No, thanks? Sim, claro!
Talvez os mais novos não lembrem, mas na minha época de infância (eu tenho um pouco mais que os "25 anos" do Paulo), o Silvio Santos começava sua maratona dominical com um programa infantil, chamado "Domingo no Parque".
Bem ao seu estilo, o programa nada mais era do que uma espécie de gincana onde ele colocava as crianças em brincadeiras que rendiam prêmios e pontos para o seu time. Porém, em plenos anos oitenta, havia pouquíssima preocupação em evitar que as crianças fossem feitas de bobas.
Acredito que o quadro mais icônico do programa fosse o "Foguete da Sorte" (eu tive que pesquisar para lembrar o nome). A criança escolhida era colocada no tal foguete, onde ela nada via e ouvia, além de uma lâmpada vermelha. Começada a brincadeira, o Sílvio se dirigia para um palco cheio de brinquedos e badulaques, e propunha barganhas para a criança:
- "Você quer esse patins?";
- "Troca esse patins por uma bicicleta?";
- "Troca a bicicleta por uma chupeta velha?"
Não encontrei uma foto do original com qualidade razoável, então vai a da paródia
A cada oferta, a lâmpada vermelha acendia e a criança deveria dizer "SIIIIIMMMM" ou "NÃOOOOO", mas sem ter a menor ideia do que estava sendo ofertado.
Em “No, Thanks”, um jogo de Thorsten Gimmler, lançado em 2004 e que chegou no Brasil pela Paper Games em 2019, o jogador também é instado em seu turno a dizer “sim” ou “não”. Alguns afoitos em dar vaticínios definitivos sobre jogos dirão que a decisão é quase tão aleatória quanto na brincadeira do Silvio Santos.
A função desse artigo é demonstrar que não é bem assim. Embora, sim, a sorte tenha uma boa influência no resultado do jogo, é possível jogar de uma forma que minimiza os desastres e aumenta as chances de bons resultados. “No, Thanks” serve, na verdade, como um pequeno laboratório de mercados especulativos, onde a ganância e o pânico se alternam!
O Jogo
Em No Thanks, existem 33 cartas, numeradas de 3 a 35 e um número fixo de fichas (na maior parte das configurações, os jogadores iniciam com 11 fichas cada).
Nove cartas são retiradas do jogo. As demais formam uma pilha e vão sendo reveladas, uma de cada vez. Sempre que uma carta é revelada, os jogadores, cada um na sua vez, deve decidir se pega a carta para si, ou se paga uma ficha para não pegá-la (daí o nome do jogo, "Não, obrigado"). Se você não tem fichas, é obrigado a pegar a carta.
As fichas pagas formam um pote junto à carta e quem decidir levá-la, leva as fichas consigo. Uma nova carta é revelada e o jogador que pegou a anterior é o primeiro a decidir se pega ou paga.
A questão é que o valor nominal das cartas te tira pontos enquanto as fichas lhe dão pontos. O objetivo do jogo é, depois de um número determinado de rodadas (no campeonato que fizemos foram 3), ter a maior quantidade de pontos (lembrando que -30 é MAIOR que -40).
O twist do jogo está no fato que se as cartas estiverem numa sequência, apenas a menor conta pontos (por exemplo, se você tem as cartas [9,10, 23, 24, 25], apenas a 9 e a 23 estarão pontuando, dando 32 pontos negativos).
Então, o que acontece é que, durante a partida, as cartas passam a ter valores diferentes para cada jogador, de acordo com as cartas que eles pegaram antes, e isso que permite a coisa mais legal de "No, Thanks": a possibilidade de deixar uma carta rodar para pegar as fichas dos amiguinhos!
"No, Thanks" é o típico jogo para se jogar de forma descontraída, numa mesa de bar, batendo papo. Isso o torna um jogo bobo? Será que é apenas uma questão de sorte, ou há formas de abordar o jogo de maneira racional?
A matemática de No Thanks
A primeira coisa a perceber em No Thanks é que a quantidade de fichas é limitada. Cada jogador tem onze fichas e a soma total de fichas é esse número vezes o número de jogadores (44 num jogo de 4 pessoas).
Embora as fichas valham pontos, sua principal função é lhe dar flexibilidade. Se você ficar sem fichas, terá que pegar todas as cartas que passarem por você. E isso é muito ruim.
Jogar para fazer muitas fichas é uma estratégia aparentemente interessante, só que muito limitada.
Porque os outros jogadores tem o mesmo problema que você: NÃO FICAR SEM FICHAS. Se ficarem muito pressionados, eles vão fazer compras "ruins", para sair do aperto. E se você entrar numa disputa de comprar fichas a qualquer custo, os pontos das cartas com certeza ultrapassam em muito os pontos obtidos com elas.
