Até onde pode ir a curiosidade? Há limites que a humanidade não deve romper em prol do avanço da ciência? Um ramo de estudo da filosofia aborda especificamente a ética científica, a definição entre o certo e o errado nas práticas dos pesquisadores, ou seja, suas obrigações morais. Quando a pessoa, cega por uma obsessão, começa a cometer pequenos deslizes morais para conseguir o resultado que tanto busca e obtém sinais que está o caminho em que ela acha certo, inicia-se uma espiral de devassidão, perversão e salacidade que alcança um ponto onde não é mais possível distinguir o cientista da criatura. Até onde uma pessoa está apta e disposta para alcançar o ápice da ciência dando em troca sua reputação, sanidade e tudo o que o faz ser um humano? Abomination: The Heir of Frankenstein Tá na Mesa!

Abomination: The Heir of Frankenstein é um jogo criado em 2019 por Dan Blanchett. De dois a quatro jogadores, com duração média de 120 minutos, em Abomination os jogadores competem para ser o herdeiro do legado de Frankenstein, seguindo seus passos.
- E quem vai brigar com os outros para virar um monstro horrendo com o cérebro podre?

Por esse ponto de vista, bem que você poderia tentar, já é um ser hediondo sem cérebro. Seria um upgrade. Você está errado em achar que a criatura se chama Frankenstein, quanto na verdade esse é o nome do cientista. Mas não se preocupe, quase todo mundo acredita nisso. Victor Frankenstein é o protagonista de um dos mais famosos livros do mundo, que leva tem seu sobrenome. Como quase todos conhecem bem a história (Nota do Sr. Slovic: Se você não sabe, dê uma pesquisada. E depois leia o romance. É muito bom), vamos nos ater ao jogo. A ambientação do jogo ocorre 20 anos após o fim do livro.
Um aviso antes de começar… O jogo é bom, mas mexe com alguns temas sensíveis. Ele é um tanto Gore (Nota da Sra. Slovic: Sangue, violência, vísceras e etc). Não tem nada explícito, principalmente com a arte, mas é um jogo baseado em Frankenstein então haverá cadáveres, inteiros ou em partes, no meio do caminho. Se não é seu estilo, não tenha vergonha de parar com a leitura neste ponto.

Aviso dado… Abomination é basicamente um jogo de alocação de trabalhadores, onde os jogadores colocam seus meeples (Nota da Sra. Slovic; O cientista e seus ajudantes) no Tabuleiro Central, que representa o mapa de Paris. Os locais servem praticamente para conseguir pedaços de corpos (Nota do Casal Slovic: Nós avisamos!) e até mesmo um defunto inteiro em decomposição, retirado sob sete palmos de terra ou fresquinho, seja um que acabou de morrer no hospital ou decapitado. Se estiver difícil, você pode contratar alguém para conseguir algo ainda quente ou faça o serviço você mesmo (Nota do Sr. Slovic: Só cuidado para não sere caçado pela Polícia)! Mas também o jogador pode colocar seus meeples em locais para adquirir conhecimento, dinheiro, reputação e até tentar se salvar da decadência moral… Nem tudo envolve entranhas.


Após usar todos seus trabalhadores, o jogador pode construir sua criatura, parte por parte (Nota do Sr. Slovic: Na verdade dois braços, duas pernas, tronco e cabeça). Cada parte necessita de uma quantidade específica de partes orgânicas (sangue, músculos, ossos, órgãos) e um nível mínimo de Conhecimento, que está indicado na ficha do jogador. Cada parte precisa ser construída duas vezes, (Nota da Sra. Slovic: Com mais quantidade de material e nível de experiência maior) antes de ser animada. Sempre que uma parte for feita, ela rende Pontos de Vitória, que dependem do frescor dos materiais usados e de sua complexidade
- Cruz-credo!

