No mundo dos jogos modernos, o acaso é mal visto. Ele pode até ser tolerado em jogos menores, party games ou fillers. Mas em jogos “sérios”, euros ou econômicos? Nem pensar!
Eu acho engraçado isso, porque o raciocínio estatístico faz parte da maioria das situações que os jogos desse tipo tentam emular. Não há nenhuma garantia na vida que as condições do “setup inicial” se manterão por todo o jogo. Porque então descontamos tanto o valor de jogos que trazem algo que você pode mitigar, mas nunca controlar totalmente?
Será que não estaríamos melhor preparados para a vida se alguns jogos nos fizessem lidar com um evento (tipo, sei lá, um vírus) que simplesmente cancela a produção dos seus prédios por um tempo indeterminado?
Talvez Deus seja ameritrasher!
Essa longa introdução foi para dizer que hoje vamos avaliar o Jaipur, um excelente jogo rápido de duas pessoas que mistura sorte e estratégia de uma forma muito interessante.
Duas versões de Jaipur
Se você já jogou Jaipur sabe que poucas coisas na vida dão mais raiva do que seu adversário pegar cinco camelos e só vir porcaria enquanto você, que puxa uma cartinha só, abre um diamante para ele.
Nesse artigo vou apresentar rapidamente o jogo, contar um pouco da minha experiência no recente torneio do Covil onde esse foi o jogo proposto e comentar um pouco do que aprendi (jogando, olhando os craques do BGA e lendo algum material que encontrei na internet).
Mas antes disso, vamos falar um pouco sobre a sorte nos jogos de tabuleiro.
Sorte e Jogos, uma longa aliança
Quando Júlio César chegou às margens do Rubicão (o Rio que separava a Gália da Itália segundo a norma romana), no momento que antecede literalmente o maior ALL-IN da história antiga, ele contempla uma última vez suas chances, olha para suas tropas, exclama “Alea jacta est” e segue em frente. A República Romana e o mundo nunca mais seriam os mesmos.
Hoje traduzimos essa famosa frase como “a sorte está lançada”. Mas, se você olhar o verbete “alea” no Online Latin Dictionary, verá que “sorte (chance)” é apenas a quinta definição sugerida. As anteriores são “jogo de dados”, “dado”, “jogar dados”, “apostar”.
A frase ficaria melhor traduzida como “Os dados foram lançados” ou “O jogo foi feito”. Mas acho que isso era um pouco demais para os historiadores protestantes do mundo anglo-saxão, e a alusão ao jogo foi retirada do contexto.
O ato de jogar sempre esteve ligado ao risco e as apostas. Pascal criou a análise combinatória para resolver um problema relacionado a um jogo de azar. Os processos de formação de rateios em corridas de cavalo são muito parecidos com o processo da formação de preços nas bolsas de valores.
Jaipur – Conceitos
Jaipur é um parente moderno da longa tradição de jogos de cartas que misturam habilidade e sorte. Desenvolvido por Sebastien Pauchon em 2009, é um jogo exclusivo para 2 pessoas e foi trazido para o Brasil ano passado pela Galápagos Jogos.
O tema está ali só para cumprir tabela (tem que existir algo para justificar a arte das cartas e dos demais componentes): você é um mercador que atua no Rajastão e está disputando entrar para a corte do marajá com um concorrente seu. Para isso, você precisa mostrar que é o comerciante mais habilidoso do local (não consigo entender porque o Marajá iria querer comprar mercadorias do mercador mais esperto… provavelmente ele vai cobrar mais caro assim que obtiver o monopólio).
O jogo então é definido da seguinte forma: abre-se uma fila de 5 cartas entre os dois jogadores (que funciona como o mercado) e cada um recebe cinco cartas, que podem ser de mercadorias ou de camelos.
Os jogadores possuem três opções em seu turno:
- Pegar uma carta de mercadoria ou todas as cartas de camelos do mercado;
- Trocar uma quantidade qualquer de cartas suas (mínimo de duas) por igual número de cartas do mercado;
- Vender cartas da mão em troca das fichas que estiverem disponíveis;
As mercadorias mais caras (diamantes, ouro e prata) precisam ser vendidas em lotes de pelo menos duas. As demais podem ser vendidas de uma em uma. Mas todas as mercadorias dão bônus quando são vendidas em lotes de 3, 4 ou 5 cartas.
O jogador pode manter na mão até 7 cartas de mercadorias. Além disso, ele pode manter uma quantidade qualquer de cartas de camelos. Essas servem para duas coisas: para serem trocadas por mercadorias disponíveis no mercado e para dar uma pontuação de 5 pontos no final da rodada para quem tiver a maior cáfila.
A rodada termina quando acabam as fichas de 3 mercadorias ou quando acabam as cartas do baralho que abastece o mercado. Avalia-se quem tem mais camelos, e apuram-se os pontos, dando um marcador de vitória para o vencedor e começa-se uma nova rodada. Quem tiver duas vitórias vence o jogo.
Jogando Jaipur – Primeiras partidas
Quando se começa a jogar Jaipur, rapidamente você percebe que é melhor que o adversário abra as cartas para você do que para ele. Porque cada carta aberta é uma nova oportunidade de compra que não existia antes, e o jogo premia muito a coleção das cartas mercadorias nobres (o primeiro par de diamantes vale 14 pontos).
Existem alguns momentos onde o adversário não poderá comprar uma carta. Quando ele já está com sete cartas, por exemplo. Ele poderá trocar suas cartas, mas terá que desfazer de algo que está guardando. Esse costuma ser um bom momento para pegar os camelos. Ou quando ele não tem camelos e só pode pegar uma carta qualquer.
