reais que eles tiveram durante essa breve introdução é porque servem para ilustrar uma parte da complexidade do conflito no Afeganistão, muito antes desse País tornar-se conhecido nos livros de história recente e nas notícias. De fato, o período entre 1830 até quase 1920 foi um período conturbado na história Afegã. A região era cobiçada pelo império Russo e - temendo o crescimento para territórios como a Índia, que era controlada pela Companhia do João - pelo Império Britânico. Adicione a isso os grupos de poder Afegãos que também desejavam poder e controle. Foi um período denominado como o Grande Jogo, por Arthur Conolly, outra figura envolvida no conflito. Esse Grande Jogo é exatamente retratado em Pax Pamir, um dos mais importantes jogos da série “Pax”, popularizado por Phil Eklund, Matt Eklund e Cole Wehrle. Falaremos aqui da segunda edição, que leva o nome apenas do Cole Wehrle.

O criador do termo Grande Jogo
Eu mesmo não conhecia os jogos da série Pax até então e confesso que o tema Afeganistão não era muito convidativo na época pra mim, pois achava que era algum tipo de trend de fazer dinheiro com o conflito recente no Afeganistão. Enorme engano. Pax Pamir é um jogo para até cinco jogadores que tem por vencedor aquele que obtiver maior número de pontos através de formação de tableau e compra de cartas usando para tal figuras como Jan Prosper Witkiewicz e Josiah Harlan para demonstrar quem tem mais poder sobre a região.
Mercado de Cartas
Se você nunca jogou um jogo Pax, posso dizer que, dos que conheço, eles trazem algumas coisas em comum: compra de cartas e formação de tableau. As cartas são compradas a partir de um mercado acessível a todos os jogadores e que considero uma parte vital de Pax Pamir. Nesse mercado cartas de personalidades estão em conjunto com lugares, patriotas, grupos armados e cartas de eventos. Ao comprar e baixar cartas, cada uma delas traz habilidades para o jogador de duas formas: ao baixar a carta e ao acionar posteriormente habilidades relacionadas na carta. A primeira delas (imediata) está mais relacionada ao posicionamento de peças nos tabuleiros (regiões), mudança de naipes (político, econômico, militar e inteligência). Já a segunda, está mais relacionada à movimentação dessas peças e interação entre os jogadores. A formação de tableau exige que o jogador disponha as cartas na mesa e respeite não só a posição que elas possuem lá, mas deve-se manter cartas ali apenas de sua aliança dentre três: Afegã, Britânica e Russa.

O mapa do Afeganistão em tecido
A exigência de influência e dominância é representada pelo tableau do jogador (chamado de corte) e pelo mapa - muito bonito - do Afeganistão e suas regiões que recebem peças multifunção dos jogadores e das alianças que eles representam: peças militares na forma de estradas (deitadas) e exércitos (de pé) assim como peças do tabuleiro individual do jogador que representam tribos e, caso estejam no tableau dos jogadores, espiões como o espião russo nascido na Lituânia lá de cima. Pax Pamir exige vencedor, o qual é determinado pelo velho sistema de pontos que são marcados da seguinte maneira: Se no mercado houver uma carta de evento de checagem de dominância (vermelha), qualquer jogador pode durante seu turno comprá-la e verificar se alguma das alianças possui mais peças militares no tabuleiro. Caso uma delas possua quatro a mais que as outras, essa aliança é dominante e o jogador (ou jogadores) pontua.
Mas Pax Pamir traz uma reviravolta: o jogador não é, de modo algum - diferentemente de um sem número de jogos - obrigado a permanecer fiel à aliança na qual iniciou o jogo nem a qualquer outra que venha a juramentar lealdade depois, e isso é mecanizado num disco giratório das três forças dominantes. A todo o momento o jogador é obrigado a pesar os prós e os contras de manter-se fiel, e muitas vezes isso pode ser um preço caro demais. Patriotas podem ser executados com o simples fato de baixar um patriota de outra aliança, presentes podem ser oferecidos e determinadas cartas podem, uma vez executadas, servir como prêmios de lealdade. É isso que faz o jogador mudar sua aliança. Os cinco jogadores podem até mesmo pertencer a uma mesma aliança sem problema algum, mas eles deverão mostrar quem é o mais leal de todos àquela aliança através do número de patriotas, presentes e prêmios em seu tableau. Isso diz quem vai pontuar mais ou menos.
