A primeira parte do artigo é temática, para falar sobre o Gorbachev em si sob o meu ponto de vista e de meus colegas que o conheceram (não sou especialista, mas tive contato com pessoas de verdade que viveram antes e depois do período Gorbachev e que conheceram o homem pessoalmente), e, a seguir, na segunda parte do artigo, farei o review do jogo em si.
 
Já de início, aqui tem um dos meus documentários favoritos, falando justamente sobre o tema do jogo, que foi o golpe de estado de 1991.
 

 
Se quiser pegar a essência de tudo, sugiro assistir uns 15 segundos a partir de 5min55s. Uma pergunta e uma resposta.
 
 
Tema: Gorbachev - a chave-mestra do coração universal
 
O aniversário de um ano da passagem do Presidente Mikhail Sergeyevich Gorbachev será no fim de agosto de 2023, e por isso eu procurei um jogo de tabuleiro sobre ele para jogar, bem como escrevi este artigo e como minha singela homenagem ao Gorbachev. Eu queria escrever "pequena homenagem", mas acho que nada relacionado a ele consegue se manter pequeno.
 
Numa biografias que li da sua esposa Raisa Maximovna Gorbachev, ela foi perguntada sobre o marido. Qual era sua qualidade mais predominante, na sua opinião como esposa, a pessoa que melhor o conhecia? Ela respondeu que Mikhail Sergeyevich sinceramente ama as pessoas, todas as pessoas. Esse é um amor inerente, algo que sempre existiu dentro dele. Um amor inato. 
 
Esse foi o diferencial dele. Quando você vê as suas ações partindo desse ponto de vista, e o resultado que tiveram, dá para ver que tudo é muito consistente.
 
Tenho colegas que eram jovens adultos na época do comunismo - já conversei com pessoas da Tchecoslováquia, Polônia, Hungria, Alemanha, Romênia, Moldova, Rússia, Ucrânia. Todos eles contam a mesma coisa, cada um nas suas palavras, mas contando que foi o Gorbachev, com suas políticas de abertura, transparência e não-intervenção em outras nações, quem os salvou de um abismo sem fim e uma crise de proporções muito maiores que o fim do comunismo trouxe. (Nota: Gorbachev não era contra o comunismo - ele era contra a repressão e dominação do ser humano que foi instalada na União Soviética sob uma premissa de igualdade social.) Nesses países, tudo era controlado. Às pessoas não era permitido fazer o que desejassem, seja no âmbito de educação, entretenimento, profissional, cultural, social, etc. Eles tinham dificuldades até mesmo para orar em conjunto, e a educação era tal de forma a massificar a população - para que ter mais conhecimento (além dos livros comunistas) ou buscar Deus se você tem o Partido Central Comunista para cuidar de você? A educação é algo tão importante para o ser humano, que até hoje existe reflexos dessa postura. Um colega da Rússia me contou que, não muitos anos atrás, uma lei saiu proibindo quaisquer novas associações religiosas a partir de certa data (não lembro, mas vou arriscar dizer que era 1985). Com as pessoas que tive contato, as gerações mais recentes já demonstram uma compreensão bem maior das coisas. É como se a gente, brasileiros, fôssemos comparar nossa compreensão do mundo de hoje com como se fôssemos escravos no século XVI ou depois. O escravo tinha suas alegrias, mas passava por uma pressão enorme sob todas as facetas da vida. Com o passar do tempo, adquirimos uma certa liberdade, dignidade, uma certa valorização pessoal e uma compreensão maior do que é ter uma vida como um ser humano e um cidadão, e qual é o potencial que um indivíduo tem para mudar a si e ao mundo.




