Essa é uma tradução do diário do designer publicado no BGG para o How Dare You, meu jogo de trivia que será lançado na feira de Essen em outubro desse ano. Para ver o original em inglês, clique aqui.
Tudo começou numa game night no fim de 2018, no Rio… mas não o tipo de game night que você está pensando.
É que além de jogos de tabuleiro, eu também sou fissurado em jogos de trivia / perguntas: aqueles que você joga em bares e pubs, assiste em programas de TV e encontra em jogos de tabuleiro antigos como Master e Perfil. Então não foi exatamente uma noite de jogos de tabuleiro, mas uma noite de trivia.
Há muito tempo, minha esposa e eu convidamos amigos para um quiz aqui em casa. É parecido com aqueles quizzes de bar, mas com música, apostas, mímica, listas, todo tipo de desafio. É um formato bem diferente, sem nenhum similar que eu conheça.
Momentos de dois quizzes diferentes, em 2015 e 2023. A tradição continua!
Esse sempre foi um hobby separado meu até que um amigo sugeriu o que no retrovisor era óbvio: porque não juntar o quiz com os jogos de tabuleiro e criar um jogo moderno de trivia?
O campo estava totalmente aberto. Existem alguns ótimos jogos modernos de trivia -
Timeline,
Wits & Wagers,
Fauna, mas não muitos mais. Era quase uma tela em branco.
Mas quais são as qualidades de um jogo de trivia moderno?
Os jogos de trivia que eu queria criar partiam de 3 princípios:
- Simplicidade é fundamental. A melhor coisa dos jogos de trivia clássicos, como Master e Perfil, é que qualquer um pode jogá-los.
- Nenhum jogador deveria fazer o papel de facilitador, o que conhece a resposta enquanto os outros são perguntados. Todos precisam jogar o tempo todo.
- Os jogadores devem poder vencer de outras formas além do simples conhecimento bruto. Conhecimento bruto é binário; ou você sabe ou não sabe. Isso é chato. O jogo precisa permitir que jogadores espertos superem os CDFs usando dedução, estimativa, blefe, aposta, e outras estratégias.
Com esses princípios na cabeça, criei 2 jogos de trivia com o
Leandro Pires (do
Paper Dungeons e
Rock n’ Roll Manager) chamados
É Top!? e
Fora de Ordem, todos publicados apenas no Brasil por enquanto.
Mas também comecei a criar alguns jogos sozinho.
Estranho no Ninho foi um, que saiu esse ano, e outro deles era uma pequena joia chamada "Range".
Criando “Range”, o antecessor do How Dare You?
Range foi inspirado por um tipo de pergunta usado nos meus quizzes chamada de “Aproximação”. Eu faço uma pergunta a todos os grupos de resposta numérica que imagino que ninguém sabia (“Qual é a circunferência da Terra?”) e quem chutar mais perto ganha o ponto.
Pra transformar isso num jogo de tabuleiro, eu poderia seguir o caminho do Wits & Wagers: cada jogador escreve uma resposta ao mesmo tempo, e depois cada um aposta na mais próxima.
Em vez disso, Range era um force-sua-sorte: Havia uma linha com números de 0 a 100, com 2 peças em formato de colchete, uma em cada extremidade. Uma pergunta (“Qual é a porcentagem de pessoas de olhos azuis no mundo?”) é lida, e no seu turno, você pode ou diminuir o intervalo de possibilidades (deslizando um dos colchetes para abarcar um intervalo menor do que o intervalo atual) ou passar. Quando só restar um jogador, a resposta é revelada. Se ainda estiver dentro do intervalo delimitado pelos colchetes, o jogador restante ganha vários pontos. Se não, os outros ganham pontos dependendo de quando passaram.
O tabuleiro e os colchetes usados para controlar o intervalo de respostas possíveis em Range.
Não é uma premissa interessante? Eu achava que era. E foi por isso que mostrei o jogo para o
Kristian Østby.