O disco de lealdade
A complexidade da vida de Jan Prosper Witkiewicz e Josiah Harlan servem para mostrar como Pax Pamir não só é complexo, mas também exige complexidade do jogador, exigindo o mesmo oportunismo, o momento certo para trocar de lado, fazer alianças e conseguir maior lealdade e influência, podendo ser jogado ao mesmo tempo tanto como um jogo militar, econômico, inteligência ou político. Pax Pamir não é um jogo fácil de introduzir para novos jogadores, visto que as habilidades das cartas e a disposição delas e das peças no tabuleiro exige uma leitura visual constante da situação. Pamir é um jogo visual de oportunismo e reação em que uma rodada pode mudar completamente o que é necessário para estar na liderança, o que pode afastar muitos jogadores que sentem-se frustrados ao ver aquilo que traçaram desde o início cair e ter de frequentemente mudar de lado e olhar os tabuleiros dos outros jogadores. Esse esforço aumenta ou diminui junto com o número de jogadores, levando à Analysis Paralysis muito comum, mas o tempo de jogo no meu caso (4 jogadores) foi de aproximadamente 2 horas e meia. Para um jogo com o escopo tático de Pax Pamir, considero um tempo saudável. O manual faz um bom trabalho e carrega artes evocativas, mas, apesar de ser bem ilustrado e com iconografia definida, não impede a dor de cabeça de ter de voltar às pequenas instruções e exceções às regras que geram dúvidas. Para citar um exemplo, tomemos a regra de Deposição: se a última tribo de um jogador for eliminada no mapa, assim serão todas as cartas políticas daquela região, e vice-versa; apesar da regra tomar um destaque no manual só para si, já aconteceu de esquecermos que apenas as cartas políticas afetam e são afetadas, não as outras cartas.

Arte da parte interna da tampa do jogo
No entanto, essa exigência analítica do jogo de Cole Wehrle tem um propósito, o de ser um quebra-cabeças de pessoas, locais, patriotismos, traições e lealdades momentâneas que melhor ilustram a situação do “Grande Jogo” travado no decorrer século XIX e início do século XX. Pamir simboliza o caráter mesquinho do imperialismo num jogo que transforma vidas em cartas descartáveis e ideologias em joguetes de poder, mostrando aos jogadores uma miniatura do grande jogo jogado no passado com a mesma futilidade e indiferença de colocar as peças do jogo dentro da caixa que vai para a sua estante. Apesar de toda carta dividir um pequeno parágrafo sobre ela (ocupando espaço) com a figura em si, muito provavelmente a maior parte dos jogadores não irá lê-lo, nem irá prestar atenção em qualquer coisa que não seja as habilidades e vantagens que ela possui para vencer: afinal, ela é só uma carta.
Essa discussão sobre imperialismo e colonialismo está presente em outro jogo de Wehrle - John Company - o qual também possuo uma análise aqui na Ludopedia. Por mais que os dois jogos tragam mecânicas completamente diferentes, eles partilham elementos em comum. Cole Wehrle, na minha humilde opinião, é um designer habilidoso preocupado em fazer de maneira sincera e sem rodeios uma demonstração do alcance do colonialismo, fazendo seus jogos em locais como Índia e Afeganistão, locais muitas vezes negligenciados nos boardgames e quando muito, feitos de maneira romantizada. Trazer um jogo sobre imperialismo e colonialismo é demonstrar aos jogadores que não somente os livros de história servem para educar e que existem valiosas formas, épocas e temas a serem explorados de maneira mais consciente nos jogos que jogamos e que levam a questionamentos sobre o nosso próprio lugar no presente. Como já disse em John Company, há jogos que não são “apenas jogos”, ao expandir o próprio conceito do que é jogo. Pamir, ao explorar e traduzir temas e questões políticas em formas de mecânicas, é um deles. Ao falar sobre o colonialismo e seu alcance, Cole traduz questões políticas e ideológicas como escolhas do jogador e demonstra em cardboard o que talvez muitos não considerem tão interessante de outra maneira.