 
Eu gosto sempre de comparar o Gorbachev com um dos meus maiores heróis, Thomas Jefferson. Apesar de ser uma figura adorada e ter sido presidente por dois mandatos que ficaram entalhados na história, ele escreveu em seu próprio epitáfio apenas três coisas, e insistiu que não houvesse mais: "Aqui jaz Thomas Jefferson, autor da Declaração da Independência, do Estatuto do Estado de Virgínia para Liberdade Religiosa e fundador da Universidade de Virgínia." Na minha tradução seria Liberdade, a Busca pela Felicidade e Educação. Quem o conhece um pouco dirá que isso é muito pouco para o que ele fez, mas, se o conhecer um pouco melhor ainda, verá que são as coisas que ele mais prezava, imortalizadas na linha principal da Declaração de Independência: "Consideramos essas verdades sagradas e inalienáveis: todos os homens são criados iguais e independentes; que nessa igual criação foram dotados por seu Criador com certos direitos inerentes inalienáveis, dentre os quais estão a vida, a liberdade e a busca pela felicidade; que, para assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus poderes do justo consentimento dos governados; ..."
 
Se tiverem interesse, junto com a ONG vinculada à ONU, International Dialogue among Civilizations, essa comparação acabou rendendo revista em PDF com uma compilação de "diálogos entre Gorbachev e Jefferson", onde meu amigo, que é editor da revisa, coloco seus escritos de forma comparativa. (Eu fiz a pesquisa sobre Jefferson, e meu colega da ONG fez a do Gorbachev e conversou com o pessoal dos arquivos e presidência da Fundação Gorbachev.) Conseguimos material novo da Fundação Gorbachev e de pessoas que trabalharam diretamente com ele, inclusive nos dando a oportunidade de perguntar de um para o outro e checar os acontecimentos. Num manuscrito do Gorbachev para seu discurso de sua visita aos EUA no aniversário de 250 anos de Thomas Jefferson, Gorbachev diz que desde quando era um jovem aluno de direito na Universidade de Moscou, ele se sentia humanamente mais próximo de Thomas Jefferson do que Marx e Lênin, que foram seus professores espirituais. Ele estudava outras teorias fora do horário de aula, pois nas aulas apenas os ideais comunistas eram abordados. Foram coisas que ele só pode dizer mais ao fim da vida. Certamente, dizer isso tudo enquanto estivesse ativo na União Soviética seria causa para represália severa! 
 
Aqui vocês podem ler a revista inteira gratuitamente.
 
Uma das autobiografias do Gorbachev que li descreve em detalhes o fim da União Soviética. Após meses junto com os demais países para confeccionar um tratado dando mais liberdade aos países, mas mantendo as relações entre eles (acho que ia se chamar algo como CIS - "Confederação dos Estados Soviéticos"), algo que foi escolhido pelo povo num referendo, Yeltsin (presidente da Rússia), o presidente da Bielorrúsia e o presidente da Ucrânia (os três maiores países), às vésperas da assinatura do documento, simplesmente "caíram fora". Eles deram as costas e declararam independência completa da União Soviética. O resultado? Tudo foi por água abaixo - inclusive os meios de comunicação, moeda, relações diplomáticas, comércio, importação e exportação, etc. Alguns países tinham carvão, mas não tinham comida. Um passou frio, o outro passou fome. Na União Soviética, havia sistemas para essa troca. Depois, não. Gorbachev inclusive descreve como Yeltsin e seus comparsas se fingiam interessados em assinar o tratado da CIS (e ele acreditava neles, pois havia um referendo popular por trás, que os seus líderes não poderiam renegar). Mas, vendo que a hora de assinar o tratado havia chegado, resolveram abandonar tudo, todos os povos, para se sentirem independentes como presidentes soberanos. Gorbachev já havia demonstrado com suas políticas que era preciso mudar muita coisa, mas é necessário um certo tempo para que certas mudanças ocorressem, e por isso se esforçou para dar mais liberdade para os países, mas mantendo ainda um governo central fraco para preencher lacunas na nova relação. Ele sempre se sentiu triste por não ter visto a conspiração que estava acontecendo debaixo do seu nariz. Ele acreditou nas palavras e intenções dos seus colegas.
 