[Kristian: Editoras recebem muitas propostas de jogo de aspirantes a game designer. As maiores recebem várias por dia, e eu, representando uma editora pequena, recebo cerca de uma por semana. Trivia não seria minha escolha inicial de jogo, pois em geral eles só são divertidos se você sabe a resposta, e eles raramente recompensam o raciocínio - mas o Rodrigo tinha crédito por já ter apresentado protótipos bem originais antes.]
Como um brasileiro chamou a atenção de uma editora norueguesa
Antes de sequer cogitar criar jogos de trivia, eu já estava incomodando o Kristian com meus protótipos. Educação e civilidade não recomendariam, pois a sua editora,
Aporta Games, publicava apenas jogos próprios, e nada no site deles encorajava o envio de protótipos.
Mas.
A primeira vez que joguei
Avenue, foi um desses momentos de revelação, em que você trava contato com algo novo e incrível que você não achava que estava dentro das possibilidades de um jogo de tabuleiro. Foi meu primeiro roll-and-write, e hoje segue sendo meu segundo favorito (perdão, Kristian,
Next Station: London acabou de roubar a medalha de ouro).
[Kristian: Desculpas aceitas, Rodrigo. Eu também adoro Next Station: London.]
Além disso,
Santa Maria está entre os 3 ou 4 jogos mais jogados pela minha esposa e eu. Temos ele há cerca de 6 anos, e continua vendo mesa com frequência.
São jogos que falam fundo comigo, e por alguma razão eu imaginei que talvez meus jogos pudessem falar com o Kristian também. Você talvez ache que foi meio presunçoso da minha parte, e pode até estar certo, mas também foi meio desesperado. Na época, eu não conhecia nenhuma editora fora do Brasil. Estava mandando emails não-requisitados para dezenas delas com poucos retornos. Qualquer esperança em que eu pudesse me agarrar era suficiente pra clicar Enviar.
Desesperado ou presunçoso, para minha surpresa, o Kristian respondeu. Ele curtiu meu pitch para o card game “Bungle in the Jungle” (que depois virou o
Emboscados), e começamos uma longa troca de emails. Quase começamos uma parceria para co-criar o jogo, mas antes de a pandemia forçar todos nós a aprender a usar o Tabletop Simulator, era muito mais difícil fazer isso à distância.
Mas mesmo assim, Kristian me deu alguns insights valiosos que transformaram aquele protótipo em um jogo muito melhor do que tinha direito de ser. E claro, era incrível ter o cara que criou Santa Maria e Avenue curtindo meus jogos, então eu continuei incomodando ele com outros jogos e recebendo feedbacks valiosos para melhorá-los.
Sem o Kristian, por exemplo, o
Mouse Maze (outra parceria com o Leandro Pires, recém-saída do forno) não teria os 4 quadrantes que limitam o desenho das paredes e seria um jogo bem menos interessante.
"Range" foi outro desses protótipos. Foi uma forçada de barra, porque a Aporta nunca tinha publicado jogos de trivia, ou mesmo party games, mas eu já sabia que com o Kristian era sempre sobre simplicidade e ideias fora da caixinha, e o Range tinha essas qualidades.
Do Range ao How Dare You?
Kristian curtiu bastante o jogo, mas sentiu necessidade de torná-lo mais simples para poder mirar no mercado de massa. Ele sugeriu dar aos jogadores apenas um colchete, para que o intervalo pudesse ser reduzido apenas para cima.
[Kristian: Havia algo sobre o Range que eu gostei bastante: tinha uma curva de tensão fantástica, ou seja, a tensão aumentava conforme a rodada avançava e os intervalos ficavam menores. Ele também permitia que os jogadores tentassem estimar a resposta pelo raciocínio. Por exemplo, o jogo perguntava a idade de Leonardo da Vinci ao morrer. Como dar um palpite para uma pergunta como essa? Sempre vejo ele representado como um senhor bem velho, então provavelmente ele não foi parte do clube dos 27. Mas com que idade as pessoas costumavam morrer no século… seja lá qual foi o século em que ele viveu? Elas provavelmente não lavavam as mãos muito, nem usavam cinto de segurança, então será que ele morreu tão velho assim?
