
Comecemos com um breve prefácio! Tenho enormes dificuldades em escrever sobre aquilo que gosto muito, pois temo, na tentativa de compartilhar o meu carinho pela “coisa”, acabar por reduzi-la [a “coisa”] aos limites da concatenação de letras, fonemas imaginários e expressões mal combinadas. Criar um texto é quase como escolher um tema, combinar mecânicas em sistemas integrados e produzir um jogo de tabuleiro funcional ao final de tudo. E confesso não ter muita segurança sobre minha habilidade em montar textos que expressem com exatidão a clareza do que penso sobre Spirit Island.Talvez seja por isto que, durante a leitura desta escritura, o leitor sinta que falo muito mais sobre assuntos orbitais ao jogo do que sobre o próprio jogo em si! Mas é preciso dizer que o que orbita Spirit Island é o que dá o tom de sua beleza e, ouso dizer até mais, a importância de sua existência para os jogos de tabuleiro (ainda que o mercado não se interesse pelo assunto). Logo, viajaremos juntos aqui circulando pelas poeiras orbitais de Spirit Island, algo que, para mim, é o que carimba o jogo como uma preciosidade sem igual!

Spirit Island, para quem não conhece, é um jogo cooperativo de 1 a 4 jogadores (expansões podem ampliar a quantidade de jogadores), com duração média de 90 a 120 minutos, podendo durar até mais com mesa cheia. Segundo o Board Game Geek, o jogo possui o peso de 4.02 (o peso máximo é 5) e é uma combinação muito bem azeitada de mecânicas como gestão de mão, tabuleiro modular, seleção de ações simultâneas, jogadores com poderes variados, controle/influência de área, dentre outras mecânicas. Acredito que o alto peso/complexidade de Spirit Island não está em suas regras, que considero inclusive bem simples, mas na multidimensionalidade de variáveis que precisam ser gerenciadas cooperativamente! Nas primeiras partidas, senti que ficar a todo o instante gerenciando fases de explorar, construir e devastar dos invasores era um pouco demorado, mas depois da terceira partida a coisa fica tão automática e rápida que o jogo flui com suavidade e primor (por isto, não desistam por causa disto!).

Em Spirit Island, os jogadores figuram como espíritos de uma ilha que dominam determinados poderes de elementos naturais, como a terra, os raios, trovões, os rios e mares, as florestas, os sonhos, as sombras etc. Nesta ilha, moram os povos originários que, no mundo semifictício de Spirit Island, são denominados Dahan. Ocorre que colonizadores europeus estão invadindo a ilha, construindo vilas, cidades, explorando os recursos naturais, exterminando os povos originários e fundando a corrupção nos territórios (a corrupção elimina a presença dos espíritos na ilha). O objetivo do jogo é que os jogadores, cada um gerenciando as forças de um espírito, consigam barrar cooperativamente a invasão da ilha, seja ou exterminando-os com suas vilas e cidades, ou gerando medo aos colonizadores a ponto de os fazer fugir. E os Dahan? Os Dahan são o elemento material do jogo, é quem vai para a guerra, quem bate e apanha, quem mata e morre pela ilha, com o apoio de seus espíritos aliados que os auxiliam nesta insurreição!

Enquanto jogo cooperativo, Spirit Island é um espetáculo à parte. Há muitos jogos cooperativos, que não cabe aqui dizer os nomes, os quais eu chamo carinhosamente de jogos operativos. São jogos que todos estão operando um mesmo objetivo, mas que as mecânicas não necessariamente criam uma interdependência e uma sinergia relevante entre os jogadores (falta a parte “co” da co-operação!). Nestes jogos, a sensação é de tanto fazer qual o personagem escolhido, pois o jogo continuaria seu curso sem muitas modificações relevantes. Não quer dizer que um jogo assim não seja divertido, mas não traz aquela experiência legal de sentir uma identidade única com o seu personagem, aquele toque peculiar que mais ninguém poderia suprir nos desafios da mesa.