Inclusive, aqui temos uma entrevista que vale para 2022-2023, em entrevista com o nosso homem em pessoa:
 

 
Enfim, como eu consigo escrever sem fim sobre como vejo o Gorbachev, vou parar por aqui com três citações:
 
No caso do Presidente Gorbachev, o mundo inteiro pode ver e sentir quantas coisas ele fez para servir a humanidade. Ele pode não rezar a Deus de manhã cedo, ..., mas dedicou sua vida não apenas à Rússia, à União Soviética, mas ao mundo inteiro. Agora ele está na Turquia; na semana passada, esteve na Argentina. Ele vai a tantos lugares. Por quê? Eles o convidam porque veem algo muito especial nele. Percebem que ele tem luz. É por isso que cada país o adora. Mais uma vez, um profeta não é honrado em seu próprio país e, por isso, ele perdeu a eleição de forma muito ruim. Mas onde quer que ele vá, as pessoas o apreciam. Elas percebem que ele leva a sério o que diz. Para ele, a paz mundial é uma realidade em sua vida. Seu aspecto de dedicação é aceito como parte integrante da vida espiritual. Ele pode não orar da maneira cristã, como o Papa ou Madre Teresa, mas está recebendo mensagens internas e está tentando expressar e revelar essas mensagens para o mundo em geral. É por isso que, para mim, ele é verdadeiramente espiritual.
Sri Chinmoy, Sri Chinmoy answers, parte 11, Agni Press, 1999
 
"Não tenho prazer no exercício do poder", disse Jefferson certa vez, provavelmente mentindo um pouco. Devo dizer a vocês que, se eu quisesse manter para mim o poder ilimitado do Secretário Geral, todas as possibilidades estavam lá. Teria sido suficiente para toda a minha vida. Mas eu também queria liberdade para todos e para todos os povos do meu país, o que significa que a "mão forte" tinha que ser afrouxada.
Gorbachev
 
"Qual a diferença entre um político e um estadista? Dizem que um político se preocupa com a próxima eleição. Um estadista se preocupa com o futuro."
Gorbachev


Se quiser saber mais sobre o Gorbachev, recomendo o documentário de Walter Herzog, "Meeting Gorbachev"
 
Por "coincidência", lembrei que hoje (15 de Agosto) é o aniversário de outro lutador pela liberdade, Sri Aurobindo.

 
 
Mini review
 
O que interessou
O tema com o Gorbachev, o autor do jogo Ben Madison (já joguei outro jogo solo seu e gostei) e o fato de ser um jogo temático e solo. 



Como funciona
O jogo é um "tower defense", onde você tem de prevenir as pontas de chegarem ao meio do tabuleiro. Você ganha o jogo se conseguir sobreviver até o fim do jogo. Então, uma pontuação de fim de jogo diz o quão bem sucedido você foi e quão harmoniosa (ou não) foi a dissolução da União Soviética (é possível até que não aconteça se você for bem o suficiente!) Você perde o jogo se algum dos povos que a compõe deixar a União Soviética cedo demais.
 
São aproximadamente 24 rodadas, quatro estações durante seis anos. Você começa a rodada virando uma carta de evento, que tem um parágrafo de texto histórico e temático. Em seguida, podem acontecer demonstrações públicas (que podem ajudar ou dificultar o seu progresso), massacres (esses são sempre ruins), e eventos (a maioria ruins - greves dos mineradores, explosão da usina nuclear de Chernobyl, terremoto no Azerbaijão, etc). Depois, ocorrem alterações no povo de cada um dos 5 grupos de estados ou no Partido Comunista. Então você ganha um certo número de ações para fazer (que são formas de atender as necessidades do povo) e um bônus se Gorbachev estiver em Moscou. (Ele pode estar viajando para encontrar chefes de estado e encontrar os acometidos pela "Gorbymania" que são basicamente todos os países fora da União Soviética e seus aliados ideológicos.
 
