Sempre que o Uwe Rosenberg anuncia alguma de seus jogos grandes, eu fico muito atento a tudo que está acontecendo. Quem me lê por aqui sabe do quanto eu aprecio os jogos desse designer. Já escrevi alguns textos no passado sobre títulos específicos dele e também fiz um apanhado sobre os modos solo dos big boxes dele.
Quando o Hallertau foi anunciado, acho que ainda antes do advento da pandemia, com lançamento para a Essen de 2020, comecei a acompanhar as coisas e de pronto me interessei. Uwe criando jogo de fazendinha com cerveja envolvida, bem, nada poderia me soar mais interessante!
Começando pelo tema, Hallertau é uma região na Baviera que desde o século VIII, aproximadamente, especializou-se na produção de um lúpulo de altíssima qualidade, inclusive, sendo carinhosamente chamado de ouro verde. Com a promulgação da Lei Alemã de Pureza, a Reinheitsgebot, em 1516, essa região ganhou enorme importância comercial. A partir daquele momento, ela só poderia ser produzida a partir de três ingredientes: água, malte (de cevada) e lúpulo. Num primeiro momento isso visou assegurar que os demais cereais, como trigo e centeio, fossem reservados exclusivamente para a produção de pães, mas o tempo mostrou que isso foi um grande diferencial de mercado para a cerveja alemã, reconhecidamente uma das melhores do mundo. Eu, em particular, sou fascinado pelo universo cervejeiro! Há tanta cultura e método quanto a viticultura, mas, para mim, ele é mais acessível, porque você pode, inclusive, fazer uma ótima cerveja em casa se tiver o equipamento e os ingredientes corretos, coisa que é bem mais difícil de se fazer com o vinho.
Enfim, posto o tema, logo que o manual do jogo foi divulgado, deu para ver que era um título clássico do Uwe: alocação de trabalhadores, muitas cartas e produção/conversão de recursos. O modo solo, que era o que me interessava, estava contemplado no manual, sem necessidade de qualquer variante não oficial e não mudava nenhuma regra do jogo multiplayer. Não tinha antagonismo ativo por meio de um automa, sendo um típico beat your own score com meta de pontos a se bater para se considerar uma vitória. Eu comprei esse jogo na pré-venda em outubro/novembro do ano passado e recebi minha cópia em fevereiro desse ano. De modo algum eu esperaria para saber se alguma editora iria trazer esse título!
Imagem do usuário puma, no BGG.
Como de hábito, não ficarei falando sobre como se joga, nem nada disso. Daqui a pouco surgem os gameplays em vídeo e vocês verão como isso se dá por gente que de fato sabe explicar regras e da melhor forma possível. Texto escrito não deve ser para isso, fica chato demais. Me concentrarei em minhas impressões sobre o jogo.
Os componentes são espetaculares, tudo que a gente pode esperar de uma produção top de linha da Lookout Games. Arte do Lukas Siegmon e do Klemens Franz, o que tem um tom bucólico de passagem de bastão. O Klemens Franz, ame-o ou odeie-o, fez boa arte do catálogo antigo do Uwe, enquanto o Lukas trabalhou com Uwe em jogos mais recentes, como Nova Luna, Sagani e no lindo Reykholt. Houve alguns jogos com arte do Denis Lohausen no meio tempo, mas acho que o Lukas deverá ficar com o bastão daqui por diante. Acho legal quando há essa parceria de artista e designer, porque isso dá uma identidade visual própria para esses jogos, haja visto o resultado da excelente parceria do Vital Lacerda com o Ian O'Toole.
O que esse jogo tem de diferente dos demais jogos do Uwe?
1) O sistema de alocação de trabalhadores
Diferentemente de muitos outros títulos dele, nesse jogo não há tanto bloqueio porque os espaços de ação não ficam indisponíveis, mas mais caros. Cada espaço de ação tem espaços para se alocar 1, 2 ou 3 trabalhadores. Se o espaço de 1 trabalhador estiver ocupado, você ainda pode desempenhar a ação com 2. Se os espaços de 1 e 2 trabalhadores estiverem ocupados, você ainda pode desempenhá-la alocando três deles. Você só não consegue executar a ação se todos os espaços estiverem ocupados ou se você não possuir a quantidade de trabalhadores necessária. No início de cada rodada, você sorteia uma carta e, a depender do número de jogadores, um determinado número de espaços será limpo para aquela rodada, barateando o custo de determinadas ações.
2) Uso dos baralhos
O jogo tem 4 baralhos diferentes – gateway (fornece benefícios rápidos que são bons para dar um gás no início da partida), farmyard (focam a partida em elementos estratégicos específicos, como a produção de lúpulo, ovelhas, campos de plantação ou jóias), bonus (oferecem bônus em uma fase específica no início de cada rodada, geralmente algum recurso, além de pontos no fim da partida) e point (fornece condições para ganhar grande quantidade de pontos, geralmente a partir da conversão de algum recurso do jogo). O baralho gateway tem cartas de iniciante, avançadas, para experts e mestres do jogo, oferecendo graus variados de complexidade.
O que eu achei mais legal dos baralhos é que você não tem que aguardar nenhuma fase específica ou realizar nenhuma ação para jogar a carta e obter seus efeitos. Isso dá uma dinâmica bastante interessante para o jogo. O timing exato para se executar uma ação, obter um recurso e jogar uma carta fornecem um quebra-cabeças gostoso, desafiador e interessante.