Curiosamente, a segunda edição de Pax Pamir não traz o icônico texto de Phil Eklund intitulado A Defense of Colonialism (Uma defesa do Colonialismo), no qual o autor da primeira edição de Pax Pamir defende a postura do colonialismo britânico com o argumento de que, antes da consolidação do poder britânico, Índia e Afeganistão viviam na pobreza, com suas populações em constantes disputas e guerras e, somente a chegada da Coroa trouxe estabilidade, paz e riqueza para as regiões. Um argumento bastante comum em todos os que vemos sobre a defesa dos diferentes colonialismos no mundo, que apagam questões como exploração, dominação ideológica e cultural dos povos colonizados. Sinceramente, gostaria que o texto estivesse no manual de Pax Pamir segunda edição como alerta para posturas frequentes como essa de Phil Eklund, mas entendo - até certo ponto - que ela não esteja lá, afinal Phil Eklund não é creditado como autor da segunda edição. Cole adiciona, ao final do manual, um pequeno texto sobre as questões abordadas no colonialismo e sugestões de leitura sobre o tema, sem posicionar-se. Isso fica a cargo do jogador.
Mas se colonialismo parece distante de nossos dias de Brasil, o mesmo oportunismo e futilidade ideológico-política exigidos para jogar Pax Pamir está bem próximo de nós, ao percebermos o quadro geral da política brasileira em que as mesmas figuras políticas transitam entre os patriotas, os discursos inflamados, os locais disputados e as mudanças de partidos tão comuns no noticiário. É comum vermos posturas como a de Jan Prosper Witkiewicz, um fundador de grupo revolucionário que torna-se espião a serviço do País opressor de sua terra natal e de Josiah Harlan que adorava Alexandre o Grande e galgou posições até ser governante, figurados em inúmeros Políticos influentes - em maior ou menor grau - que usam da troca de ideologia partidária para consolidar poder e influência, promovendo projetos de leis polêmicos que servem apenas para gerar discussões disseminar o polarismo tão frequente nos dias de hoje e votando a favor ou contra interesses não da população, mas apenas de seus partidos e alianças, convencionando e oportunizando os momentos certos para ter maior ganho e trocando de camisa tão facilmente como quem gira o disco de aliança e troca de carta num tabuleiro. É essa lealdade momentânea e essa ideologia conveniente que fazem a política brasileira, levando a questões não só das posturas deles, mas ao papel do autor e do leitor desse texto no meio disso tudo. Talvez Jan Prosper Witkiewicz não tenha sido alguém tão singular assim. Pode ser que a Política brasileira seja apenas um grande jogo jogado por quem tem poder e quer ganhar, e pode ser que você, cidadão/cidadã, seja apenas uma carta nesse jogo. Completamente dispensável.
Obs: Se posso fazer uma crítica sobre a qualidade do jogo, posso dizer que o tabuleiro em tecido - o qual deve ser enrolado para caber na caixa - acaba por deixar dobras nos cantos quando está em jogo, e os marcadores de pontos dos jogadores tendem a escorregar e sair dos lugares. Apesar de temático e elegante, o design não é dos mais funcionais. Para quem odiar o fato, a parte traseira do tabuleiro do mercado de cartas traz o mapa completo, resolvendo o problema e criando outro, que é perder o mercado. Não é o maior dos problemas, mas talvez irrite alguns.