Era algum mês do primeiro semestre de 2012. Não vou lembrar ao certo, sou péssimo com datas. Eu me recordo apenas que era no primeiro semestre por conta da faculdade. Pouco tempo depois do episódio que estou prestes a compartilhar com vocês, a faculdade entrou em greve, decidi fazer vestibular de novo, mudei de curso. Minha vida certamente mudou naquele ano. Ainda que para alguns a faculdade seja um divisor de águas na vida daquela pessoa, para mim, sem sombra de dúvidas, o momento mais marcante daquele ano de 2012 foi aquela noite despretensiosa de jogos onde eu vi um meeple pela primeira vez.
Longa viagem de ônibus do trabalho para casa. Eu trabalhava em um colégio como monitor de matemática tirando dúvidas dos alunos em horário complementar ao das aulas. Era uma rotina bastante cansativa, o colégio tinha várias unidades espalhadas pelo Rio de Janeiro e eu trafegava bastante entre elas. Final de noite, cansado como de costume, doido para chegar em casa, faltavam uns poucos pontos de ônibus até a minha parada, meu telefone tocou (eu ainda não tinha um Smartphone naquela época).
“Luis, você está livre?”
“Estou no ônibus, quase chegando em casa aqui...”
“Dá uma esticada na casa do Daniel, estamos aqui jogando um jogo diferente!”
Suspendi a conversa por alguns segundos, que pareciam uma eternidade. Era quase a minha parada. Eu queria mesmo tomar um bom banho morno, colocar um moletom bem surrado e comer alguma porcaria qualquer no final da noite. Sempre tive dificuldades para dizer “não”. Naquela hora eu precisava de uma desculpa o quanto antes, meu amigo estava esperando do outro lado da linha. “Pense, Luis, pense! Você sabe que ser direto não funciona contigo!”.
“Tá, estou indo aí!”
D’oh!
(LUIS, CÊ É BURRO, CARA! ATÉ A VERDADE ERA MELHOR DO QUE ISSO...)
O ônibus em que eu me encontrava tinha acabado de passar do meu ponto. Agora já era, eu estava a caminho da casa do Daniel. Espero que esse jogo seja muito bom. Ele nem especificou, eu acreditava que fosse algum jogo de videogame ou computador. Uns 20 minutos depois, chego ao ponto mais próximo da casa dele, dali eu tive que andar mais uns 10 minutos a pé. Espero que esse jogo seja realmente muito bom porque já está ficando tarde, estou muito cansado e depois eu ainda vou ter que voltar isso tudo para finalmente chegar em casa. “Luis, cê é muito otário, cara…”.
Quando entrei na casa, todos estavam sentados no chão em torno de uma mesinha de centro. No meio da mesinha havia um monte de pedacinhos de papelão com trechos do que parecia ser um mapa e uns bonequinhos coloridos em cima de alguns deles. Isso definitivamente não é um videogame. Mais parecia um quebra-cabeça interativo. Só podia ser pegadinha. Eles me fizeram andar esse monte de chão no meio da noite para montar pecinhas e formar uma paisagem…
“O que vocês estão jogando?”
“Carcassonne!”
(No meu cardápio só havia Detetive, Banco Imobiliário, War, Jogo da Vida e amigos).
Percebendo a minha cara de “Tá, isso que você acabou de falar não me ajudou em nada!”, o dono do jogo pediu para que eu me aproximasse da mesinha e ele iria me explicar as regras. Quando sentei no chão junto a eles, percebi que os bonequinhos que estavam em cima dos pedaços de papelão eram feitos de madeira. Que interessante, até então nunca havia visto um jogo de tabuleiro com peças de madeira que não fosse Xadrez, Damas ou Gamão. Na verdade, o próprio conceito de “jogo de tabuleiro” estava um pouco difuso na minha mente ali porque, bom, para começo de conversa, não havia muito bem um “tabuleiro” naquela mesa.
Ele começou a explicação das regras, disse que se eu colocasse meu bonequinho na área verde, ele era um fazendeiro, se o bonequinho fosse na estrada, ele era um ladrão, etc. Não sabíamos o que eram meeples, muito menos sobre jogos de tabuleiro modernos. Ele havia comprado aquele jogo muito por acaso porque se interessa por temas medievais. Ele literalmente só comprou por causa da capa. No meio da partida eu já tinha abstraído completamente os “ofícios” das minhas pessoinhas, eu só sabia que eles marcavam pontos de vitória. Ali começaram as abstrações dos temas e minha fome insaciável por pontos de vitória.