Em Spirit Island, o tom da partida é também dado pelo produto resultante dos espíritos escolhidos. Uma partida com os espíritos A, B, C e D é completamente diferente de quando os jogadores escolhem os espíritos A,B,C e E, por exemplo. A sinergia inata dos espíritos e a evolução gradativa dos poderes menores e maiores de cada um - em harmonia entre todos os jogadores - é, sem exageros, genial. Além disto, a caixa base traz alguns cenários (desafios) e invasores específicos (Noruega, Inglaterra, Prússia-Brandeburgo etc.) que podem ser adicionados à partida, alterando algumas regras, os objetivos, condições de vitória e a dificuldade da partida.
Para terminar o espetáculo, o funcionamento mecânico dos espíritos é profundamente marcado pela sua identidade temática. Um dos espíritos que mais me agrada jogar, por exemplo, é o Abraço Voraz do Oceano, único espírito cuja presença pode habitar os oceanos no tabuleiro. Além de posicionar suas presenças nos oceanos, o jogador pode também optar por ocupar os terrenos costeiros (nunca os interiores). Outras ações possíveis da fase de crescimento deste espírito são mover as presenças do oceano para a costa ou da costa para o oceano. E é impressionante como é orgânico na partida notar o jogador “enchendo os oceanos”, depois avançando para a terra-firme costeira e depois recuando de volta ao oceano, simulando continuamente na partida a dinâmica das marés! Sensações semelhantes temos com quaisquer outros espíritos e seus elementos!

Spirit Island chegou de mansinho, com um tema nada apelativo no mercado, mas que cativou uma comunidade de jogadores e jogadoras fiéis que se encantaram com o seu design-arte (como o futebol arte)! Hoje, sem tirar nem pôr, está classificado como o 10º melhor jogo na Ludopedia e 12º no BGG e, por não ter tido um hype histérico em torno de seu nome, podemos deduzir que o seu posicionamento é muito mais substância do que simplesmente fogos de artifício!
Com esta breve apresentação, cabe-me dizer inicialmente que Spirit Island traz algo de genial em sua temática. Quando falamos em retratar a temática da crítica à colonização nos jogos, é muito comum ouvirmos comentários criticando a ideia de se conceber enquanto um jogador que, num momento de busca por prazer e entretenimento, se sujeitará a experimentar habitar a pele de alguém que será explorado, escravizado ou colonizado.
De fato, jogos como
This War of Mine, por exemplo, nos faz habitar a pele de civis tentando sobreviver a uma guerra civil - ao cerco de Sarajevo - relegados à própria sorte num contexto de violência, em busca de comida, abrigo, água e ainda a viver pendulando entre a necessidade de manter-se humanizado ou ter que priorizar a si mesmo em detrimento da vida alheia. É um jogo fantástico, contudo é uma experiência com um certo prazer pesado, denso e doloroso (mas de muitos aprendizados). O jogo te põe em muitas crises morais, em situações de tristeza, de despedidas, de fome, frio e morte de seus personagens. Mas é um jogo que te fará odiar guerras e conflitos civis, temor que ultimamente tem rondado muito mais forte diversos países no mundo, inclusive o nosso. E se era esse o objetivo dos designers, missão cumprida! Mas há como passar a mesma mensagem sem tanto sofrimento?
E é aí que reside a genialidade da qual falava sobre Spirit Island! Como forma de contornar esse peso de habitar a pele dos violados pela colonização e manter uma certa leveza temática (o que no mundo real não é possível), o designer colocou estes povos explorados numa terceira dimensão - os Dahan - que não são de fato os personagens dos jogadores, apesar de necessitarmos deles para ganharmos o jogo! Somos então espíritos, seres cosmológicos conhecidos pelos Dahan, que se aproximam muito mais do imaginário fantástico do que da crua e dura realidade humana do colonizado. Por figurarmos como espíritos e não de fato como os próprios Dahan, vivenciamos um certo afastamento da dor do colonizado, apesar de estarmos cercados por ela a todo o instante. Ela – a dor - não está em nós espíritos, mas estamos mergulhados nela e precisamos pará-la antes que ela nos sufoque (é angustiante ver as pecinhas dos invasores brancos se multiplicando infinitamente no tabuleiro, enquanto nossas presenças enfraquecem no mapa com a chegada das corrupções)!