A segunda coisa a pensar é quantas fichas você vai precisar para não comprar cartas ruins. O jogo vai abrir 24 cartas. Assumindo que cada carta passe por você apenas uma vez (com certeza a média é um pouco maior do que essa), você precisaria de 24 fichas para ter a chance de passar tudo.
Tenha em mente que se você chegar a possuir de 40% a 50% das fichas do jogo, já estará em muito melhor situação que seus adversários. É como aquela piada: para não ser comido pelo leão, você não precisa correr mais do que ele, apenas correr mais do que o cara que está do seu lado.
Mesmo assim, você ainda precisará comprar cartas. Quais? A que preço (isto é, qual a diferença entre o valor da carta e a quantidade de fichas)?
Como vimos na explicação das regras, conectar cartas faz com que apenas a primeira da sequência conte para a pontuação do jogo. Aí está a chave. Seu objetivo é conectar cartas para que você possa pescar fichas sem aumentar seu total de pontos negativos.
Aqui cabe mais uma informação estatística: quando o jogo começa, a chance de uma determinada carta estar no bolo é de 72% (24 de 33 cartas). Quando resta uma única carta, a chance dela ser a que você quer é de 10% (1 de 10 cartas). O momento crítico, o momento onde a probabilidade cai de 50% é quando restam nove cartas no bolo (9 de 18).
O Comportamento de Manada
No Thanks em certo ponto lembra bastante os mercados financeiros, onde a ganância e o pânico se alternam rapidamente. A calma e a paciência em esperar demais a carta certa com uma quantidade boa de fichas sobre a mesa pode rapidamente se transformar no pânico de estar à beira da bancarrota.
Isso é muito parecido com a eterna discussão entre os grafistas e os fundamentalistas no mercado de ações.
O fundamentalista é aquele que pega os números da empresa (seus "fundamentos") e tenta calcular o valor "justo" da ação. Se o valor de mercado está menor que o valor justo ele compra, se está mais alto, ele vende. Já o grafista não olha para nada disso, a única coisa que interessa é o movimento histórico dos preços. Eles acreditam que os preços se movimentam por padrões conhecidos e com isso é possível se antecipar e ganhar dinheiro com isso.
Eu não vou entrar na roubada de discutir o mérito dos dois modelos, mas é notório que um dos fatores que faz o grafismo funcionar é que ele é uma espécie de "profecia autorrealizável". Quanto mais pessoas atuam usando os conceitos do grafismo, mais o mercado funciona de acordo com as teorias grafistas! O mercado sempre acaba se corrigindo e voltando aos fundamentos, mas ele pode ficar muito tempo flutuando no preço errado.
Os fundamentalistas podem estar certos em suas análises, mas quanto tempo eles podem esperar para que o mercado se torne racional e o preço volte para o seu valor teórico? Quanto tempo você aguenta ficar contra a corrente sem falir?
Voltando para o No Thanks, o que eu quero dizer com isso é que pouco importa se você acha que seus adversários estão pegando as cartas cedo demais, que seria "racional" eles deixarem a carta rodar mais um pouco. Se todos estão comprando cartas mais cedo do que você compraria, você precisa se adaptar a isso, ou suas fichas vão acabar! Ler a mesa e entender o valor pelo qual as cartas estão saindo é fundamental!
Plano de Jogo
A primeira estratégia que costuma vir à mente é a de juntar cartas altas. Elas tendem a passar mais vezes na mesa, coletando mais fichas. Você pode pegar uma delas, ganhar um pouco mais de controle com as fichas que pega e esperar uma carta conectada (digamos, o 33, se você comprou o 34), e deixá-la rodar um pouco mais, já que, para os demais, ela carrega muitos pontos negativos e seu comportamento racional é pagar para não pegá-la.
Não há nada errado com isso, apenas o fato de que provavelmente os adversários estão com a mesma ideia! Se a carta ideal cair para você, ótimo, mas o que fazer quando cai na mão deles? Em um jogo de 4 pessoas, 75% das vezes é o que vai acontecer.
Quando eu joguei o torneio, eu já tinha algumas dessas questões na mente, mas não todas. Eu tentava fazer um approach mais "fundamentalista", tentando me controlar para não comprar cartas com um preço maior que 10 (isto é, a diferença entre o valor da carta e a quantidade de fichas). Na minha cabeça, mantendo essa razão, eu conseguia manter um placar baixo com as conexões que fizesse.