Existem três outros marcadores: poderio militar, mídia e cultura, e o "plano de cinco anos". Se você chegar no máximo em um deles, ganha um benefício que o ajuda a manter as coisas coesas. Se chegar na metade em "mídia e cultura", isso lhe traz uma vantagem que sai nos jornais. Se chegar a zero num deles, isso conta como uma tentativa de golpe e pode encerrar o jogo com a sua derrota.




 
Tema
É muito, muito presente em tudo. Na verdade, o jogo é um tema único desenrolando diante de você em forma de mecânicas. Além do que já descrevi acima, você pode descartar suas armas nucleares ou abandonar invasões de outros países para ganhar mais ações na rodada (desarmamento e políticas de armas nucleares foram algumas das grandes conquistas do Gorbachev, tanto unilateralmente quando juntamente com os EUA.) Você pode permitir à Tchecoslováquia, Polônia, etc, que se voltem a ser nações independentes e com isso ganhar mais ações. No entanto, preciso deixar aqui um aviso para os fãs do Gorbachev como eu. O autor do jogo mostra com sua escolha de textos e palavras que ele é mais anti- do que pró-Gorbachev, e que o sistema de partido único sem participação popular estava indo muito bem, obrigado. Ele dá a impressão que considera a queda da União Soviética como um erro do Gorbachev, principalmente. Se isso não incomodar você, posso sugerir este jogo com certeza!
 
Densidade
É um jogo médio.
 
Setup
Rápido se você já conhecer as peças. Médio se for a primeira vez.
 
Interação
É um jogo solo apenas.




 
Andamento
Cada turno é bastante rápido. Se você conhecer todas as regras bem, acho que dá para jogar o jogo em uns 45 minutos. Minha partida levou mais ou menos 1h30, pois eu tinha que consultar as regras enquanto jogava, por ser a minha primeira. De qualquer forma, toda rodada tem a carta de evento para ler, além de eventos especiais e desastres (que são muito interessantes de se ler, e não é uma desvantagem, mas sim uma vantagem).
 
Regras
O manual é bastante claro e bem organizado. Não é longo, mas não é curto. Eu sempre sabia onde encontrar o que eu precisava. É um manual de "wargame", então você sempre sabe que, se tiver uma dúvida sobre suas ações , é só ir para o capítulo X (por exemplo, 8.0.0 (ações)) e vai estar tudinho lá. Quero dizer com isso que o manual é feito na sequência da rodada. Você não precisa ir e voltar no manual para encontrar algo. Tudo está no lugar que você sabe onde vai estar.
 
Produção
As cartas e tokens são ótimos, bem feitos e impressos, com fotos e símbolos bem claros. A arte é básica, mas combina muito com o tema. A caixa é bem simples, e o mapa não é montado em papelão duro. Mas tudo contribui para a imersão. Talvez eu pudesse chamar de uma "produção comunista", no sentido de que o jogo é bem feito, mas sem adereços ou refinamento de estilo.
 
Partidas
Joguei uma vez e vou jogar mais algumas vezes nos próximos dias. Se algo mudar muito, retorno aqui e atualizo.




 
Conclusão final:
Por conta do tema e da integração com o jogo, gostei muito. É um daqueles jogos do qual nunca vou esquecer a partida. É como visitar um lugar especial. Você não precisa ir lá todos os dias se a memória estiver viva no seu coração.
 
Comparação com outros jogos:
Daria para comparar com o The Mission: Early Christianity from the Crucifixion to the Crusades, do mesmo autor, mas é um pouco mais simples, mais focado no tema (no melhor dos sentidos, pois naquele jogo você passa muito, muito tempo lendo e relendo o manual para pegar as exceções e acontecimentos). Review aqui.
 
 
Sobre esta série de mini-reviews:
Esses reviews vão ser sempre baseados em primeiras impressões, pois é justamente como gostamos de jogar por aqui: se o jogo é muito, muito bom, jogamos mais vezes; Preferimos buscar jogos que nos encantam já na primeira tentativa do que investir tempo e experiências tentando descobrir se aprenderemos a gostar de um jogo que não se demonstrou inicialmente promissor.