O designer poderia ter transformado os Dahan em qualquer outra coisa, em espíritos menores controlados pelos grandes espíritos dos jogadores; em feras da natureza que, orquestradas pelos espíritos dos jogadores, revidam e aterrorizam os invasores da ilha. Qualquer encaixe temático sobre a identidade dos Dahan no jogo não tiraria a genialidade das mecânicas de Spirit Island, mas muito FELIZmente o designer decidiu por dizer “chega”! Chega de jogos cujas terras são sempre vazias, onde as matas são sempre virgens e passivas aguardando os seus violadores; ou cujos tiles só nos revelam animais silvestres coloridos de uma suposta natureza selvagem e intocada na tentativa de criar uma identidade territorial repleta de exostismo sem a existência dos povos originários. Veja os dizeres de Eric Reuss no manual do jogo:
A semente de Spirit Island apareceu durante uma ação de colonização em algum outro jogo - Goa? Navegador? Endeavor? - Eu pensei, “Me pergunto o quão furiosos os nativos estão com essa nova colônia de estrangeiros? Nós nunca saberemos porque o jogo abstraiu as pessoas que já moravam ali. Ora, isso é um tanto rude.” Eu compartilhei o pensamento, talvez algumas pessoas tenham rido e então nós voltamos ao jogo...”
Não há no mundo terra vazia e intocada. Há abundância inesgotável de achados científicos que nos evidencia que não existe um palmo de chão sequer que não tenha sido modificado desde tempos primordiais pela ação humana (inclusive nos polos). Até a exuberante Floresta Amazônica tal qual se conhece enquanto preservada foi inteiramente “plantada”, num histórico processo natural e de manejo do solo, das plantas e dos animais a partir de assentamentos e migrações humanas desde tempos anteriores à chegada dos invasores europeus à América. A modificação global da Terra não é privilégio da modernidade, de nossos tempos atuais, com nossas armas, máquinas, tecnologias mecatrônicas, químicas e biológicas de dimensões assustadoras. A presença e a modificação global da terra é praticamente a própria história da espécie humana! O grande xis da equação é para onde queremos levar a nossa espécie com este nosso poder de modificação planetário, com magnitude cada vez mais inimaginável. Talvez necessitemos utilizar esta nossa magnitude para terraformar a própria Terra novamente!

Mas voltando ao tema, acreditar que há hoje “terra vazia para ser explorada” é o primeiro passo para colocar no lugar de descombinante, destoante e desajustada a presença daqueles que sempre estiveram lá (os Dahan, em Spirit Island), desde antes de nosso olhar explorador. Se o “lugar vazio” em nosso imaginário colonizador é a regra, a presença de quem sempre esteve tradicionalmente na terra será obviamente a infringência desta regra, o indesejado. “Como assim existem pessoas em meu vazio?”

Estes seres “indesejados” pela modernidade, por atrapalharem o projeto mercadológico e destruidor de humanidade ou os sonhos lunáticos e nostálgicos imperiais ficam então sujeitos a inúmeras formas de violência, tais como o genocídio e o etnocídio. Em ambas as formas de violência (o geno e etnocídio), o povo diferente é sempre o indesejado. Enquanto o genocídio é o assassinato dos indivíduos em sua carne, a interrupção da vida através do extermínio sistemático dos corpos indesejados pelo colonizador, o etnocídio é o assassinato de sua cultura, o não reconhecimento dessas racionalidades de vida e a condenação destes modos de vida como atrasados, involuídos ou subsistentes.