A satisfação de saber que ao terminar uma construção, seu pequeno cidadão voltaria para marcar mais pontos. EFICIÊNCIA! O jogo não tinha dados. Tinha aleatoriedade? Sim, certamente, mas comparado com os roll and move da minha infância, aquilo era praticamente um Xadrez moderno. Quer dizer que eu saco o tile e ainda tenho opção de colocá-lo onde e como eu bem entender, desde que ele se encaixe no mapa? Meu Deus, que alegria que eu estava sentindo naquela noite. Cansaço, que cansaço?! Eu queria jogar outra, vamos jogar outra! “Ah não, Luis, está ficando tarde... amanhã é dia de semana…”. Não, por favor! Não.. eu preciso jogar outra partida. Só mais uma, vai...
O cansaço bateu, cheguei em casa exausto. Só queria duas coisas: dormir e o tal do Carcassonne. Apaguei. Na manhã seguinte, uma das minhas primeiras providências foi adquirir a minha cópia. Comprei no primeiro lugar que encontrei no Google. Nesse nível de excitação, eu nem parei para pesquisar direito o melhor preço. Na semana seguinte, quando o jogo enfim chegou, imaginem a alegria da criança aqui destacando tile por tile do molde de papelão. Mostrei o jogo para os meus primos na primeira reunião de família. Dali em diante, só fazíamos isso nos almoços na casa da vó. Quando o encontro era com os amigos, eu só tinha uma palavra na minha mente: “Carcassonne”.
Alguns bons meses depois, dezenas de partidas jogadas, eu descobri um tal lance de “expansão”. Eu não fazia ideia de que tal coisa era possível. Quer dizer que eu tenho um jogo e eu posso meio que “customizá-lo” adicionando uns dlcs nele? Isso é sensacional!!! Quando a primeira expansão chegou, era como se eu, que já tinha apresentado o fogo para os meus primos, agora estivesse apresentando a roda. Eu era o Leonardo da Vinci do entretenimento na forma de papelão.
Muitas outras dezenas de partidas depois, outras expansões foram chegando. Outros títulos foram aparecendo, um tal de Catan que também era muito legal, Zombicide, “você viu aquelas miniaturas?!”, Munchkin, “hahahah, que jogo engraçado, muito bom!!!”, Ticket to Ride, que jogo simples, porém inteligente, o cara que pensou nisso deve ser um gênio. Tudo culpa do tal Carcassonne, ou melhor, culpa do meu amigo que comprou aquele jogo só por causa da ilustração medieval na capa. Muito obrigado por isso, Marcos.
Por uns 6 anos, eu tive menos de 10 jogos ao todo. Eu joguei cada um dos meus títulos dezenas, centenas de vezes. Hoje eu não tenho mais nenhum desses jogos na minha coleção.
A gente cresce, fica besta, fica seletivo, a inocência acaba. Carcassonne não era mais um Xadrez moderno, era um jogo altamente caótico, eu precisava de menos sorte, mais habilidade, mais camadas de decisão. O número de jogos também aumentou exponencialmente, não eram mais 10, eram quase 100. Em dois anos a minha coleção tinha se multiplicado quase dez vezes, era só mais um zero ao final do número de jogos da minha coleção e espaço nenhum na minha estante. Eu comprava mais jogos do que eu conseguia jogar em um curto período de tempo.
Às vezes eu olho para trás e sinto saudades daquele tempo em que tudo era mais puro e inocente, da época em que era super legal baixar uma criatura horrível com meu baralho de Magic todo torto e achar que estava arrasando. Contudo, sinceramente, não me arrependo de nada, cada compra, cada venda. Se hoje você me perguntar se eu tenho vontade de jogar Carcassonne, a minha resposta mais sincera: não.
Minha intenção aqui não é discutir se o jogo é bom ou ruim. Isso depende de cada um de vocês. Carcassonne para mim, durante uns bons anos da minha vida, foi a melhor coisa do mundo. Hoje eu simplesmente não sinto vontade de jogar Carcassonne, não por acaso vendi o meu. Não se trata de uma negação do passado ou qualquer coisa desse tipo. Carcassonne cumpriu maravilhosamente o seu papel na minha vida e chegou a hora de propriamente dizer adeus.
Graças ao Carcassonne, hoje posso dizer que não gosto mais de jogar Carcassonne. Ele foi o pioneiro, o batedor, aquele carinha que sai correndo na frente da horda com uma bandeira tremulando. Sempre terá um lugar na minha memória afetiva, no meu coração, mas não na minha estante. Eu posso não gostar mais de você como gostei um dia, mas sempre irei respeitá-lo.
Espero que você faça a alegria de muitos como você assim o fez para mim durante um bom tempo. Vá para outra residência, outra família, realizar a sua função mais uma vez. Sua missão aqui já foi cumprida.
Adeus, velho amigo!
Adeus 2012,
Feliz 2021.
Desejo a todos muitos novos Carcassonne nas vidas de vocês.
Forte abraço,
um próspero ano novo!
Luis Perdomo