Ainda está aqui? Você tem medo até da sua sombra. Claro que em um jogo onde o objetivo é seguir os passos do Dr. Frankenstein, animar os mortos é um passo importante. Para dar vida as partes da criatura (Nota do Sr. Slovic: O corpo não precisa estar inteiro. Dá para fazer isso ao longo das rodadas), o jogador rola dados. Conseguindo sucesso, coloca um marcador na parte vivificada. Se fracassar, pode danificar seu trabalho e começar tudo de novo.
O jogo tem no máximo 12 rodadas e no começo de cada, uma carta de Evento é revelada, indicando que alguns locais da cidade podem ficar fechados naquele turno, que houve decapitações (Nota do Sr. Slovic: “Ah, fresh meat”. Pegou a referência?), noite de tempestade (Nota da Sr. Slovic: Mais fácil para carregar os equipamentos de reanimação), um encontro com algum personagem do Romance, entre outros.

Todos os cientistas em três trilhas: Conhecimento, Humanidade e Reputação. Quase todas as ações no jogo ou vão alterar um desses valores ou dependem de um certo valor deles para acontecer. O Conhecimento serve para construir as partes do corpo e para ganhar mais dinheiro trabalhando no Hospital (Nota do Sr. Slovic: Nunca fica negativo). Reputação positiva faz que o jogador tenha mais trabalhadores ou transforma seus assistentes em cientistas (Nota da Sra. Slovic: Certas ações só podem ser realizadas por cientistas) e a negativa faz perder meeples. Humanidade faz perder ou ganhar Reputação, conforme ela se trona mais positiva ou negativa e, se o personagem chegar ao mínimo nessa trilha (- 10 pontos), não pode mais alterá-la (Nota do Sr. Slovic: A pessoa vira a criatura). No fim do jogo, cada trilha dá pontos caso esteja no lado positivo e tira muitos pontos no lado negativo.
Pode ser que esteja difícil conseguir partes humanas, então o cientista usa sua criatividade com parte de animais (Nota da Sra. Slovic: Não que isso vá ajudar muito na sua luta contra o declínio moral, mas é uma saída). O porém é que partes feitas com animais rendem menos Pvs. No fim de cada turno todo material orgânico não usado se decompõe (Nota do Sr. Slovic: Perde um pouco da sua qualidade), até chegar em um nível que deve ser jogado fora. No tabuleiro do jogador há uma trilha com quatro níveis que indicam o frescor dos tecidos. Quando o sangue chega no nível três e órgãos, músculos e animal no nível cinco, os cubos são perdidos. Ossos nunca estragam.

O jogo termina no fim do décimo segundo turno ou quando um jogador consegue animar todas as seis partes do corpo. Diferente do que se possa pensar, finalizar a criatura não dá vitória automática. Cada parte viva rende pontos de vitória, além disso há seis objetivos que podem ser completados para conseguir mais pontos. Depois da somatória total, quem tiver mais Pvs é declarado como o verdadeiro herdeiro de Victor Frankenstein.
No geral, Abomination: The Heir of Frankenstein é um jogão, apesar de tudo. Sim, o tema é pesado, não é para todos, mas o jogo está, com o perdão do trocadilho, bem construído. Se as regras fossem as mesmas, mas mudando o tema para processos de construção de plataformas espaciais ou colheita de algodão-doce no reino da amizade, o jogo não seria tão malvisto assim. E isso não significa que o tema está colado com cuspe, muito ao contrário. Abomination consegue ser imersivo. Você percebe a decadência da integridade do cientista conforme faz ações moralmente duvidosas, a espectativa de uma execução pública ou uma noite de tempestades, a luta para não se tornar o monstro ao deixar de lado a oportunidade de conseguir seus materiais tétricos para fazer ações altruístas, mesmo que seja atrapalhar o adversário com cartas (Nota da Sra. Slovic: Sim, esse é um jogo que dá para ferrar com o amiguinho, o famoso “toma essa”). Há também uma parte de narrativa com as cartas de Encontro, onde elas indicam uma passagem no livro de regras em que o jogador (ou jogadores) devem tomar uma escolha, cujo o resultado vai alterar algo na partida. Foi criado algumas variáveis para diminuir o fator sorte dos dados ou para deixar a partida mais rápida, por exemplo (Nota do Sr. Slovic: Não são expansões e nem difíceis de se encontrar). Abomination é um jogo pesado, com um tema pesado e uma ambientação pesada, mas que agrade quem curte o clima. Como já foi dito: não é para todos. Jogue com moderação e cabeça aberta. É só um jogo, a vida real tende a ser pior.
E é isso, Shishô!