Geralmente, uma forma de violência não vem dissociada da outra! Genocídio e etnocídio compõem uma mesma hidra de duas cabeças criada pelo colonizador. E quando a violência se torna generalizadamente condenada, há sempre um jeitinho de pôr a mancha da desgraça na história do violado. Para o senso comum, a escravidão atlântica, por exemplo, é parte da história do povo negro ou, na verdade, a história do povo branco? Apesar de o senso comum pensar, em geral, na primeira alternativa, dificilmente eu conseguirei concordar com isto! Mas voltemos...

Porém, a grande diferença entre o genocídio e o etnocídio é que no genocídio o indesejado é um mal que deve ser morto, eliminado, enquanto no etnocídio o indesejado é um mal que deve ser “melhorado” a ponto de ser “integrado”, “assimilado” e aceito pelo dominador. Já ouviram falar em inclusão? “Indígenas não tem alma, a menos que aceitem o deus católico e pendurem crucifixos em vez de seus adornos tradicionais”. “Negros são seres atrasados, com exceção daqueles que fazem o gol da nossa seleção!”. A violência do etnocídio é, portanto, muitas vezes mais sutil (e não menos cruel) pela sua tônica de “caridade”, de “bondade” do colonizador. Enquanto o genocídio é justificado pelo “bem” do violador que deseja livrar-se da existência do indesejado, o etnocídio é justificado para o “bem” do violado, cuja subserviência é vista como elevação moral. Em Spirit Island, por exemplo, podemos ver este efeito produto do etnocídio com o Reino da Suécia, que tem o poder de converter Dahans ao ideário colonizador, por exemplo.

Vejamos agora dados reais e o que, em 1898, o Jornal Cidade de Salvador publicou sobre os “criados de servir”, termo utilizado para nomear as trabalhadoras domésticas que, mesmo com a oficialização da abolição, permaneceram em condições análogas à escravidão nas casas dos mesmos senhores de antes:
Para completar este assunto, resta-nos destruir a ideia de vergonha e de servidão que falsa e erroneamente se liga à profissão de criado de servir. Dedicar-se ao serviço dos outros não é em si uma ocupação aviltante. Os criados como os operários, são úteis e até necessários, e tanto mais que sem eles a sociedade é impossível, tanto quanto a igualdade das condições. A fortuna herdada ou adquirida de uns, e a miséria de outros, as ocupações ou as enfermidades que nos deixam a faculdade de prover as necessidades da vida, são razões suficientes para estabelecer a necessidade do serviço doméstico: mas estas razões não trazem consigo forçosamente a inferioridade moral nem para os criados nem para os amos, e esta necessidade não avilta a condição de ninguém.

Para o colonizador, o explorado não precisa sentir vergonha de sua situação de subserviência, pois a sua função é tida como uma forma de cumprir uma importante função na dinâmica social do próprio colonizador, do império, ou seja, lá de quem for, ainda que ela resulte em sofrimento e tristeza brutal, tal qual estavam submetidas as amas de leite, mulheres “criadas de servir” que eram forçadas a amamentar os filhos das senhoras. Esta é a matéria do jornal “O Asteroide: Orgam da Propaganda Abolicionista (BA)”, de 21 de agosto de 1888, em seção denominada “Secção Instrutiva para Hygiene-Alimentação de Crianças”:
Uma vez instalada a ama no seio da família, depois de reconhecido pelo médico o seu estado de saúde, trata-se de conservar ao leite as suas qualidades, e para isso cuida-se da higiene da ama. Deve-se-lhe proibir as substâncias excitantes, apimentadas, fortemente alcoólicas, e na escolha da alimentação respeitar os hábitos de sua vida anterior. Sopas, carnes de vaca, pão, legumes cozidos, que sejam de fácil digestão, vinho com água, cerveja, tal é o regime que convém a quem amamenta. Os alimentos, a respiração, a absorção cutânea comunicam ao leite os cheiros, os princípios voláteis espalhados sobre o corpo, na atmosfera e nas substâncias alimentares. Por isso é preciso obrigar-se a ama aos cuidados do maior asseio.