Com essas ideias, que rapidamente são entendidas, o jogo tende a ficar muito travado. Os dois jogadores ficam pegando uma cartinha de cada vez, vendendo uma cartinha de cada vez, um esperando o outro piscar. Jaipur se torna muito tenso e você com certeza vai passar raiva quando abrir uma carta boa para o adversário (e esquecer as boas que ele abriu para você – até porque isso quase nunca acontece!!).
Eu já tinha jogado Jaipur antes do Torneio que o Covil fez no mês passado, mas sempre o joguei de forma muito casual, com gente para quem estava ensinando o jogo, ou em uma situação onde ganhar ou perder não importava muito.
Jogando no Torneio, ou simplesmente no BGA valendo o ELO, eu comecei a me irritar demais com o jogo. Não era possível. Como eu passava raiva cada vez que eu deixava de pegar camelo para limitar as chances de vir coisa boa pro adversário e abria um diamante!! Devia ter algo que eu não estava percebendo. Não podia ser só azar.
Como os craques do BGA jogam
O BGA tem uma coisa maravilhosa que é você poder analisar as partidas de qualquer jogador. Peguei o ranking do Jaipur e olhei o retrospecto de alguns dos líderes do ranking (botei um exemplo aqui embaixo).
O que esse cara faz na vida além de jogar Jaipur?
Sessenta e nove por cento em DEZ MIL PARTIDAS? Fica difícil acreditar que é só sorte.
Fui ver alguns jogos dele. Para a minha surpresa, ele pega camelos como se não houvesse amanhã no início do jogo. Dane-se abrir cartas altas. E, quase sempre, ele ganha a partida vendendo 3 ou 4 conjuntos pesados de mercadoria.
Quando você tem camelos você controla o jogo, pois você pode fazer trocas sem desfazer da sua mão. O preço que ele pagava por uma eventual mão ruim normalmente era compensado pelas trocas que ele conseguia fazer e pelo fato que o adversário fica apertado sem ter como fazer trocas boas.
Se você pensar bem, o momento onde é menos provável abrir uma carta específica é justamente no início do jogo, quando o baralho está mais cheio (as mercadorias nobres são mais raras que as demais).
Quando os caras de nível alto jogam entre si, eles competem pelos camelos e a dinâmica de não abrir cartas reaparece. Mas ela não se torna tão desconfortável como me parecia antes.
Mesmo abrindo essas 5 cartas para o adversário eu venci a rodada
Peguei essas ideias e fui me aventurar no BGA. Joguei contra um adversário de elo 300 (eu tinha 199 nesse momento). Na primeira rodada, ganhei com certa facilidade. Na segunda, quando peguei 4 camelos, abri dois diamantes de uma vez só! Isso somado a outros lances azarados, fez o adversário marcar mais de 90 pontos. Sacudi a poeira, e mantive minha estratégia na terceira rodada. Vitória por 74 a 70!
Pena que o torneio já tinha acabado!
(A propósito, foram aproximadamente 70 jogadores e a classificatória foi um torneio suíço de 4 partidas. Ganhei duas e perdi as demais. Obtive algum consolo em ver que meus algozes foram o campeão e o terceiro colocados!)
Uma última dica: existe uma forma muito simples de saber quantas cartas de uma determinada mercadoria ainda não saíram no jogo. Repare a distribuição de cartas e fichas no jogo:
Perceba que existem 44 cartas e 38 fichas de mercadorias. Na verdade, existem sempre uma ficha a menos em relação às cartas. Como as fichas saem do jogo na mesma quantidade que as cartas,
a quantidade de cartas em jogo de um determinada mercadoria é sempre igual a quantidade de fichas mais um.
Então, se restam 3 fichas de ouro, é porque ainda tem em jogo 4 cartas de ouro. Se você está prestando atenção nas cartas que seu adversário pega e vende, você sabe quantas estão no baralho. Assim você pode avaliar mais facilmente as probabilidades de sair uma determinada carta quando abrirem espaços no mercado!
Qualidade dos Componentes e da Implementação digital
A qualidade dos componentes é excelente. O preço é talvez um pouco acima do que as pessoas esperam pagar num jogo de cartas para duas pessoas, mas há que se levar em conta que é uma produção caprichada.
Por fim, o jogo é oferecido não só no BGA (onde o nosso torneio foi jogado) como também em um ótimo aplicativo de celular. Esse aplicativo tem um modo campanha muito legal, onde a cada fase as regras do jogo são modificadas de diversas formas, mudando radicalmente a estratégia do jogo em alguns casos.

Aplicativo do Jaipur
O BGA funciona razoavelmente bem, mas tem sofrido com lentidão e glitches estranhos (que normalmente são facilmente resolvidos com um refresh). Provavelmente é um problema causado pela capacidade dos servidores.
Conclusões
Jaipur é um dos melhores jogos para duas pessoas que temos no mercado. Suas partidas são rápidas, tensas e emocionantes.
Um jogador experiente pode perder uma ou outra rodada para um novato, mas dificilmente perderá partidas em série, pois suas regras trazem sutilezas suficientes para que um jogador experiente mitigue os riscos que corre.
Não se engane, mesmo que você aprenda todas as técnicas de mitigação que o jogo permite, mãos azaradas ainda irão ocorrer. Como na vida, “tem dia que é noite”. Mas aprender a lidar com o revés (ainda que injusto), é uma necessidade da vida adulta. Que bom que ainda existem jogos que nos ensinam a lidar com isso.
Nota: 4/5
PS: Se você gosta do nosso trabalho, peço que considere votar no Covil dos Jogos para o prêmio Ludopedia, especialmente para o prêmio de “Mídia Escrita”, onde estamos concorrendo pela primeira vez!
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Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!