Range me fez pensar sobre essas coisas e também permitiu discussões interessantes entre os jogadores, mas o jogo era também um pouco confuso: reduzir o intervalo requeria várias regras, e por isso o jogo não era tão intuitivo quanto poderia. Na minha opinião, party games precisam ser muito simples de regras para que possam ser jogados instantaneamente por qualquer um, então eu sugeri algumas simplificações.]
Confesso que não gostei das sugestões de mudança do Kristian. Eu não achava que o jogo precisava de simplificação nenhuma. Mova um dos colchetes ou saia da rodada - quão difícil é isso? (Na verdade, sair da rodada envolvia mais um passo, mas a minha própria relutância em explicá-la prova que não era tão simples assim no final das contas.)
Alguns meses depois, quando o Kristian disse que não poderia publicar o jogo por razões não relacionadas ao gameplay, uma pequena parte de mim ficou feliz, pois a ideia original poderia ser mantida. Eu levei a outras editoras, e os que responderam acabaram declinando, dizendo que o jogo não era intuitivo.
Então parecia que o Kristian estava certo de novo.
É incrível como é difícil “matar seus filhos” (kill your darlings), não importa o quanto você concorde com a frase. Acho que acaba conflitando com outro conselho popular que diz para você não fugir da sua visão original. Não é fácil discernir quais filhos você pode matar sem matar a visão também.
Mas estou saindo do assunto. Estamos no início de 2022, e nenhuma editora queria o jogo de trivia que eu considerava meu melhor. Algum tempo tinha se passado desde que eu tinha mexido nele, então tentei voltar para a prancheta com a visão mais descontaminada
Foi um daqueles momentos em que a solução de repente pula na sua frente. Um jogo em que você só pode mover o colchete do 0 para cima significa que não há necessidade de colchetes, e nem mesmo de um tabuleiro.
Poderia ser apenas um card game: alguém lê a pergunta na carta, e as pessoas começam a palpitar respostas numéricas, cada vez maiores, mas torcendo para que seu palpite esteja abaixo da resposta. Digamos que o jogador anterior disse que a idade recorde de um gato é 27. Você vai dizer 28? Vai dizer 30? Ou vai sair da rodada? Se disser 30, será que o próximo jogador vai aumentar mais ainda? E o próximo?
De repente, o jogo virou a adaptação perfeita do “chicken game” para trivia. (Sabe aquele “jogo” em que 2 carros dirigem em alta velocidade um em direção ao outro e quem desviar primeiro perde? Esse é um chicken game.)
Exceto que não era ainda. Porque uma coisa estava faltando: sair da rodada não era muito divertido. Era uma ação passiva, com você apenas recuando.
Para resolver isso, peguei um caminho trilhado pelo É Top: e se em vez de passar, você pudesse desafiar o palpite anterior? Uma ação passiva de repente se torna ativa. Se o palpite for maior que a resposta, o desafiante vence a rodada, se for menor, o desafiado leva.
Depois de muitos testes ao longo de alguns meses, eu mostrei para o Kristian de novo.
Eu renomeei o "Range" para "One-Upper", já que o jogo não tinha mais intervalos.
[Kristian: Quando o Rodrigo me disse que tinha uma versão nova e simplificada do Range, eu me interessei imediatamente. Jogamos mano-a-mano online, e havia uma melhora significativa. Agora as regras eram claras e intuitivas, como um bom party game deve ser.
Eu tinha uma nova editora, Alion – by Dr Ø, e esse jogo seria ideal como um primeiro lançamento. Eu trouxe o protótipo para a feira de Essen de 2022 e joguei com amigos noruegueses e suecos - e todos adoraram. Achamos que era um jogo perfeito para jogar em restaurantes enquanto aguardávamos a comida: não precisava de espaço na mesa, as rodadas eram rápidas e todas as perguntas levavam a discussões interessantes.]
Desenvolvendo How Dare You?