Isso funcionou bem até o torneio, quando joguei várias mãos e comecei a ver os problemas da minha estratégia. Os adversários começaram a comprar cartas antes de mim, pegando menos fichas do que deveriam. Isso parecia ruim, mas levava ao problema do comportamento de manada que citei.
Manter a racionalidade pode ser caro quando se fica sem liquidez! Foi assim que estourei e perdi uma partida que liderava por 60 pontos!
Então, eu revi minhas ideias e tentei ver como os outros jogam. Com isso, cheguei no que hoje é o meu plano de jogo para o No Thanks.
A ideia é conciliar as duas necessidades que o jogo propõe:
- Comprar cartas que eu possa conectar com cartas futuras sem ser ameaçado pelos demais
- Manter uma quantidade de fichas suficiente para não estourar
Então eu tento comprar a primeira carta "solta" que eu puder. Uma carta está "solta" quando ela não tem vizinhos próximos na mesa (por exemplo, se ninguém tem cartas de 23 a 27, a 25 é uma carta solta). Uma carta que não tenha vizinhos imediatos, mas que possua pelo menos uma carta na mesa dentro desse limite, é uma carta "semi-solta".
Se for uma carta alta (acima de 20), eu posso esperar duas rodadas antes de comprar. Depois disso ela fatalmente será comprada. Se for uma carta baixa, espero no máximo uma rodada. Cartas na faixa de 5 a 15 podem ser pegas de primeira, se estiverem soltas.
A partir desse momento, eu tento comprar qualquer carta que conecte ou que fique a ponto de conectar com a que eu já tenho (no exemplo anterior, qualquer carta entre 23 e 27). Essa regra vale pelo menos até faltarem 9 cartas no baralho (que é o momento onde a probabilidade de uma carta determinada aparecer chega a 50%). A partir desse ponto, compre apenas cartas conectadas, a menos que você esteja desesperado e precisando de uma ação heroica para vencer o jogo.
Dependendo da situação da mesa e das oportunidades, considere abrir uma segunda frente. Eventualmente compre uma carta semi-solta, se ela vier com uma boa quantidade de fichas. Fique de olho na quantidade de cartas restantes. A partir do momento que faltam 8 cartas, a chance da carta que você precisa aparecer é menor que 50%. Passe a jogar na segurança a partir desse ponto.
Quando pintar uma carta conectada, a decisão importante é quando comprar. Tirando um eventual block de sacrifício (a pessoa está se penalizando para não deixar você se beneficiar), um jogador só comprará uma carta ruim se estiver apertado. Ter uma noção de quantas fichas cada jogador possui é fundamental para não perder cartas cruciais. Via de regra, não arrisque passar uma carta que conecta duas sequências, pois você está salvando duas cartas inteiras (a que você está pegando e a de cima).
Por fim, essa estratégia leva em consideração que você vai jogar várias partidas e o resultado será definido pela soma acumulada. O objetivo é não ficar mal demais em nenhuma rodada e tentar ganhar pelo conjunto da obra.
Esse plano de jogo é perfeito, testado matematicamente, à prova de bala? Não. Mas usando-o nas minhas partidas após o torneio, tive bom resultado com ele. E ele me dá segurança de estar pensando nas questões mais importantes.
Eu me inspirei bastante na forma como vi o Gabriel Carnavale, jogar, que é da minha equipe e que venceu o torneio. Ele credita muito das suas vitórias ao poder do álcool, mas me ajudou bastante nos insights que levaram a essas ideias! Agradeço muito a ele por sua humildade e gentileza!
E, claro, se você usar essa estratégia e se der mal, concentre os xingamentos em mim! Ou beba antes de jogar! Talvez seja a parte que está faltando!
Conclusão
Eu adoro No Thanks. Acho um jogo fantástico. Tem uma combinação de sorte e raciocínio matemático muito bacana. É um jogo de purrinha moderno!
Diferente do foguete da sorte, onde a pobre criança não tinha informação nenhuma sobre o que estava sendo ofertado pelo Sílvio Santos, em No Thanks você pode controlar o seu destino na maioria das vezes. Ainda assim, a sorte lhe pregará peças.
Além da versão que comentamos aqui, o manual traz diversas variantes. Você pode jogar com as fichas abertas ou com uma carta secreta na sua mão, que você pode ou não usar dependendo da situação do jogo. Isso permite que o jogo se renove com novas possibilidades.
Numa época onde os jogos estão realmente vindo muito caros, é reconfortante saber que podemos encontrar excelente diversão com produtos que custam bem menos que 100 reais e que te dará uma jogabilidade quase infinita. No Thanks é o tipo de jogo que nunca se esgota.
Nada mal para um jogo de boteco!
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!