É preciso vigiar-se a ama a cada instante, até ao menos que ela adquira hábitos novos, que em geral não trazem. Em falta d’este cuidado elas dão a cada passo à criança água com açúcar, sopas e até pirões e outras cousas, julgando que não podem prejudicar com semelhantes carinhos
A ama deve sair diariamente a arejar-se e arejar o pequeno, mas, ou não deve afastar-se do jardim, ou, se a casa não o tem, das proximidades, de forma que não saia debaixo das vistas da família. Se for necessário afastar-se convém ser acompanhada. Se olvidar-se esta precaução na maioria dos casos ela aproveita-se para esquecer seus deveres, comer que bem lhe parecer, etc., etc. O filho da ama é um bom sinal para avaliar-se da qualidade do leite d’esta e até de certas enfermidades que ela possa ter. O exame d’esta é conveniente ser incumbido a um médico. Aqui só nos limitamos a dar as regras de que as mães estejam no caso de poder utilizar-se [...]. Acontece não raro que na primeira semana o leite da ama diminui; é preciso não dar muita importância a isto; as vezes são as saudades, é a mudança de regime, mas logo isto passará. Ha, entretanto, casos em que a separação do marido, as saudades da terra, se vem da roça empregar-se na cidade, a tristeza por ter deixado um filho entregue a outra pessoa, etc., produzem na mulher um aborrecimento invencível, fastio, insônias, e afinal o leite seca-se de todo
Além da descaraterização da própria identidade do explorado, a romantização moral da dor e da subserviência é também estratégia comum para facilitar a imposição dos marcadores de corrupção nas terras invadidas pelos colonizadores.
Este controle dos corpos com o fim de produzir para o colonizador, a propaganda de aceitação desta função como forma de elevação moral ou culpabilização da cultura de um povo originário engendrada pelo etnocídio pode ser operada também por um outro formato que utiliza de estratégia aparentemente inversa: a visibilização. Como assim, invisibilizar visibilizando? Basta trazer estes povos ao discurso oficial apenas pela representação das exceções, pinçando aqueles que colaboraram com o colonizador, varrendo para debaixo do tapete do esquecimento toda uma história hegemônica de lutas e resistências, um modo peculiar de se pensar e se enxergar enquanto ser coletivo no mundo, que fez e faz de tudo para permanecer em seus territórios garantindo o bem-viver de suas próprias comunidades.
Nesta estratégia, para o colonizador é vantajoso então exibir o seu prêmio na capa de todos os seus produtos: o povo violado “melhorado” é o seu troféu máximo, sobretudo quando adotando a cultura e os símbolos do violador: o Jesus branco, a Yemanjá branca, o indígena do império que virou estátua, o negro que diz que a escravidão nunca existiu ou o Egito antigo, o Kemet, povoado de brancos. Não foram brancos que fizeram as pirâmides? Ah! Então só podem ter sido os deuses astronautas ou qualquer outro alienígena! Essa visibilização etnocida representa a violência travestida de representatividade responsável, muito utilizada como marketing do “bem” por muitas empresas, inclusive de entretenimento, para angariar recursos de outros colonizadores tidos como preocupados com a inclusão e a diversidade.

De forma ousada e corajosa, em Spirit Island o designer decidiu trazer os Dahan como elementos imprescindíveis para o desenvolvimento da partida. Os Dahan são sim pessoas, seres humanos, pescadores, agricultores, xamãs, guerreiros, homens, mulheres e crianças que viviam em sua relativa paz com o auxílio de suas divindades, até a chegada dos invasores. No mundo semifictício do jogo, não há terra vazia ou natureza intocada aguardando um explorador. Os Dahan sempre estiveram lá, usam os recursos naturais de forma sustentável, possuem identidade, territórios e, sobretudo, crenças em suas divindades/espíritos da natureza que são, nada mais nada menos, que nós jogadores!