Kristian ficou bem animado depois de jogar no TTS. Ele tinha uma nova editora, e queria publicar o jogo por ela, então nos encontramos brevemente em Essen (minha primeira viagem para lá,
mais sobre ela aqui), com pouco tempo para falar porque Revive, seu jogo mais recente, era um dos hits da feira.
Ao voltar de Essen, ele continuou testando o jogo com seu novo parceiro
Kjetil Svendsen, novas ideias começaram a fluir, e algumas modificações importantes ao design original foram implementadas.
A primeira foi o nome: How Dare You? é tãããão melhor do que “One-Upper”, o título que eu estava usando desde a reformulação do Range.
Quão épica e psicótica é a arte dessa capa?
Mas as melhores foram nos mecanismos. A mais importante de todas foi virar a condição de vitória de cabeça para baixo: em vez de ter um vencedor, a rodada teria apenas um perdedor. O jogador que perder o desafio fica com os pontos negativos da carta. Isso fez os jogadores ficarem um pouco menos tentados a desafiar, pois se eles acharem que o próximo jogador também não vai desafiar, então estão livres.
Por conta disso, as rodadas ficaram um pouco mais longas e mais divertidas, com os palpites aumentando mais e mais até que inevitavelmente alguém considera o palpite anterior tão absurdo que não dá pra não contestar.
Kristian e Kjetil também adicionaram regras avançadas opcionais, como “dobrar”, que te dá um ponto positivo se você dobrar o palpite anterior, tentando os jogadores a correrem riscos maiores. Além disso, ao ser duvidado, você pode chamar um “double dare”, para aumentar o número de pontos negativos em jogo e talvez fazer o desafiante desistir da contestação. Essas regras podem ser adicionadas depois de algumas rodadas para acentuar o aspecto de “chicken game” do How Dare You?
[Kristian: “Quando você disse que o maior peido durou?" As perguntas engajavam os jogadores, e com muita frequência suscitavam novas perguntas: “Quem? Como” Por quê?” Eu entendi que precisava providenciar o contexto de cada resposta, e isso se mostrou popular entre os playtesters. Kjetil, Rodrigo e eu trabalhamos intensamente nas perguntas durante os meses seguintes: verificação dos fatos, revisão, melhorias no enunciado das perguntas. As novas regras que permitiam dobrar ou dar “double dare” adicionaram um twist para o gameplay no estilo Liar’s Dice que fez o jogo parecer único.
No final, tínhamos um jogo com muita sutileza e variedade para seu tamanho pequeno. É super flexível a ponto de você poder puxar e jogar com qualquer grupo, de entusiastas a pessoas que não tenham nenhuma experiência com jogos modernos. Dá pra começar a jogar instantaneamente, e ele cria momentos hilários, interessantes e memoráveis. E depois de cada jogo, você acaba aprendendo alguma coisa extraordinária.]
Sim, finalmente as perguntas! Passamos meses burilando cada uma das 360, para ter certeza que raramente alguém saberia a resposta, mas ao mesmo tempo permitindo que dar um chute razoável sem se sentir burro. E em seguida teve toda a pesquisa para dar contexto para cada resposta, confrontando-as com fontes confiáveis, fugindo das ambiguidades e tudo mais.
No manual, alguns quadrinhos ajudam a explicar as regras.
[Kristian: eu preciso dizer também que o ilustrador Gjermund Bohne fez um trabalho incrível de capturar o espírito zueiro do jogo, enquanto ao mesmo tempo fez um quadrinho fantástico explicando as regras de forma divertida.
E o peido mais longo? 2 minutos e 42 segundos. Um recorde orgulhosamente ostentando pelo inglês Bernard Clemmens. Peço desculpas pela imagem mental, só queria te dar uma vantagem para quando você for jogar How Dare You?. De nada.]
Pode não parecer à primeira vista, mas muita história vem junto com um pequeno card game de trivia. Espero que você curta o How Dare You? quando a Alion lançar o jogo na feira de Essen 2023, em outubro agora!