Por outro lado, isso faz do Hallertau um jogo com forte componente tático, pois você precisa criar uma máquina flexível o suficiente para poder se virar com o que cartas sacadas aleatoriamente possam eventualmente oferecer. Isso pode desagradar a pessoas que não gostam de jogos com elementos de aleatoriedade, porém isso faz com que o jogo ganhe em rejogabilidade, o que é fundamental para jogos solo.
Um outro ponto importante relacionado ao baralho é que essas cartas que algumas cartas lhe dão bônus de rodada, dando um elemento de tableau building, e também como pontos ao fim do jogo. Você precisa se atentar não apenas aos benefícios eventuais que uma carta possa trazer, mas o benefício de fim de partida também.
3) O sistema de conversão de recursos em pontos
Em última análise, boa parte dos jogos do Uwe centram-se em torno da conversão de recursos em pontos. Você adquire/produz recursos, que vão te permitir utilizar uma carta ou ação, o que se reverterá em mais recursos/ações e, por fim, pontos no fim do jogo. A heurística dessas decisões nem sempre é clara e, se o jogador não conhece muito bem o jogo, isso pode impactar em seu desempenho. No Hallertau as coisas são mais claras. Muitos pontos vem do seu community center e das cartas, isso faz com que você tenha objetivos mais claros e acessíveis desde o tempo zero. Embora, como eu disse acima, trate-se de um jogo muito tático, esse elemento dado pelas cartas iniciais permite que você tenha um norte para orientar parte de suas decisões.
4) O modo solo
Talvez essa seja a melhor implementação de um modo solo em um jogo do Uwe Rosenberg. Digo isso porque, a meu ver, ele é o mais orgânico. Não há absolutamente nenhuma mudança de regras significativa em relação ao jogo multiplayer e ele tem uma natureza tão própria, que faz dele uma experiência particularmente agradável. É um jogo de setup rápido, uns 5-10 minutos no máximo e com partidas que duram em torno de 60 minutos uma vez que você saiba as regras. Ele tem variabilidade suficiente para que você possa jogar durante muito tempo sem se cansar ou experimentar tudo que o jogo oferece. A meu ver isso deve-se à associação muito bem calibrada entre o sistema proposto pelo jogo e a variabilidade advinda das cartas.
Imagem do usuário puma, no BGG.
“Ah, mas você é fanboy do Uwe! Gosta de tudo que ele faz! Sua opinião é enviesada.”
Sim, sou fanboy do Uwe mesmo, mas isso não faz com que eu seja cego a problemas que esse jogo eventualmente possa ter.
O primeiro ponto que pode incomodar é o elemento de chance que vem do baralho, do saque de cartas. Você pode ter uma mão que te ajuda ou não e, durante a partida, adquirir outras cartas que não se encaixam dentro da linha estratégica que você adotou com base em sua mão inicial. Eu não gosto desse argumento, porque acho ele um esvaziamento da proposta do jogo. Quem falha, nessa situação, não é o jogo ou o designer, mas o jogador que não sabe criar estratégias flexíveis o suficiente para que ele se adapte a um contexto no qual ele não domina todos os elementos. De qualquer maneira, isso pode ser problema para quem prefere jogos sem informações ocultas, com tudo exposto na mesa.
Em segundo lugar, uma coisa que me incomoda bastante e acho que isso seja um problema, é a dependência de você avançar seu community center para adquirir pontuações mais robustas. Você necessariamente terá de fazer isso se quiser ter uma performance boa, pois os pontos que você consegue obter por outros caminhos não são suficientes para assegurar competitividade. É um pouco do que se reclama do Agricola, que você tem que seguir um roteiro de coisas para se fazer e ter ou o jogo te pune com a pontuação de um jeito que definitivamente não é legal.
Por fim, um outro problema que vejo está na grande virtude do jogo para mim. O modo solo é tão bem implementado porque Hallertau é um verdadeiro multiplayer solitaire. A única forma de interação entre os jogadores na partida se dá pela disputa dos espaços no tabuleiro de ações. Só que, como há pouco bloqueio em função da forma como as ações são feitas, como disse anteriormente, isso não chega a ser um problema grande. Trata-se, portanto, de um jogo com pouca interação e que, quando ocorre, ela não é nada agressiva e não atrapalha muito o jogo do adversário. Isso pode ser uma virtude para algumas pessoas, mas não deixa de ser um problema para aqueles que querem euros “briga de faca no elevador”.
Para finalizar o texto, eu gostaria de dizer que fiquei extremamente feliz com Hallertau. Ele é um euro médio redondo, com ótimos componentes, boa jogabilidade, que trouxe tudo que eu gosto nos jogos do Uwe e mais alguns elementos novos. Eu não tive oportunidade de jogá-lo com outras pessoas ainda, mas, por sua natureza, acredito que o modo solo emule bem a partida multiplayer. Na minha escala de bons jogos solo do Uwe, esse aqui foi catapultado para o topo sem maiores delongas. Esse ano já foram quase 30 partidas, para vocês terem uma ideia. Ele não chega a desbancar Banquete para Odin, Loyang e meu querido Agricola, mas não deixa nada a desejar a nenhum desses títulos.
Se você gostou desse texto, não se esqueça de clicar no botão de curtir aqui em baixo. Inscreva-se no canal para acompanhar as próximas postagens e confira os outros que já estão disponíveis.
E lembre-se: TOGETHER, WE GAME ALONE!