Parabéns pela sua análise, ficou muito bacana! Eu gosto de pensar a produção cultural a partir de uma dialética entre a conceituação e a caracterização, algo que não está muito distante da abordagem da sintaxe versus semântica ou da forma versus a função. No entanto é preciso tomar um certo cuidado pois essa dicotomia, essa divisão, pode acabar sendo insatisfatória por não conseguir abarcar a totalidade da obra. O todo é sempre maior que a soma de suas partes isoladas. É justamente da relação entre as partes que surge a essência da totalidade. Isso é facilmente percebido no cinema, como você bem citou, a partir do momento em que se muda a trilha sonora de uma determinada cena e por tabela se modifica totalmente o sentido do que está sendo comunicado. Desculpe a palestrinha, mas eu quis pontuar isso porque gostei do fato de você ter se preocupado em apontar essa questão! Acho muito interessante análises críticas que fogem do aspecto meramente descritivo dos jogos.
Já sobre o Quest for El Dorado, tenho alguns pontos a comentar. É um jogo mecanicamente fantástico mesmo, nisso eu concordo com você. Ele é intuitivo, bastante acirrado e emocionante! Agradou muito a minha família porque tem regras bem simples de pegar e é bem competitivo. Tem aquela malícia escondida que é marca registrado do Knizia.
Agora, esse foi um jogo que me incomodou profundamente por conta da questão levantada: o racismo velado. E piora. Há também um claro componente de exaltação do mito do bom selvagem, como aquele que é subserviente e age de forma socialmente "adequada" perante os seus "contratantes". E como se não bastasse o festival de bizarrice, ainda fica implícita, mas quase escancarada mesmo, a celebração lúdica que banaliza o neocolonialismo, marcado pela exploração do trabalho da população local e pelo saque das riquezas materiais desses territórios "exóticos". Isso fica ainda mais evidente pela caracterização das cartas de personagens mais poderosas como a Milionária, o Pioneiro, a Aventureira etc...
E não, nada disso é apenas sobre esse jogo. Até porque esse não é apenas um jogo, é mais um produto da indústria cultural. Evidentemente houve aqui uma escolha de representação narrativa e de ponto de vista histórico, que passou por uma curadoria certamente muito exigente. Que foi polida, sofisticada por diversos profissionais especializados, ao longo de muito tempo para ser exatamente aquilo que é: um bom entretenimento. Ou se você preferir, um produto que usa a empatia como estratégia para formar afetos politicamente desmobilizantes, garantindo dessa maneira, praticamente inofensiva, os ganhos de quem financia a produção desse jogo. Não quero me alongar nessa discussão, mas acho essa reflexão necessária. É possível sim se divertir com o jogo a despeito de tudo isso, afinal de contas temos a incrível capacidade de nos entretermos com quase qualquer coisa. O discernimento crítico nos possibilita isso. Mas é meio difícil ignorar todas essas questões quando elas mexem diretamente com a nossa história, quando revivem os nossos próprios fantasmas do passado. Isso não pode ser uma desculpa para não criticar o que merece e deve ser criticado.
Comprei Quest for El Dorado na época do seu lançamento e vendi depois de um tempo porque fui criando um desgosto enorme por ele. Ao ponto de achá-lo simplesmente detestável, algo de mau gosto mesmo. Não é o tipo de diversão que procuro consumir, ainda que as outras opções disponíveis no mercado também não fujam da mesma lógica no fim das contas.