E são estas estratégias de genocídio e etnocídio promovidas pelos invasores da ilha que são, em Spirit Island, representadas pelos marcadores de corrupção. Se o designer mistura ficção e realidade representando invasores europeus entre os anos de 1500 e 1700, podemos deduzir que pouca coisa mudou de lá para cá no mundo real. Não à toa, neste último mês acamparam mais de 6 mil indígenas em Brasília manifestando-se contra a tese do Marco Temporal e o PL 490!
Como disse no início do texto, não é apenas na concatenação das mecânicas extraordinárias de Spirit Island que reside a sua beleza. Todos os detalhes orbitantes, desde a explicação do tema, passando pelos desenhos das cartas, nomes dos poderes e nomenclatura dos espíritos (que remetem aos nomes de indígenas da atual América do Norte) fazem do jogo uma verdadeira obra de arte! E antes que eu seja acusado de estar fortalecendo o mito do bom selvagem, Eric Reuss dá uma importante dica no manual do jogo:
A agricultura e os animais dos Dahan trouxeram a Corrupção para a terra e entraram em conflito com os Espíritos, desencadeando o Primeiro Julgamento. Os Dahan se renderam rapidamente e chegou-se a um acordo: os Espíritos transformariam as culturas e animais dos Dahan para serem mais compatíveis com o ecossistema.
Sim! Os Dahan, no desenvolver de sua própria sociedade já tinham adicionado os seus próprios marcadores de corrupção na ilha, talvez por adotarem formas de viver ou relacionar-se com a ilha de forma não socialmente justa ou ambientalmente sustentável! Não à toa, há no setup inicial do jogo marcadores de corrupção nos tabuleiros. De onde vieram estas corrupções, que nunca estão nas terras onde iniciam os colonizadores? Por meios que não ficam muito detalhadas na história da semificção de Spirit Island, os Dahan conseguiram retomar uma forma mais harmônica de viver entre si e com os próprios elementos da natureza, refazendo um acordo de paz e cooperação com os espíritos dos quais dependem (e vice-versa). Muita viagem do designer? Garanto que não! Há muita ciência nisso tudo.
Certa feita, no Quilombo de Santiago do Iguape, no Recôncavo Baiano, sentei-me à beira do porto da comunidade e comecei a conversar com um dos mais antigos pescadores artesanais da região. Ele contava sobre tempos antigos, antes da chegada de grandes empreendimentos devastadores que traziam fome e pobreza às pessoas locais e de um método de pesca quase em extinção, que ele dizia contar nos dedos quantos pescadores antigos sabiam ainda executar: a pesca de andarilho. Em determinada época do ano, em noite de determinada lua, os pescadores armavam mastros em suas canoas (canoas que aprenderam a fazer como as jangadas Tupinamba) e prendiam uma rede de pesca única passando pelos mastros de todas as canoas. A rede ficava armada no ar, fora d’água, e os pescadores em perfeita sincronia remavam coordenadamente para que nenhuma canoa se desalinhasse das demais, evitando danificar a rede. À popa de cada canoa, acendiam uma pequena lamparina.

Alguns tipos de peixe (que não me autorizaram contar), que nesta época do ano sobem o estuário com um comportamento mais arisco, ao verem, de debaixo d’água, a luz da lamparina nas canoas, saltam em direção à luz da lamparina e emalham-se na rede suspensa sobre os pescadores. A sabedoria era tamanha, que os pescadores sabiam a qual altura a rede deveria ser fixada para capturar determinado tamanho do peixe, já que os peixes maiores tinham mais força para saltos mais altos. Segundo meu companheiro de prosa, a pesca de andarilho não era ensinada para covardes. Fiquei alguns minutos com a dúvida rodando na cabeça, mas resolvi perguntar. Quem seriam os covardes? E ele disse: aqueles que sabemos que se aprendessem estes segredos colocariam a rede numa altura muito baixa! Não é preciso tanta ciência moderna para perceber que taxar de covardia a pesca dos peixes menores é uma tecnologia social muito necessária para evitar a retirada de peixes jovens do ambiente, que morreriam sem nunca terem reproduzido, ou seja, sem terem reposto o estoque pesqueiro tão caro à reprodução física, social e cultural da comunidade.
Depois de ter caído em inúmeras piadas e pegadinhas do antigo pescador, aventurei-me forçar um pouco mais a conversa, perguntando em tom de brincadeira: se você tem uma canoa, um motor de popa e uma rede, por que não faz pesca de arrasto motorizado, como fazem por aí mar afora? E ele me disse num tom sério: meu filho, você daria um soco na sua mãe? E terminou: Diante do mar, eu sou criança. Por segundos, achei que havia ido longe demais nas perguntas, mas logo depois ele sorriu e me ofereceu mais um pedaço de peixe.
Outro registro muito interessante é o que escreveu Pierre Clastres em uma de suas obras sobre a sociedade Tupi ao final do Século XVI. Quando nesta sociedade os poderes dos chefes passaram a instituir-se enquanto estruturas de dominação de seu próprio povo e não mais enquanto “espaços de não poder” para a defesa da comunidade majoritariamente horizontal; quando neste momento cresceu a ideia da criação do “Um”, uma unificação de todos os povoados desta sociedade sob a tutela de uma unidade de “governo” tupi; quando estes grandes chefes passaram inclusive a ser chamados de “reis da província” ou “régulos” pelos próprios portugueses ou franceses; os profetas nômades deste povo, ao ouvirem os sinais dos grandes espíritos, passaram então a divulgar, povoado por povoado, um dos mais belos e intrigantes mitos desta sociedade: o da Terra sem Males, um paraíso onde não haveria dominação, injustiças, violência, guerras, fome, doença ou corrupção. Esta Terra sem Males deveria ser buscada por todos os tupis nos mais longínquos confins da floresta (ação de empurrar?).
A ordem dos espíritos era que o povo se fragmentasse até que os espíritos os chamassem de volta à união. E milhares de indígenas seguiram estes profetas para cantos diferentes, fragmentando em pequenos pedaços fragilizados esta ideia de formação de um “governo” unificado, o mal chamado “Um”, que segundo os profetas seria o prenúncio da corrupção e da infelicidade de um povo fundamentalmente contra qualquer subordinação autoritária, o que os colonizadores propagavam ser o garantidor do bem comum. Não há nada mais forte que um povo preferir fragmentar-se para proteger-se daquilo que, em Spirit Island, seria a chega do marcador de corrupção, o ideário do colonizador, a fundação da uma estrutura centralizadora, máquina do geno e etnocídio.

Se Eric Reuss sabia destes registros, eu não sei. Sei que Spirit Island me faz imergir neste mundo tão atual que é o da luta destes povos existentes e resistentes, os maiores mantenedores e produtores da biodiversidade e agrobiodiversidade mundial, de tecnologias socioculturais incríveis contra a chegada dos marcadores de corrupção dentro de suas sociedades e do nosso planeta (coisas as quais sabemos pouco fazer). Spirit Island nos faz emergir este importante tema e nos escancarar a necessidade de deixarmos viver os povos originários segundo suas próprias autodeterminações e com a nossa solidariedade. Se há povos que estão, desde sua origem, tentando terraformar novamente a própria Terra devastada (e não ir para Marte), estes povos são os povos originários, os bravos Dahan da vida real e seus diversos espíritos.
Sabedoria, cooperação, paciência, respeito à natureza e repulsa à covardia contra a vida: no mundo dos tabuleiros, nada poderia ser tão combinante com o tema de Spirit Island! Por fim, me despeço com as sabedorias de Davi Kopenawa, xamã Yanomami, registradas na obra A Queda do Céu, sobre os seres que, em Spirit Island, são representados pelas pecinhas brancas dos invasores:
Mas os brancos são diferentes de nós. Devem se achar muito espertos porque sabem fabricar multidões de coisas sem parar. Cansaram de andar e, para ir mais depressa, inventaram a bicicleta. Depois acharam que ainda era lento demais. Então inventaram as motos e depois os carros. Aí acharam que ainda não estava rápido o bastante e inventaram o avião. Agora eles têm muitas e muitas máquinas e fábricas. Mas nem isso é o bastante para eles. Seu pensamento está concentrado em seus objetos o tempo todo. (…) Temo que sua excitação pela mercadoria não tenha fim e eles acabem enredados nela até o caos. Já começaram há tempos a matar uns aos outros por dinheiro, em suas cidades, e a brigar por minérios ou petróleo que arrancam do chão. Também não parecem preocupados por nos matar a todos com as fumaças de epidemia que saem de tudo isso. Não pensam que assim estão estragando a terra e o céu e que nunca vão poder recriar outros.
E complementa, descrevendo a vida nas vilas e cidades dos invasores:
Suas cidades estão cheias de casas em que um sem-número de mercadorias fica amontoado, mas seus grandes homens nunca as dão a ninguém. Se fossem mesmo sábios deveriam pensar que seria bom distribuir tudo aquilo antes de começar a fabricar um monte de outras coisas, não é? Mas nunca é assim! (…) Os brancos costumam empilhar seus bens de modo mesquinho e guardá-los trancados. Por sinal, sempre levam com eles muitas chaves, que são as das casas em que escondem seus pertences. Vivem com medo de ser roubados. E, ao final, só os dão com muita má vontade, ou sobretudo os trocam por peles de papel que também acumulam, pensando em se tornar grandes homens.
Se estas reflexões são pouco presentes em nossas vidas, talvez seja a hora de começarmos a pensar sobre as palavras de Kopenawa, a fortalecer a luta dos povos tradicionais e originários, a repensar a colonização nos temas dos tabuleiros e a exterminar o colonialismo em nossas estruturas. É preciso, sobretudo, tecer uma conexão real de respeito à essa gente e começarmos a proteger com unhas e dentes a nossa pequena ilha azul a circular no universo (que é redonda, diga-se de passagem), pois não há outra viável para nós a nosso alcance!
Bem... para quem chegou aqui, espero que tenham gostado e que a partir destas breves reflexões (o texto tinha o dobro do tamanho), ao pensarem sobre esta obra prima que é o Spirit Island, consigam comungar com todos estes sutis e infinitos detalhes do mundo real, que orbitam ao espalharmos numa mesa alguns tabuleiros, cartas e inúmeras pecinhas. Se aprendemos tanto com um jogo, imaginem com os pés enfiados em terra preta!
Abraços e um bom viver a todas e todos!
Por:
Bruno Marchena, tabuleirista soteropolitano comedor de acarajé, amante de Spirit Island, da vida e da luta dos povos e comunidades tradicionais.
Dicas de leitura para descansar a mente após uma partida de Spirit Island
BARCLAY H. People Without Government: An Anthropology of Anarchy. London, Freedom Press. 2009.
BARRETO, Marina Leão de Aquino. “Criada, não, empregada!” - contrastes e resistências sob a vigília dos patrões na regulamentação do trabalho doméstico livre ao final do século XIX em Salvador. Tese de Mestrado, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2018.
BOEHM C., BARCLAY H.B., DENTON R.K., DUPRE M-C., HILL J.D., KENT S., KNAUFT B.M., OTTERBEIN K.F. & RAYNER S. “Egalitarian Behavior and Reverse Dominance Hierarchy [and Comments and Reply”], Current Anthropology, 34: 227-254. 1993.
CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. Tr. Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
CLASTRES, P. Arqueologia da violência – pesquisas de antropologia política. Tr. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Minas Gerais: Editora UFJF, 2010.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008
FERNANDES, F. A função social da guerra na sociedade tupinambá. Prefácio de Roque de Barros Laraia. 3. ed. São Paulo: Globo. [1951] 2006.
KOPENAWA, Davi; ALBERT Bruce. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras. 2017.